segunda-feira, 12 de abril de 2021

A lagartixa na minha casa - Gilberto Amendola



Estou dividindo apartamento com uma lagartixa. Embora não ajude no aluguel, sua presença não é um estorvo. Discreta, aparece com certa regularidade para me dar um salve e perguntar se estou bem.

Drica, a lagartixa, sabe que essa é uma pergunta retórica. Na verdade, só quer puxar conversa e ouvir umas amenidades. 

No momento, não as tenho, as amenidades. Costumo colhê-las fora de casa, em passeios que não faço mais.

Ainda assim, ela me ouve com generosidade. Algo raro, imagino. Eu mesmo nunca tive essa qualidade – embora saiba emular esse personagem (do bom ouvinte e interessado). 

Poucas coisas me interessam. Mas Drica, a lagartixa, é diferente. Ela é curiosa e se importa. Ela se interessa por tudo. Tudo, tudo parece preenchê-la de alguma energia vital. 

As vantagens de Drica são palpáveis. Ela passeia pelo meu apartamento como se cada cômodo fosse um continente. Minha sala é Paris. Minha cozinha Nova York. A vida inteira dessa minha amiga lagartixa-doméstica-tropical cabe aqui dentro. 

Ela é sensível aos meus desassossegos. Aos murros na mesa, às ligações sem resposta, aos palavrões atirados contra o infinito. Ele é sensível ao meu cansaço e aos meus fracassos solitários. 

Mas, quando quero desabar, Drica, a lagartixa, me olha com seus olhinhos de esperança e me acalma. São uns olhinhos de quem enxerga melhor na escuridão. Uma coisa comovente.

Drica, a lagartixa, acompanha meu home office. Com ela, tiro dúvidas gramaticais, comento os absurdos do governo, assisto Big Brother e algumas séries no serviço de streaming. 

Drica, a lagartixa, prefere os filmes leves. É otimista. A crença dela em finais felizes é quase um poema. 

Tenho medo de esmagar minha amiga com meus pés de chumbo, com minha ansiedade e pessimismo. 

Mas, Drica, a lagartixa, entende meus limites. Não é de dar bobeira. Não fica ao alcance dos meus desastres.

Estou olhando para ela agora. No momento em que escrevo e deleto, escrevo e deleto, escrevo e deleto. Mais deleto do que escrevo. Às vezes, são apenas letras repetidas e enfileiradas. Faço de propósito. Pelo prazer em usar o backspace. Tenho um romance de apagamentos. 

Drica, a lagartixa, me entende. Eu acho que entende. Certeza que sim. 

Do alto, na parede da minha sala, ela me manda uma mensagem: você não precisa sair de casa para se encontrar com Deus. 

sábado, 10 de abril de 2021

Improvável, mas a carta chegou - Ignácio de Loyola Brandão


Nos anos 50, meu sonho era ter uma jovem correspondente no exterior. Preferia uma francesa, adorava a língua, conseguia ler e escrever razoavelmente. E as francesas tinham um quê de sensualidade, eu via filmes com Cécile Aubry, Martine Carol, Pascale Petit, Françoise Arnoul, que o escritor Alex Salomon idolatrava. Fanny Marracini, professora de francês, me impressionou na primeira aula no ginasial: “Bonjour mes enfants. Isso quer dizer bom dia. Bom dia serão as duas únicas palavras em português que me ouvirão falar durante o curso”. 

Francês ela falou ao longo de muitos anos e assim estudamos Chateaubriand, Lamartine, Stendhal, Flaubert, Prévert, Balzac, Victor Hugo, Dumas, Cocteau, chegamos a Collette, George Sand, Camus e, quando surgiu Françoise Sagan, célebre aos 18 anos, best-seller, com um romance que assombrou o mundo, Boa Dia, Tristeza, vi que se podia ser uma estrela, escrevendo. Esperem aí, não explica minha carreira, não. Foi dona Fanny quem me conseguiu uma correspondente na França, Francine Defrancq e era de Mulhouse, Alsácia. Levei dois dias para escrever em francês, levei à dona Fanny, que me corrigiu e elogiou. 

Mandei e esperei. Quando mandávamos carta, sabíamos que esperar era virtude. Esperar com ansiedade, a cada dia, e imaginar o que a pessoa responderia. Passados treze dias, ao chegar em casa no começo da noite, meus pais, rindo, rindo, me entregaram o envelope com bordas em azul escuro e vermelho. Da França.

Sempre me submeti a testes de paciência, por ouvir minha mãe dizer: a paciência é uma virtude, torna a pessoa melhor. Só que ela é difícil. Hoje, a paciência se volatizou. Todo mundo vive ansioso, nervoso, angustiado, apressado, acelerado. Minha amada tia Terezinha usava uma palavra que pouco ouvi em minha vida: açodado. Famosa na família era a expressão dela, “você parece um Bernardino flagelado”, diante de uma pessoa impaciente, excitada, inquieta. Há meio século, meu primo Zezé Brandão, filho dela, publicitário em Araraquara, procura a origem do Bernardino.

Bem, aquela foi a primeira carta de uma série que se prolongou por anos. Francine escrevia com regularidade em papel rosa, tinha letra pequena, às vezes eu precisava adivinhar. Ela contava da vida cotidiana, de costumes, me corrigia, indicava filmes, livros e me enviava revistas como Cinémonde, Positif e Jeune Cinéma. Dela, recebi uma foto do filme O Salário do Medo. Ela foi fazendo minha cabeça. Nem imaginam o que aquelas cartas que atravessavam o oceano significavam para mim. Eram minha janela, libertação, eu não estava restrito a mesmice do meu dia a dia. Deixava de ir ao cinema – o que era quase impossível para mim – para ler e reler as cartas, uma vez que o carteiro chegava no final da tarde. Pouco antes que eu deixasse a cidade, 1957, vindo para São Paulo, Francine me avisou que estava se mudando para Paris, ia trabalhar em um banco. Avisei que também estava indo para a “vida”. 

Meu pai, certo dia, me ligou: “Tem uma carta da Francine! Abro?” Ela me avisava que trabalhava em um banco no Boulevard Haussmann, 102. Envolvido pelos meus primeiros anos em São Paulo, deixei Francine de lado. 

Em 1963, cheguei a Paris, levava o endereço do banco. Na manhã seguinte, cheguei ao local, vi que ali tinha morado Proust. No banco, descobri um jovem que trabalhara com Francine e ele me revelou “Elle est décédée, monsieur, je regrette”. Tinha falecido havia dois anos, me pareceu. Deixei para o final, o porquê dos meus pais rindo tanto quando chegou a primeira carta de minha correspondente. O envelope trazia meu nome e o endereço. Araraquara, Brasil. Nada mais. Um dia, ela explicou: “Perdi a tua primeira carta, me perdoe, tudo o que lembrava era o complicado nome de tua cidade, repleto de A. Impronunciável. Arrisquei, mandei”. 

Chegou. No correio, comentaram divertidos a ousadia, “quem ele acha que é?”, mas um carteiro me conhecia, queria namorar a Cecilia, uma prima minha. Trouxe a carta.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Paixões mitológicas - Mario Vargas Llosa


Ticiano, que nunca esteve na Espanha, conheceu Felipe II em Milão no final de 1548, quando este ainda era um príncipe. Ele tinha trabalhado para Carlos V, pais de Felipe, que o encarregou de pinturas religiosas, algo a que Ticiano era também adepto, mas seu enorme prestígio entre os nobres vinha sobretudo dos seus quadros eróticos, aos quais costumava dar um título mitológico para salvar as aparências. Isto porque a Igreja, muito suscetível neste aspecto, respeitava rigorosamente as imagens supostamente validadas pela mitologia e, especialmente, quando o pintor dizia ter se inspirado na Metamorfoses, de Ovídio, obra muito lida e reverenciada naquela época.

Felipe II encomendou a Ticiano (ou foi ele quem propôs e o monarca aceitou) seis obras mitológicas, que ele chamou de “poesias”, exatamente porque baseadas na mitologia clássica, e que ele foi enviando para a Espanha ao longo de uma década, entre 1552 e 1562. De acordo com o crítico inglês Peter Humphrey, as telas que Ticiano chamou de “poesias” constituem “um dos conjuntos de quadros mais célebres e de maior influência na história da pintura ocidental”.

Por diversas razões, esse grupo de pinturas concebidas como um todo orgânico, conforme explicação do pintor em uma das suas remessas, e que deviam ser vistas sempre juntas, foram se espalhando no decorrer dos anos, mudando de proprietários, residências e museus e não se tem certeza que o próprio Felipe II as tenha visto alguma vez reunidas. O que se sabe com certeza é que as damas da nobreza costumavam passar rapidamente diante delas, pois estavam cobertas para não as deixar ruborizadas.

As seis obras que Ticiano pintou e chamou de “poesias” hoje se encontram em vários locais, na Wellington e a Wallace Coleções, de Londres, no Museu do Prado em Madri e nas Galerias Escocesas de Edimburgo, na National Gallery de Londres e no Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston. Dá vertigens pensar no que deve ter sido a correspondência do diretor do Museu do Prado, Miguel Falomir, que teve a ideia de realizar esta exposição e é seu curador, durante três anos até ela se materializar. E, para piorar as coisas, a pandemia do coronavírus coincidiu com a inauguração da mostra em Madri. Mas não importa, a exposição é soberba, fora do comum e os madrilenhos (e muitos franceses recém-chegados também para os feriados de Semana Santa) que a virem não conseguirão esquecê-la facilmente.

E alguns, como nós, tivemos a sorte de ter como cicerone o próprio Miguel Falomir, que nos deu as necessárias informações sobre a exposição, enriquecida com quadros de Rubens, Veronese, Allori, Ribera, Van Dyck, Poussin e Velásquez.

Todas estas pinturas são extraordinárias, algo que não costuma se verificar nas melhores exposições. Em todas elas, reina uma liberdade ilimitada que expressa ao mesmo tempo a história quando era apenas mito e fantasia e as razões profundas que levaram os seres humanos a criarem uma arte que enriquece a vida e a eleva à altura dos nossos sonhos. E também expõe as limitações da realidade na qual nos locomovemos, como num cárcere em que não podemos nunca expressar de maneira plena as nossas expectativas de viver mais e melhor, realizar todos os nossos desejos, e daquilo que chamamos de cultura, arte, civilização.

Além da liberdade com que foram concebidos, esses quadros radiografam a comunidade da cultura europeia e ocidental, explicam a insignificância das fronteiras que separam seus homens e mulheres quando acreditam e fantasiam, mostram que constituímos uma única sociedade múltipla e versátil, unida por um denominador comum quando revelamos nossa intimidade (ou estamos contra todas elas) porque na hora de sonhar e desejar somos todos os mesmos. Quando caminhamos em meio a esses quadros, como parecem insignificantes o desespero com que certas minorias se empenham em exagerar suas diferenças, como se elas, que naturalmente existem, fossem o bastante fortes para destruir a solidez de uma cultura que tem suas raízes numa unidade mais profunda e visceral, da qual todos nós participamos, pois ela é muito generosa para incluir todos nós em seus sonhos.

Talvez esta exposição seja um sinal de alarme no que se refere aos desvios e traições cada vez mais frequentes na pintura ocidental, no caso de tantos artistas sem escrúpulos – palhaços no fundo – que esqueceram, apesar do sucesso que têm junto às galerias, os críticos e colecionadores, algo que é o mais importante em seu empenho criativo: inventar formas que renovam e consolidam a tradição. Os quadros de Ticiano são excepcionais, mas não são menos extraordinários os que os acompanham, de Rubens, Allori, Poussin, Van Dyck, Roberta e o excepcional Velázquez.

A razão de ser da arte, neste caso a pintura, como complemento central da existência, está também aparente nestas poucas salas onde parece que se vive de outra maneira, não apenas mais livre como também com mais prazer e mais saciado, mais consciente das coisas que importam e as que não são importantes para impulsionar a vida e enriquecê-la.

Aqueles eram tempos de guerras religiosas e intolerâncias, mas, apesar disso, a violência e o sangue desapareciam nas obras dos mestres, como prova esta exposição, nestes recintos de sonho e perfeição, que nos dignificam e elucidam e em que nos vemos retratados, vivendo outra vida, mais rica, mais intensa, mais livre, mais imaginativa, do que a que levamos todos os dias como uma corda no pescoço.

Não somos mais a mesma pessoa quando saímos de uma exposição como esta. Algo mudou na nossa maneira de ser e de ver as coisas. O mundo parece mais feio e a feiura se sobressai confrontada com as formosuras e delicadezas que acabamos de ver. Mas não há pessimismo, porque o que vimos não é um milagre, mas um fato humano, obras construídas com as mãos e uma exigência intelectual que é possível alcançar com a pugnacidade com a qual esses artistas inspirados se entregaram à sua tarefa, algo acessível e sem mistério, ao alcance todo aquele que, como eles, trabalha seguindo a sua inspiração e que, não se contentando com ela, leva-a mais adiante, enriquece-a com detalhes e formas que a fortalecem e inovam.

Poucas vezes fiquei tão impressionado com uma exposição como esta em curso no Museu do Prado: Paixões Mitológicas. Com certeza porque, nestes tempos, não obstante o nosso otimismo com o que cremos ser a vitória da ciência sobre o mundo natural, percebemos como somos vulneráveis, como a vida continua sendo precária, e ao mesmo tempo vemos a imensidão da arte e da cultura, as luzes e sombras que as compõem. 

Tenho certeza de que não peco por ser otimista quando afirmo que a melhor emulsão para nos protegermos do terror que sentimos quando vemos tantas mortes imprevistas no nosso entorno, e a luta das autoridades da saúde e médicos para salvar essas vidas, que melhor do que todos os remédios é caminhar por um museu como o Prado e descobrir porque alguns quadros são um canto à imortalidade, à sobrevivência em meio ao horror. 

 Tradução de Terezinha Martino


'Vênus e Adonis', obra de Ticiano -  Foto: Museu do Prado


Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...