terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

O sentido da ressaca - Adão Iturrusgarai

 “A felicidade é o sentido e o propósito da vida, o único objetivo e a finalidade da existência humana”. 

Aristóteles.




Ressaca é uma merda e todo mundo está de acordo com isso. Os pouquíssimos que curtem o mal-estar pós-borracheira se dividem entre masoquistas e os que já morreram.

Porém, o fatídico dia seguinte tem algo mais a nos ensinar além do respeito que devemos ter aos limites do consumo do álcool. A ressaca ajuda a gente a dar valor às coisas simples e ao sentido da vida.

Acho que a vida não tem sentido nenhum e ficar buscando uma razão para a existência é pura perda de tempo. Somos acidentes, uma camisinha furada, um erro de cálculo na tabelinha da gravidez, um DIU mal ajustado ou um coito interrompido milésimos de segundo depois do momento seguro.
 
Não vou me estender e vou direto ao ponto: qual é, afinal, a importância da ressaca?
Em 2000 eu morava no bairro da Urca, no Rio de Janeiro, com uma companheira carioca. Uma noite saí com um amigo que pegava pesado. Bebemos muito além da conta, mais do que o dobro do que o meu corpo suportava. Para piorar, era vinho tinto, substância perigosíssima e que só deveria ser consumida durante as refeições.

Depois da farra, não sei como consegui voltar para casa. Lembro vagamente que meu amigo me empurrou para dentro de um táxi e pedi para ser desovado perto da mureta da Urca. Não queria chegar direto em casa naquele estado deplorável e tinha a ilusão de me recuperar um pouco com a brisa da Baía da Guanabara. 

Meia hora depois de vento na cara sem conseguir parar em pé, parecendo estar numa jangada, tomei coragem, entrei no prédio e, depois de dez tentativas, acertei a chave no buraco da fechadura. Por sorte minha companheira dormia profundamente e não me viu cair na cama de roupa e tudo.

No dia seguinte bem cedo, senti um cutucão. Era ela pedindo para eu ir até o banheiro. Cheguei lá e morri de vergonha. A privada - e tudo ao redor dela - estava toda salpicada de tons de roxo e verde bílis. Nem o teto se salvou. Parecia uma pintura em 3D do Pollock. 

Levei umas duas horas para limpar os resquícios da bebedeira e passei o resto do dia me arrastando, às vezes literalmente, como um soldado ferido.

Naquele momento eu sofria tanto que tudo que eu mais desejava era que aquela sensação desagradável passasse e que minha vida normal voltasse. Queria abraçar a minha esposa, brincar com os gatinhos, apreciar os tons de verde da decoração, caminhar pelo bairro, respirar o cheiro da maresia e contemplar o vaivém dos aviões no aeroporto Santos Dumont. E, claro, voltar a rabiscar na prancheta em busca de ideias para piadas.

Mas o mal-estar me impedia de fazer qualquer coisa. Então, me dando por vencido e aceitando o quão miserável eu estava, resolvi deixar para o outro dia. 

Só que no outro dia eu ainda não havia voltado ao normal. O tempo se arrastava comigo e tudo era um sofrimento, até respirar mais fundo causava incômodo. Meu estômago parecia estar do avesso e amarrado com barbante. O paladar era de maçaneta de banheiro de rodoviária. Minha cabeça parecia ressoar o badalo infinito de um sino. Por vezes eu me sentia o badalo do sino.

Foi aí que descobri a ressaca de mais de 24 horas e a inexistência de Deus. Foi algo quase tão traumático quanto à situação na qual, durante a infância, fiquei sabendo que um dia morremos.

Então, foi assim, graças à maldita ressaca, que aprendi a valorizar as pequenas coisas do cotidiano. Percebi que o simples fato de poder vivenciar o dia a dia, em suas sutilezas mais banais, nos permite ser quem somos, com integridade. Por isso é essencial desfrutarmos não só dos momentos de êxtase, que são raros e efêmeros, mas também, e principalmente, das rotinas mornas e aconchegantes. Essas, sim, serão constantes e mais duradouras.

Carpe diem.

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