"Todos os relacionamentos fechados se parecem", diria Tolstói em
"Anna Kariênina". "Cada relacionamento aberto é infeliz à sua
maneira."
Abrir um relacionamento pode se revelar uma tarefa mais difícil do que abrir uma embalagem de CD. Há grandes chances de você perder um dente. E, depois de aberto, há grandes chances de você se perguntar: "Valia a pena tudo isso? Nem gostava desse CD. Aliás, ninguém mais ouve CD". Há, no entanto, quem defenda que os relacionamentos, assim como as ostras, merecem que a gente perca tempo abrindo-os —mesmo que, em ambos os casos, exista um forte risco de intoxicação. Uma porta pode estar aberta, encostada, entreaberta, escancarada. Na relação escancarada, tudo é possível e nada é passível de ciúme (parece que esse fenômeno só aconteceu uma vez, e foi nos anos 1970). Há muitas relações escancaradas que, quando você vai ver de perto, são de fato escancaradas, mas não são relações: não se pode dizer que existe uma porta aberta porque não há sequer porta, já que tampouco há parede. O relacionamento entreaberto, no entanto, pode se entreabrir de mil maneiras: pode poder tudo desde que conte tudo pro outro ou desde que o outro não fique sabendo ou desde que não seja com amigos ou desde que seja com amigos ou desde que não se apaixone ou desde que seja por paixão. Há relacionamentos cuja abertura é sazonal: o namoro à distância internacional costuma ser como as cantinas de escola, que abrem nove meses por ano e fecham nas férias, enquanto o relacionamento intermunicipal costuma funcionar como os correios: abre em dia útil, fecha no final de semana. O relacionamento encostado parece que está trancado. Mas para amigos e vizinhos, é só empurrar o portão. E tem os namoros que, apesar de trancados, ninguém trocou a fechadura: o ex ainda tem a chave e entra quando quiser. Há, é claro, o relacionamento trancado a sete chaves e blindado. Aquele que se uma paixão de adolescência batesse na porta, e se por acaso vocês transassem, ninguém ficaria sabendo, mas mesmo assim você diz: "Não, não. Estou num relacionamento". Parece que esse aí morreu. Talvez fique pra história como as ombreiras ou a pochete. Talvez volte com tudo em 2017, assim como as ombreiras e a pochete. Preparem-se. Não sei se estamos prontos pra essa loucura. A próxima coisa a voltar pode ser o Crocs. Malvados - André Dahmer |
O relacionamento aberto – Paulo Germano
Quando a mulher trai o marido, ou vice-versa, não é porque o amor acabou, nem porque o casamento vai mal, nem porque está magoada por isso ou aquilo. A imensa maioria das relações extraconjugais ocorre porque variar é bom.Não é um raciocínio meu – é da psicanalista carioca Regina Navarro Lins, 66 anos, uma entusiasta do relacionamento aberto cujas entrevistas tornaram-se célebres porque, acima de tudo, fazem pensar. Você não precisa concordar com ela. Aliás, seria ótimo se nos importássemos menos com esse negócio de concordar. As pessoas se enfurecem, agridem, insultam, espumam de ódio quando esbarram com uma opiniãozinha diferente. Não há nada mais rico e estimulante do que a divergência: só ela produz debates, só ela nos tira da inércia, só ela nos faz crescer. Concordar é uma monotonia – tão cômodo quanto inútil.
Mas Regina Navarro Lins.
Não sei se concordo com ela, embora goste de ouvi-la. Em entrevista à repórter Larissa Roso, de Zero Hora, a psicanalista garante que o modelo atual de casamento tornou-se “impossível” e critica a idealização que fazemos de uma união perfeita. Nas três páginas de conversa, o melhor trecho de todos é o seguinte:
– Em um relacionamento, cada um deveria responder a duas perguntas para si próprio: “Me sinto amado? Me sinto desejado?”. Se a resposta for sim para as duas, o que o outro faz quando não está comigo não me diz respeito.
Em momento algum ela prega a desconsideração ou a depravação, pelo contrário. Entende apenas que alimentamos uma ilusão – e uma ilusão cruel – ao pensarmos que o amor pode suprir todas as necessidades e lacunas de um ser humano. Claro, se alguém decidir passar 40 anos fazendo sexo com um único parceiro, tudo bem, sem problemas, desde que seja uma escolha livre, e não determinada pela culpa, pelo medo ou por imposições culturais. Regina considera um desrespeito dizer ao seu marido “transe só comigo”, porque a individualidade dele é apenas dele.
Em um ponto, o mais óbvio deles, ela tem razão: não estamos imunes ao desejo por outras pessoas apenas porque amamos uma. A maior parte de nós, em uma relação monogâmica, está acostumada ao que muitos classificam como hipocrisia. Sentimos vontade, mas a reprimimos. Sabemos que o companheiro sente vontade, mas reprimimos o companheiro. Funciona assim.
A questão é que nunca, em nenhum estudo ou entrevista que li sobre o tema, ninguém me convenceu de que, na hipótese de liberarmos as nossas vontades, de nos entregarmos ao desejo e permitirmos que o outro se entregue também, seríamos necessariamente mais felizes. Tenho sérias dúvidas sobre isso.
Regina Navarro Lins e os defensores do relacionamento aberto sugerem que somos vítimas de uma cultura arbitrária, que nos exige uma exclusividade incompatível com a natureza humana. Faz sentido, só que a cultura também é um instrumento de lapidação do homem. Por exemplo: a ética e a moral foram construções culturais necessárias para o convívio em civilização – na nossa essência, como já disse Thomas Hobbes, elas não existem.
O relacionamento monogâmico parece seguir a mesma lógica. Um acordo tácito que mira o bem-estar social. Não é à toa que uma pesquisa de 2012, da Universidade da Columbia Britânica, do Canadá, revelou que as sociedades poligâmicas eram as mais violentas do mundo – porque características, essas sim, próprias da natureza humana, como a competição e o egoísmo, afloravam em proporções maiores.
Não tenho dúvida de que uma evoluída parcela da população convive bem com relacionamentos abertos. E Regina Navarro Lins está correta ao dizer que esse tipo de relação guarda, sim, honestidade e respeito. Mas eu ainda prefiro ser hipócrita.
Laerte
Ah, as mulheres – Danuza Leão
Eu conheço um homem que, como não leu o livro de Nelson Rodrigues --"Não se Pode Amar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo"--, queria ser amado e ser feliz. De tanto ouvir as reclamações das mulheres sobre os homens, procurou aprender --e aprendeu-- a não ter nenhum dos defeitos dos quais elas se queixavam tanto e que eram sempre mais ou menos os mesmos. Não funcionou com a primeira, nem com a segunda, nem com a terceira, aliás, com nenhuma; ele achou estranho e veio conversar comigo.
E me contou que trata todas, sempre, superbem, valoriza a mulher amada, cuida e zela, mostra que ela é a prioridade da vida dele; é atencioso, prestativo, ótimo pai, procura dar os presentes certos, aqueles que são seus sonhos de consumo, se empenha em fazê-la feliz, apoia o quanto pode sua carreira, leva-a às Europas que ela não conhece, puxa conversa para assuntos de que ela gosta, repara em sua aparência, seu corte de cabelo, e a elogia sempre.
Além disso, não se esquece dos aniversários: de casamento, do primeiro dia de namoro, do dia da primeira transa, lembrando sempre com flores, um presente, até mesmo uma viagem; reúne, enfim, todas as condições para ser um ótimo amigo, um pai adorável, e é totalmente desprezado como objeto de desejo e paixão.
Meu amigo não compreende as mulheres, e não entendeu que o homem com quem se sonha não tem nada a ver com o homem que se ama. Nenhuma mulher vai se apaixonar por um homem que esteja de quatro por ela, adivinhando seus pensamentos, realizando seus desejos, antes mesmo de ela saber que desejos são esses.
Ela pode gostar, sim, mas durante 24 horas, 48, enquanto existir aquela dúvida fundamental: que talvez não seja para sempre. É insuportável ser amada acima de todas as coisas o tempo todo, e pior ainda ter uma pessoa ao lado que nos tem como sua prioridade.
Para que o amor dure, é preciso que exista a dúvida se ele vai sobreviver, até mesmo àquela noite; não saber se ele vai ligar, não saber em que está pensando quando está calado, e sobretudo --sobretudo-- saber que ele jamais vai lembrar de nenhuma das datas fatídicas, de quando se conheceram etc. etc., e jantar num restaurante especial e tomar um vinho no Dia dos Namorados.
Para um homem ser amado é preciso que ele tenha um mundo particular --ou vários-- só dele, e no qual ela não consiga, jamais, penetrar. Que seja o futebol, o surfe, a astronomia, a corrida de cavalos, a guerra da Síria, tudo vale, contanto que ela não seja a única a ocupar seus pensamentos.
As coisas muito certas não têm graça; pense nos cassinos, onde uma multidão arrisca seu dinheiro na incerteza, sem saber se vai dar o preto ou o vermelho, o par ou o ímpar, o 4 ou o 17. Se soubessem, ia ter graça?
Esse meu amigo não fez tudo errado, não. Ele fez tudo certo, quando mandava flores, quando surpreendia suas amadas com a perspectiva de uma viagem, quando lembrava de seu aniversário na véspera, à meia-noite, sem imaginar que ela, chegando aos 42, queria saber de tudo, menos dessa data, razão de sobra pra odiá-lo.
Ele não pensava no prazer dela, e sim no dele; o prazer de se sentir generoso, magnânimo, o amante perfeito, o que para ele era certamente mais importante do que ser amado. Conseguiu, e não tem do que se queixar.
Hagar - Dik Browne
Sofrer por amor é perda de tempo - Mariliz Pereira Jorge
Conheço gente que levou quatro anos para superar o final de um relacionamento. Qua-tro a-nos. Nesse tempo dá para terminar faculdade, financiar carro, fazer curso completo de japonês. Uma criança aprende a andar, a falar, a usar o computador. Mais um pouco e já entra no Tinder.Quatro anos. A pessoa lá comendo um pote de Nutella no sábado à tarde, fazendo "binge watching" de séries de TV, adepta de jejum social e sexual e quando percebe já esquentou, esfriou, veio Natal, foi Réveillon, esfriou de novo. Perdeu a formatura do melhor amigo, o batizado da sua sobrinha, o plano da academia venceu.
Em quatro anos o outro já saiu com o andar inteiro da firma, morou com duas namoradas, fez planos de casar, desfez, deu a volta ao mundo, namorou islandesa, australiana, nigeriana. Virou monge tibetano e, por fim, descobriu que é gay. E a pessoa sofrendo.
Também conheço gente que depois de dois meses de relacionamento sofre como se tivesse vivido a história mais importante da vida. Sofre como se em dois meses tivesse de fato um relacionamento, quando tudo que existe entre duas pessoas nesse curto de espaço de tempo se chama tesão. E o tesão acaba quase sempre antes de um adicionar o outro no Facebook.
A sofrência desenfreada, independe do tempo ou da intensidade, não trará respostas e muito menos a pessoa amada de volta. A gente não percebe, mas alimenta a falsa impressão de que se sofrer de verdade, acabará por criar um campo magnético poderoso, que vai resolver a parada. Aquele negócio de poder da atração? Tudo mentira. Mas a gente quer que o outro reconheça que a nossa dedicação (mais conhecida com "estou sofrendo para cacete") merece uma segunda chance. Às vezes funciona. Quem nunca voltou atrás motivado pelos prazeres da carne ou por pena?
A pessoa não apela ao pai de santo do cartaz do poste, mas mergulha em penitência, o que é a mesma coisa, porque no fim quer acreditar num milagre. O nome disso é carência. Pode ser também falta de maturidade emocional. Mas muitas vezes é só desespero. Acontece aos 15 e aos 40.
Amores acabam, muitas vezes ainda antes de se transformarem em amores. Daí reclamos que ninguém quer nada sério. Mas a gente transforma sexo gostoso e quentinho no amor da vida? E essas historinhas acabam e quase sempre sem explicação.
Essa falta de resposta que usamos para prolongar sofrimentos não muda a questão essencial. Quando uma relação chega ao fim não importa o que o outro pensa ou sente. Não importa se acabou a atração, o interesse ou o crédito do celular. Não importa se ele resolveu virar monge ou enjoou de pepeca.
A gente precisa aprender a lidar com rejeição, com rupturas e términos de um jeito mais consciente e menos doloroso. Sofrer faz parte, assim como dosar o sofrimento. Terminar uma relação de anos e amargar uma dorzinha de corno por alguns meses é natural. Lamentar que um casinho não tenha ido para frente também. O que não dá é velar o morto-vivo ad aeternum. A fila anda.
Os homens também choram - Mariliz Pereira Jorge
O título deste texto poderia ser "As mulheres também não prestam". E eu tive que explicar isso com cuidado a um amigo que está sofrendo como um cachorro que foi abandonado em véspera de feriado. Do mesmo jeito, sem tirar nem por, que a maioria das mulheres pena todos os dias por se relacionar com caras que não valem o lenço para tirar a maquiagem borrada.
A diferença é que a gente se acostumou a sofrer, a aceitar que histórias de amor são sempre difíceis e recheadas de sofrimento –esta é a minha única bronca em relação às fábulas de princesa. Nesse sentido, os homens sempre levaram uma baita vantagem porque foram criados ouvindo que menino não chora, não sofre, quando cresce tem que passar o rodo. Quase sempre começavam e terminavam relacionamentos quando queriam. O jogo está mudando, amores. Ahh se está.
E agora vocês precisam lidar com a vida como ela é. Isso não tem nada a ver com feminismo, com empoderamento, com liberdade sexual, pelos quais nós temos batalhado. Tudo é bem mais complicado do que textão de Facebook e está relacionado ao fato de que algumas pessoas não prestam, são dissimuladas e mentirosas, inclusive muitas mulheres. É novidade? Não exatamente.
A diferença é que algumas moças não fazem mais a menor questão de disfarçar esse traço de falta de caráter. Assim como os homens sempre fizeram, respaldados na crença de que canalhice é uma característica masculina nata. Homem é tudo igual, sabe como é? Não são. O mundo está cheio de caras decentes em meio a outros tantos que não valem nada.
E muitos, os legais e os babacas, estão descobrindo que mulheres seguem a mesma cartilha quando o assunto é relacionamento. Você muito provavelmente vai cravar vagabunda ou piranha na testa de moças que, sem remorso, plantam na cabeça chifres pontudos ao mesmo tempo que dilaceram corações.
Em tempos de igualdade, amém, o que cabe de fato em casos de rejeição, traição, punhalada nas costas é bem mais universal e serve para meninos e meninas: cafajeste, pilantra, canalha. Alcunhas que talvez tenham ressoado de forma nada gentil em seus próprios ouvidos ou por meio de mensagens desaforadas no celular e que agora podem ser endereçadas às moças, de igual para igual.
Não foi tarefa fácil dar a real ao meu amigo rejeitado e chifrudo.
Fui explicita. Mulher mau-caráter é capaz de fazer exatamente o que homem mau-caráter faz. Não, mentira. É capaz de fazer muito melhor, porque pinta, borda, faz charminho, exagera nas promessas, fala que ama, chora de arrependimento, pede desculpas, tudo com beicinho. Exatamente como muitos malandros, mas com uma dose hollywoodiana de drama e dissimulação, meus amigos. E vocês acreditam em tudo, porque não é o que se espera de uma mulher, ainda mais quando você resolveu que quer essa mulher para você. Como assim, ela não me quer? Well... aceita que dói menos.
Não sei lidar com marmanjos que choram. Falta de costume, porque isso acontece com a mesma frequência da passagem do cometa Halley pelo Sistema Solar.
Homem, quando pega uma pilantra pela frente, sofre mais do que menina na primeira fila do show do Justin Bieber. A mulher terminou, voltou, terminou, voltou, terminou e meu amigo lá, vestindo a fantasia de panaca, esperando a rapariga descobrir se gostava dele –o que não aconteceu, e só quem está de fora sabe que nunca acontece. A moça jogava a autoestima do cara no chão. Mentia. Seduzia. E ainda colocou a culpa na libido exacerbada pelo fracasso da relação e a pulada de cerca bem-sucedida. Só faltou coçar o meio das pernas, levantar a sobrancelha e dizer: sabe como é mulher, né?
Aquele homão, que já tinha feito meia cidade sofrer exatamente como ele estava agora, provando de sua babaquice. Sei o script direitinho. A gente se culpa. Acha que fez alguma coisa errada. Tem a sensação de que aquela dor não vai passar nunca. De que jamais vai se interessar por alguém. Vive a tortura de pensar no outro feliz enquanto sente-se miserável. Nutre a esperança ridícula de tentar de novo mesmo sabendo que faz papel de bobo. Emagrece –e essa é a única parte boa.
Me diz que vai passar, ele me pediu. Claro que passa.
Havia tantas indagações, culpa, insegurança, falta de amor próprio e medo naquele homem sentado à minha frente. Já vi marmanjo sofrer. Consolar mulher é muito mais fácil. A gente fala "amiga, homem é tudo igual, nenhum presta", algo em que eu definitivamente não acredito, mas uma desculpa que funciona. A moça sente-se melhor, menos otária e logo está pronta para fazer papel de palhaça de novo. Porque a gente sempre faz. Tenho um currículo tão extenso que não sei como não fui parar num circo.
Homem, não. Homem demora um tempão para acreditar que canalhice não tem gênero. Mas a dor de corno muitas vezes tem um efeito positivo: o de transformar meninos mimados em homens sensíveis. Por causa de todo esse sofrimento, meu amigo ligou para uma ex, uma que ele abandonou, sem olhar para trás e dar satisfação, e pediu perdão. Como o que o Brad Pitt fez com a Jennifer Aniston depois de 12 anos.
Meu amigo, entre uma lágrima e outra, também pediu que eu lhe apresente uma amiga que está solteira. Não disse que passa?
Will Tirando
AMELY - PRYSCILA VIEIRA
A imprecisão da frase
feita - Marcelo Rubens Paiva
A vida é uma só, não é assim que se
diz?
O cara era completamente obcecado por
ela, desde o primeiro dia em que a viu. Mas não pôde avançar. Tem limites.
Sempre teve. Desde quando Moisés mandou o recado: "Não cobiçarás a mulher
do próximo". Se entre dez mandamentos, apenas dez, cobiçar a mulher alheia
estava entre eles, com a mesma relevância de "não matarás" e
"não furtarás", porque é um princípio que deve ser seguido à risca.
Talvez, um dos pilares da civilização. Deus não queria baderna. Foi sucinto,
porque Deus não tinha tempo a perder. E soube como ninguém usar aquilo que
criou em primeiro, o verbo.
Disse ele: "Não desejarás a casa
do próximo, nem seu campo, seu servo, nem a sua serva, seu boi, jumento, nem
coisa alguma do próximo". Coisa alguma, Ele disse. O jumento do próximo,
poucos cobiçam. O boi e o servo, também. Só que um cara cobiçou, cobiça e
cobiçará a mulher do melhor amigo. Por sabe-se lá quanto tempo.
Ambos estavam juntos quando a viram
pela primeira vez. Numa festa. Mas foi o melhor amigo quem tomou a iniciativa.
Viram-na dançando, sozinha, assim que entraram. Era a perfeição, vestia a
perfeição, se movimentava com perfeição e atraía olhares também das próximas.
Os dois a notaram de imediato. Mas,
como dois predadores, um não falou para o outro da joia rara que dançava
sozinha no meio da pista. Um foi pegar bebida, o outro cumprimentou amigos.
Ambos de soslaio, observavam a movimentação da presa. Só que o amigo foi
segundos mais rápido. Ao final, já estava com ela num canto. Depois, já estavam
se pegando. Logo, passaram a ser vistos juntos em outras festas. Dançaram.
Beberam. Namoraram. Logo, marcaram o casamento. O outro? Inveja. Poderia ter
sido ele. Mas foi o mais rápido, ambicioso e desprendido que ficou com o grande
prêmio.
Sabe que ela gostava do amigo do
namorado. Gostava do amigo atrapalhado com as mulheres. Gostava do
inconsequente solteirão, neurótico, sempre apaixonado pelas mulheres erradas,
envolvido em tramas nitidamente falidas. E ainda reclamava que o namorado era
muito correto. Faltava nele a imprevisibilidade das tardes enroladas.
Os três saíam juntos. Parecia que era
com ele que ela tinha mais afinidade. Com o não namorado.
No casamento, quando ele deu aquele
abraço na então nova esposa do melhor amigo, ela disse algo de que ele nunca se
esqueceu, que surpreendeu e deu aquele arrepio na alma, que poucas vezes um
homem sente, arrepio que amolece os joelhos, as convicções, e o fez repensar em
todos os segundos vividos nos últimos meses.
"Se não fosse ele, eu me casava
com você", ela disse, beijando com a maciez de uma noiva encantada,
pendurada no pescoço dele, bêbada, enroscando seu véu na gravata dele, seu
colar no relógio dele. Ele sentiu o calor da carne dela, o bafo doce e quente
que entorpeceu como uma anestesia que não pega e alucina.
O fotógrafo contratado fotografou-os
nesse instante. E ela, dias depois, mandou para ele exatamente "a"
foto. Em que ela parece debruçada para não cair, enroscada, com os olhos de uma
mulher absolutamente apaixonada, como se entregue aos braços do grande amor. Na
verdade, aos do melhor amigo do novo marido, depois de dizer que poderia ter
sido ele, não o outro, se, meses antes, na festa inconsequente, tivesse agido
com mais determinação, não tivesse gasto minutos de indecisão. Deu a entender
até que preferia ele, golpe violento que algumas mulheres, na volúvel mania de
dizer o que pensam, deferem sobre a lógica masculina quase binária. Enviou a
foto como uma prova da existência do livre-arbítrio. E de que o amor não é um
fato consumado, algo escrito ou predeterminado, e que Deus joga dados.
O que não pode? Moisés sumarizou
demais. Com a vizinha? Não pode. Com a filha do amigo, a mulher do amigo, a
amiga da mulher? Não pode. Com a cunhadinha? Claro que não. Com a chefe, a
subalterna, a prima, a enteada, a amiga de infância... Não pode? Limites
impostos conseguem se sobressair sobre sentimentos descontrolados? A humanidade
é a síntese da luta entre razão e emoção. E dá certo porque quase sempre a
primeira ganha por nocaute.
Anos depois, ele sentiu um movimento
diferente. "Meu amor", "meu querido", "lindo",
passaram a fazer parte das mensagens trocadas. Cifradas. "Muitos
beijos", "mil beijos", "beijão", também foram
incluídos. Códigos. Vamos sair um dia, vamos tomar um café, vamos passear,
papear, ao teatro, ao cinema, ela sugeria, preciso papear, desabafar, preciso
falar, indicava, preciso de colo, atenção, suprimir uma estranha carência que
nasceu como erva daninha. "Penso em você todos os dias", ela enfim
escreveu numa mensagem bombástica.
Ele ligou, ela não atendeu. Devia
estar com ele ao lado. Ela ligou, ele não atendeu. Estava ocupado. O
desencontro durou semanas. Até um dia, sim, conseguiram se falar. A voz dela,
aflita. Pressa. Urgência. Está difícil, ela disse do nada. Tenho só 30 anos. Às
vezes, parecemos dois amigos. Dois irmãos. Está difícil, ela repetia. Ele vai
viajar. Vamos sair. Precisamos sair. Preciso sair. Estou carente demais.
E ele só pensa numa coisa. Tem
limites? Ele a deseja demais. Quer levá-la para uma suíte presidencial. Quer
despi-la. Tê-la. Quer vê-la nua andando pelo quarto. Quer vê-la nua sobre ele.
Quer beijar todos os pedaços, os cantos, sentir todos os cheiros, a textura de
cada parte. Quer ouvi-la suspirar, rir, gozar. Quer ver os olhos dela embaçar,
revirar. Quer vê-la tímida, abusada, entregue, retraída, culpada, muito
culpada, totalmente culpada e viva! Quer sofrer com ela. Quer ter dúvidas. Quer
ser sufocado por descrenças, indecisões e tormentos. Quer se sentir vivo à
beira de um abismo. Numa corda bamba. Com uma corda no pescoço. Acordado.
Se comecei esse texto com uma frase
feita, termino com outra. Querer não é poder. Não é?
Talvez elas sirvam para reprimir
ambições impossíveis. Falo das frases feitas. Deus não nasceu ontem. É esperto.
Imagina a bagunça, se a cobiça virasse fato.
Se bem que acabei
de me lembrar de outra frase feita. Toda a regra tem... Você sabe.
A imprecisão da frase feita - Marcelo Rubens Paiva
Separações – Antonio Prata
Ele era engenheiro, gostava de filmes de ação e corria na esteira três vezes por semana. Encarava o sexo como uma necessidade fisiológica, uma exigência corporal que surgia mais intensa quanto mais descansado estivesse: ao acordar. À noite, exausto, só queria tomar uma cerveja e dormir.
Ela era pintora, detestava "filme de carro explodindo" e praticava hatha yoga. O sexo, para ela, era "cosa mentale": o desejo ia crescendo durante o dia, a fantasia se desenhando nas cochias do pensamento e só ao se deitar na cama, antes de dormir, começava o espetáculo.
Quando se conheceram, não atinaram para o problema de fuso horário --no jet lag da paixão, toda hora era hora--, mas, assim que o fogo abaixou e o sexo teve de encontrar seu escaninho no armário da rotina, as diferenças apareceram.
Separaram-se faz um mês. Ironicamente, ele sente mais falta dela à noite, enquanto toma sua cerveja e espera o sono; ela sofre mais ao acordar, só, de manhãzinha.
Da primeira vez que ela foi à casa dele, viu na cama desarrumada, nos vinis espalhados pelo chão e na geladeira vazia --meia garrafa de vinho e três sachês de ketchup (vencidos)-- uma postura rock'n'roll, um desprendimento libertador, uma superioridade quase beática.
Da primeira vez que ele foi à casa dela, viu nos tupperwares etiquetados, nas flores da jardineira e no mural do escritório sua possível salvação: sonhou com um futuro de refeições balanceadas, vinis em ordem alfabética e contas no débito automático.
Por seis meses, ela resistiu às toalhas molhadas na cama, aos discos espalhados pela casa e às caixas de pizza no sofá; "A única coisa que eu pedia era pra ele botar o telefone na base. Se você ama mesmo uma pessoa, é capaz de fazer esse mínimo esforço, não é?". Separaram-se faz uma semana. Ontem de madrugada, a caminho do banheiro, ela viu a luzinha verde da bateria, na base do sem fio, e caiu no choro.
Eles gostavam dos mesmos filmes, dos mesmos livros, das mesmas bandas, dos mesmos pratos nos mesmos restaurantes, riam das mesmas piadas, queriam conhecer os mesmos países e ter um filho chamado Frederico. Depois de cinco anos, contudo, se cansaram daquela mesmice. Ela disse que estava pensando em se separar, ele disse que vinha pensando o mesmo. Ontem, ao partir, ela o fez prometer que jamais teria um filho chamado Frederico. Ele prometeu --e pediu o mesmo.
Por dez anos, ele foi absolutamente fiel. Não transou, não beijou nem flertou com nenhuma outra mulher. Nos últimos meses, a retidão começou a pesar em seus ombros. Anda por aí olhando bundas com a voracidade de um remador das galés, deu pra implicar com pequenos atrasos da esposa e pra discordar de seus comentários durante o jornal.
Já ela, nesses dez anos, não foi absolutamente fiel. Transou com um colega de trabalho e com um ex-namorado de adolescência, que encontrou por acaso em Salvador. Nada sério, só desejo: ela tem certeza absoluta de estar ao lado do homem que ama e jamais cogitou trocá-lo por alguém.
Agora, ele chega na sala, senta ao lado dela, olha pra parede e diz que precisam conversar.
Caco Galhardo
A cerimônia do adeus - Gregorio Duvivier
O fim de um livro ou de um amor – Fabrício Carpinejar
Já perdi todo um livro de poemas, na época em que ele era datilografado e não existia ainda computador. Esqueci na mesa do bar do Antonio na UFRGS e jamais recuperei. Deve ter ido para alguma lixeira ou servido de rascunho para um escritório. Guardei o título: Minha Pequena.Lembro que tentei reescrever e fracassei, pois tinha a sensação de tê-lo escrito, não havia mais aquela emoção que me movimentava a desabafar.
O fim de uma relação é igual. É como um livro feito durante meses, verso a verso, que acaba extraviado. Um livro que não existe mais, que tampouco será lido. Só você conhece o valor que estava ali, mais ninguém, a outra pessoa jamais receberá a mensagem por inteiro, jamais compreenderá o quanto você amou, o quanto mantinha fotografias mentais em sua saudade, o quanto se esforçou para dar certo e encontrar o ritmo da felicidade a dois.
Você disse e não disse, você explicou, mas não foi entendido. Sua voz se misturou ao vento, é chuva e não faz sentido gritar pela autoria com o estrondo dos relâmpagos. Não será ouvido, não convencerá de seu talento de amar, não inspirará remorsos com as rimas, não assegurará a longevidade das suas palavras.
Não disporá de chance de revisão dos acontecimentos, da releitura e do lápis sublinhando as passagens prediletas. Não experimentará o purgatório de uma biblioteca. Perdurará o ruído externo, cada um com a sua versão, e não virá à tona o testamento íntimo.
Não tem a prova de que os dias foram reais, de que o romance foi verdadeiro, de que valia a pena insistir pelas brechas dos risos e da cumplicidade em meio ao caos das dúvidas e das brigas. Contará apenas com a solidão de sua palavra contra a dela. De que modo comprovar a hemorragia de um coração que sangrou fora do tecido?
Até você duvida de sua sanidade, até você desconfia que não exagerou, inventou e distorceu as lembranças. Pois o desejo corrompe a memória e modifica os fatos de acordo com as vontades imediatas, que mudam com o sim ou com o não. O que poderia reconfortar é o preto no branco, a letra impressa, o papel juramentado que desapareceu no anonimato.
Não desfrutou de backup e da salvação dos arquivos temporários. É um cansaço sem recompensa. Uma exaustão sem finalidade.
O final de um amor traz a injustiça de um livro extraviado. Morreu escrevendo o que não virou vida e esperança. Talvez tenha sido a sua obra-prima, nunca descobrirá.
PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS
O jardim e o quintal - Fabrício Carpinejar
O amor de hoje – Paulo Germano
No dia seguinte ao fim do namoro, Júlio selecionou 15 mulheres no Facebook. As 15 mais atraentes da lista de amigos. Enumerou todas num caderninho, Aline, Bruna, Fabiana, Flávia, e chorou algumas vezes porque, no meio da pesquisa, não resistia em espiar o perfil da ex.– Nenhuma chega aos teus pés... – ele fungava.
Examinou a lista e fez algumas trocas: era importante que não fossem amigas entre si. Deixou só uma do trabalho e uma da academia, incluiu três que havia conhecido em festas, três que nunca vira pessoalmente, algumas amigas de amigos, a secretária do dentista, uma prima distante, até uma antiga professora e, fechada a seleção, partiu para a próxima fase. O texto.
Mandaria o mesmo para todas, portanto deveria servir para as 15. Não era tão difícil: bastava soar sensível porém decidido. Júlio estava machucado pelo fim do namoro, mas, com mais de 30 anos e uma experiência razoável, julgava saber o que as mulheres queriam. Em cinco minutos, já havia digitado no Word:
“Oi, Fulana. Tudo bem?
Sensível mas decidido. Júlio foi abrindo as janelinhas, por ordem alfabética, Aline, Bruna, Fabiana, Flávia, Joana, Laura Lima, Laura Maia, Marília, Marina, deu Ctrl C no Word e começou a colar o parágrafo nas janelas, apenas trocando “Fulana” pelo nome das moças. Quando enviou o texto para Viviane, a última das 15, teve um ataque de choro e lembrou do que sua mãe dissera mais cedo:
– Respeita o teu luto, meu filho. É o fim de um namoro, respeita o teu luto.
Mas que tempo havia para luto? Com tanta gente disponível, com um dedo no enter lhe abrindo qualquer caminho, não seria uma idiotice sucumbir à dor e à reclusão de um eremita? Tudo bem, é verdade que, se parasse para pensar um pouquinho, talvez sua mãe estivesse... Paula respondeu! Paula respondeu! Paula era uma loira da academia, tinha pernas compridas, postura elegante e um sorriso, cara, que sorriso ela tinha! Paula, Paula, Paula!
“Nossa, Júlio, muito obrigada”. Que grande início de mensagem, que golaço ele marcaria! “Só que, nesta semana, só posso hoje”. É hoje, é hoje, é hoje!!!
Às quatro e meia da manhã, com Paula já dormindo ao seu lado, Júlio conferia no celular outras oito respostas. Havia apreciado a noite com Paula, não podia negar.
– Adorei. Obrigada por tudo – ela disse quando acordou.
– Desculpa ser tão direto, mas preciso dizer: eu te amo.
Júlio realmente a amava. Naquele dia, ele a amava. Como no dia seguinte tentaria amar Pâmela.
Adão Iturrusgarai
O cavalheiro - Paulo Germano
Sempre fui um cavalheiro, doutor.
Nunca deixei de abrir uma porta para uma mulher, nunca permiti que elas
pagassem a conta, não posso ver mulher carregando peso nem fazendo esforço – é
um cacoete, é automático, sempre me orgulhei disso. Só que a minha nova
namorada, doutor, ela odeia essas coisas. Ela fica furiosa, o senhor precisa
ver.
Ontem mesmo, a gente saía da Redenção, na Osvaldo Aranha, e eu pedi
licença para caminhar do lado de fora da calçada. Sempre aprendi que o lado de
fora é o lugar do homem, porque, se um caminhão passa e joga água no casal, é o
homem que protege os dois, e, se um carro desgovernado invade a calçada, é o
homem que é atropelado. Mas ela disse – e isso me fez mal –, ela disse que isso
é machismo.
Falei que eram só gentilezas, nada
de machismo, e ela insistiu que ser gentil apenas com mulheres é uma forma de
preconceito. Mas que chatice, doutor! Perguntou se eu ajudaria um homem com
dificuldade para carregar uma mala pesada, ou se eu pagaria a conta de um
amigo. Claro que é diferente, falei que as mulheres são, e todo mundo sabe que
são, um pouco mais fracas. Quase levei um soco na cara! Ela se enfureceu
comigo, doutor!
Falou que o cavalheirismo é
machista por partir dessa premissa de que a mulher é mais fraca fisicamente,
economicamente ou emocionalmente. E que só uma sociedade patriarcal – ela usa
muito essa palavra – que legitima a inferioridade e a subordinação das mulheres
poderia aplaudir esse tipo de conduta.
Quer dizer, veja só: um cara como
eu, segundo ela, considera tão grande a fragilidade das mulheres, que os homens
precisariam protegê-las até nas coisas mais triviais, como abrir uma porta. E
aí, doutor, achei que ela me ofendeu quando disse assim: “Um homem obcecado por
proteger uma mulher não a enxerga com igualdade, mas como alguém inferior”. Meu
Deus do céu, doutor! Eu adoro as mulheres! Eu realmente acho as mulheres mais
profundas, mais sensíveis, mais inteligentes do que os homens!
Poucas coisas me satisfazem tanto
quanto abrir a porta para uma mulher, velhinha ou novinha, e sempre encarei
esse gesto como um ato de reverência, não de dominação. Mas será que é
machismo, doutor? Porque, de fato, hoje as mulheres trabalham, têm plenas
condições de dividir a conta. A questão é que, por algum motivo, sinto-me mais
homem pagando tudo sozinho, sabe? Isso quer dizer que também sou vítima da
sociedade machista?
O que eu faço, doutor? Devo só
começar a dividir as contas, ou também devo parar de abrir as portas e de andar
do lado de fora da calçada? Não sei mais o que faz um homem, doutor, me ajude!
AMELY - PRYSCILA VIEIRA
Não abandonamos o quarto no domingo - Fabrício Carpinejar
O cavalheiro - Paulo Germano
Não abandonamos o quarto no domingo - Fabrício Carpinejar
21 de abril de 2013
Acordamos e não nos levantamos. Desde que nos apaixonamos, a cama é o nosso acampamento.Despertamos cedo e ficamos conversando, recapitulando a rotina, rindo à toa. É um domingo inteiro assim, entre travesseiros, almofadas e edredom. O quarto permanece trancado, as cortinas fechadas, o jornal empilhado na porta.De vez em quando, um dos dois é sorteado como emissário da geladeira, para buscar frutas ou água. É uma visita rápida pelos demais aposentos, na ponta dos pés para não assustar as pálpebras.Não é aconselhável demorar pela sala, para a claridade não quebrar o encanto e nos obrigar a sair à rua. Somos sonâmbulos um do outro. Viciados um no outro. Intoxicados um do outro.Passamos os dias no colchão travando histórias e revelando segredos. A cama é o nosso hotel, nossa casa na serra, nossa residência de praia, nosso bunker, nosso pub, nossa água-furtada. A cama é o que precisamos do mundo, o resto pode levar.Reduzimos o universo àquele estrado de madeira, e nos divertimos com os problemas antigos, com as dores antigas, com aquilo que nos antecedeu e ainda não era a gente.Na verdade, sinto que estudo para o vestibular de sua memória. Olho o teto coberto de fórmulas, fotos, cenas, equações e cálculos de sua vida. Decoro suas sobrancelhas, seus suspiros, sou um mímico atento de seu rosto.Faço perguntas despropositadas - nunca prevejo o que vai cair na prova do amor. Interesso-me por qual lugar que sentava no colégio Champagnat. Me diz que era no fundo, com as costas coladas na janela.E você me interroga a cor da minha térmica no jardim de infância do Santa Inês. Falo rápido que era azul.Quem teria coragem de fazer essas questões senão quem ama? Mais: quem responderia com naturalidade essas questões senão quem ama?Não nos assustamos com nenhuma gratuidade. Não estranhamos a curiosidade ou nos envergonhamos da loucura. Intimidade é não temer o que será feito com nossas palavras.Deitamos de lado, atravessados, você em meu peito, eu encaixado na moldura de seu pescoço. Giramos para esquerda, tonteamos para direita, argumentamos, confortamos, descrevemos nossos amigos, confessamos nossos pecados, sussurramos bobagens.Os ouvidos se tornam rápidos como a boca. Falo e ouço na mesma hora. Nossas mãos se beijam, nossos pés se beijam. Tudo é intenso entre nós a ponto da lembrança criar a experiência. É como se nossos olhos fossem aquela máquina polaroid cuspindo fotos.Os vizinhos devem suspeitar que já morremos, mas nunca estivemos tão vivos.
PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS
A geração que só quer viver amores de cinema - Ruth Manus
PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS
Ota
Em que fase você está? Pegar ou namorar? Jaqueline Brendler
Adão Iturrusgarai
Nicolas Rodrigues
Lésbicas: Por que todas as garotas são hétero?
Garotas héteros: Por que todos os caras gostosos são gays?
Gays: Por que todos os caras são héteros?
Bissexuais: Por que todas as pessoas gostosas são comprometidas?
Pansexuais: Todo mundo é gostoso, o que eu faço?
Assexuais: Que?
Ota
Divagações sobre o amor – Martha Medeiros
Garfield - Jim Davis
Misto-quente – Luis Fernando Verissimo
Combinaram de se encontrar para o almoço. Ela tinha uma coisa importante para dizer. Decidiram que ela diria o que tinha para dizer antes de pedirem a comida. Seguinte, disse ela. Nosso namoro acabou.Ele levou um choque.
– O quê? – Ganhei uma bolsa de estudos no Canadá. Vou ficar fora um ano.
– Mas...– Nenhum namoro resiste a um ano de separação. É melhor parar agora.
Dito o que tinha para dizer, ela passou a estudar o menu, enquanto ele tentava se recuperar do choque.
– Mmm... – disse ela. – Acho que vou pedir uma saladona, depois uma vitela ao molho branco com batatas a vapor e, deixa ver... Purê de maçã. E umas alcaparras. E você?
Ele continuava a olhar fixamente para ela, como se estivesse em transe. Finalmente falou:
– Um misto-quente.
– Um misto-quente? No almoço? A comida aqui é muito boa. Pede outra coisa.
– Eu quero um misto-quente.
– Você ficou sentido...
– Não fiquei sentido. Só quero um misto-quente.
Quando tomou os pedidos, o garçom apiedou-se dele.
– O senhor quer alguma coisa com o misto-quente? Ketchup? Mostarda? Fritas?
– Só um misto-quente. Um simples misto-quente. Um despretensioso misto-quente. Presunto e queijo entre fatias de torrada. Só. O básico. Sem adornos. Sem complicações. Intocado pela inconstância humana. Incapaz de uma de uma desfeita ou de uma crueldade, seja com quem for.
O garçom desculpou-se e foi tratar dos pedidos. Ela disse:
– O misto-quente é contra mim. É isso?
– O misto-quente não é contra nada nem ninguém. Um misto-quente é um misto-quente.
– Você está revoltado comigo e...
– Não estou revoltado. Estou em paz. A perspectiva de um misto-quente me aquece o coração. Estou pairando sobre as maldades do mundo, a mesquinhez dos homens e a traição das namoradas. Você sabe que existe uma seita no Nepal que só se alimenta de mistos-quentes? Dizem que purifica o espírito, ajuda a digestão e leva à sabedoria suprema. Parece que o queijo e o presunto representam a dualidade alma/corpo em todos os seres, o queijo simbolizando a alma e o porco o corpo, e a torrada o envelope cósmico que...
– Quer parar com isso?! – E além de tudo, eu nunca simpatizei com o Canadá.
Tute
Hagar - Dik Browne
CJ
As aventuras da família Brasil
Ciúmes - Luis Fernando Veríssimo
Lilian desconfiou que Arthur iria deixá-la. Que seu amor por
ela estava acabando. O Arthur nem a chamava mais de Lili! Lilian decidiu que a
solução era provocar ciúmes em Arthur. Como? Comprou um buquê de flores,
escreveu num cartãozinho Lilian: me diga quando..., assinou depois de pensar
muito num bom nome para amante Renê e mandou entregarem o buquê com o
cartãozinho no seu próprio endereço.
Deu certo. Foi o Arthur quem recebeu as flores na porta.
Disse:
— Flores para você.
Lilian, fingindo surpresa: — Flores? Para mim?
— E um cartãozinho. — Um cartãozinho?
— Posso abrir?— Não! Deixa que eu...
Mas Arthur já estava lendo o cartãozinho.
— Muito bem. Quem é Renê?
— René? — “Lilian, diga quando”. Assinado, Renê.
— Eu não tenho a menor...— “Diga quando” o que? Hein? Hein?
E quem é esse
— Renê? — Eu...
O tapa foi tão forte que Lilian caiu de costas no sofá.
Quando se ergueu, estava sorrindo. O Arthur sentia ciúmes. O Arthur ainda a
amava, afinal. O Arthur ainda a amava! Paft. Novo tapa.
Do sofá, eufórica, Lilian gritou: — É uma brincadeira! Fui
eu que mandei as flores. Fui eu que escrevi o...
Não pode terminar porque o Arthur começou a sufocá-la com
uma almofada do sofá.
É preciso explicar que Lilian não só vivia com Arthur há
apenas seis meses, tempo insuficiente para se conhecer uma pessoa, como não
entendia a raça dos homens. Homem não tem ciúmes porque ama.
Ciúmes não é uma questão entre o homem e a pessoa que ama.
Ou é, mas a pessoa que ele ama é ele mesmo. Ciúmes é sempre entre o homem e ele
mesmo.
— Quem é esse Renê? Hein? Hein?
Súbito, o Arthur parou de sufocá-la com a almofada.
Levantou-se.
Tinha se dado conta de uma coisa. Disse:
— Eu sei quem é esse Renê. Eu conheço esse Renê!
A Lilian ainda tentou chamá-lo de volta. — Não existe nenhum
Renê! Fui eu que inventei!
Mas o Arthur já tinha saído de casa, depois de passar no
quarto e pegar o revólver da gaveta da mesinha de cabeceira.
Lilian passou o resto do dia rondando pela casa,
nervosíssima. Quando ouviu o ruído da chave na fechadura, correu para a porta.
O Arthur entrou sem olhar para ela.
— Onde você estava? O que aconteceu?
Arthur não respondeu. Foi para o quarto trocar de roupa.
Lilian foi atrás. Havia respingo de sangue na camisa do Arthur. O tiro fora de
perto. Ele não trouxera o revólver de volta. Provavelmente o jogara em algum
matagal. Lilian:
— O Renê do cartãozinho...Arthur tapou a sua boca com a mão.
Disse:
— Não se fala mais nesse nome nesta casa. Nunca mais. Está
ouvindo?
E depois: — Esse aprendeu a não se meter com a mulher dos
outros.
Naquela noite, nenhum dos dois dormiu. Lilian pensando
“Renê, Renê... Quem é que eu conheço com esse nome? Quem é esse Renê, meu Deus?
Ou quem era?”
De madrugada, amaram-se loucamente. O Arthur dizendo:
— Viu o que eu faço por você? Viu?
Era a primeira vez que se amavam assim em pelo menos três
meses. Ele até a chamou outra vez de Lili.
Durante dias, Lilian procurou nos jornais uma notícia sobre
a morte de Renê. Nada no noticiário policial. Nenhum registro de
desaparecimento. Nada nos avisos fúnebres. Quem seria aquele Renê?
No fim de mais seis meses, Artur anunciou que iria deixar
Lilian.
— Não vai não – disse Lilian.
E disse que no momento em que ele saísse pela porta, ela
telefonaria para a polícia. A polícia gostaria de saber do fim de um certo
Renê...
— Você faria isso, Lili?
— Experimenta. — Arthur ficou.
O amor é interesseiro – Walcyr Carrasco
Estou aqui, com mais de 60, há alguns anos sozinho e me considero, enfim, na roda. E daí?Amar é difícil. Principalmente, porque a gente costuma se apaixonar por alguém que não existe e coloca todas as expectativas na primeira pessoa que aparece pela frente. Bastam alguns miados e pronto – já se fala em amor, em compromisso e relação. Você e eu somos românticos, apesar de todos os ossos que tivemos de roer na vida. Acreditamos naquele amor puro, translúcido como um cristal. Ah, meu Deus, será que algum dia existiu? Só se for na imaginação dos escritores românticos.
Mesmo um grande autor de livros românticos como Machado de Assis a certa altura mudou de gênero. Tornou-se realista e criou uma suspeita Capitu, que ninguém nunca saberá ao certo se traiu – nem mesmo seu sofrido marido, Bentinho. O que terá feito Machado de Assis tornar-se realista? Talvez tenha descoberto que o amor não é um sentimento único como um vaso de alabastro, mas um conjunto de sensações e, sim, interesses.
Estou aqui, com mais de 60, há alguns anos sozinho e me considero, enfim, na roda. Sempre ouço perguntas, se tento um novo relacionamento.
– O interesse não é porque você é autor de televisão? – Tem certeza de que não é pela grana? – Será que gostam de você por você mesmo?
Aí me faço a pergunta: quem sou eu mesmo? Que identidade é essa, única, inexplicável, que define uma pessoa? A alma? Mas alguém está habilitado a decifrar minha alma? Sinceramente, nem eu! Meu corpo? Uau! Depois dos 60, é preciso ser sincero consigo mesmo. Não ganharei mais o título de Mr. Brasil, não serei campeão de natação, muito menos terei barriguinha de tanque. Posso fazer um esforço para não me tornar um barril, mas é isso aí. “Eu mesmo” é uma entidade que não existe de modo absoluto. E se fosse mendigo e pedisse esmola nas ruas? Seria “eu mesmo”? Em tese, continuaria a mesma pessoa. Mas meus sentimentos, raivas, aparência física seriam bem diferentes. Talvez me apaixonasse por alguém que me oferecesse um prato de macarrão. Perdidamente! Sim, poderia continuar a ser um sujeito sensível.
Mas alguém descobriria, se eu catasse lata pela rua? E se tivesse seguido uma de minhas outras vocações e fosse pesquisador de biologia, área que amo? Ou historiador (cheguei a cursar até o 3o ano da faculdade de história da USP)? Meus papos seriam outros, minhas companhias também, talvez até meus dentes. As possíveis vidas que poderia ter tido (um acidente, uma deficiência também contam) me levariam a diferenças na forma de ser. Talvez nem sorrisse – mas grunhisse diante de uma existência malévola. Não seria esse “eu mesmo” que sou agora. Recentemente, um ator famoso, com mais de 80, casado com uma moça na casa dos 20, rebateu as críticas:
– Ela cuida de mim agora. Quando me for, cuidarei dela.
Sim, ela pode ter interesse na herança. E daí, se proporciona uma vida agradável a seu velhinho? Conheci uma mulher de família rica que, depois de dois maridos, casou-se com o personal trainer. Um cara ótimo. Ajuda com os filhos dela, nos cuidados da casa, tudo. Aceita alegremente os luxos que ela proporciona. Ouvi muitas críticas ao rapaz. Mas quem é o interesseiro? Ele no dinheiro dela? Ou ela em seu corpo jovem, musculoso e na dedicação? Para mim, é apenas uma troca justa. A gente costuma ser dramático e achar que, um dia, ela aparecerá estrangulada, enquanto ele foge com as joias. Na maioria dos casos, não é o que acontece. Eles vivem a relação, sentem-se felizes, e acham que isso é amor.
Fui criado para acreditar no sentimento avassalador, do príncipe que dança com Cinderela e se apaixona perdidamente. Bem, vamos combinar, Cinderela era interesseira. Nem conhecia o rapaz, mas, já que era príncipe e tinha castelo, casou. O príncipe provavelmente era podólatra, pois saiu de sapatinho na mão, em busca do pezinho da moça. Não importavam o rosto, os cabelos cheios de cinzas e gravetos, nada. Só o pezinho. Não diz a lenda que foram felizes para sempre?
Meses atrás, um amigo diretor, já bem maduro, saía com uma moça lindíssima, cobiçada pelo país todo. Perguntei:
– Mas ela gosta de você?
Ele respondeu, sábio: – Sabe, sou um pacote. Do pacote, ela gosta sim.
Nunca ouvi maior verdade. Sou um pacote, você provavelmente também é. É esse o grande segredo do amor. Não é uma coisa única, quase uma entidade que nos possui. Mas um belo pacote, bom de desembrulhar.
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