Na última
quarta-feira, em uma grande farmácia da rua Inácio Pereira da Rocha, na Vila
Madalena, uma senhora de uns setenta e muitos anos entrou com uma receita
médica e a entregou a uma das atendentes. Ela falava rápido, falava muito, e
repetia sem parar que estava bastante aflita porque faria uma cirurgia no dia
seguinte. A mocinha informou que não tinha aqueles remédios e, então, a senhora
começou a gritar muito alto pedindo mais respeito. Pedindo que parassem de maltratá-la
tanto e expô-la daquela maneira.
Os
bisbilhoteiros mais desinibidos correram pra garantir lugar no gargarejo do
show, dava pra imaginar babinhas sabor caramelo escorrendo de seus olhos
gulosos por rechaçamentos. Estava instaurada a promoção "leve 200 escovas
coloridas Oral B e mais um pocket-espetáculo do horror pelo preço de uma escova
colorida Oral B".
Não ficou
exatamente claro, a menos para mim que estava um pouco distante da confusão, se
a funcionária fez algo bizarro como beliscar a vovó ou se tratava-se mesmo de
um surto sem sentido (ainda que eu acredite que qualquer surto tem sempre
milhares de sentidos o tempo inteiro, a vida toda). A única informação
disponível que percorria todos os corredores tão bem aprumadinhos e claros e
higienizados era de que "a veia" era mesmo fora da casinha.
Um rapaz
fortão chegou em defesa da atendente "ela só tá trabalhando, dona".
Clientes engrossaram o coro em defesa da menina bonitinha: "Velha mal
educada, sem noção... veia doida!". A senhora começou a tremer muito e
dizer "vamos ali pra fora, vamos ali pra fora". E todos os
funcionários da farmácia riam alto, a atendente coadjuvante do circo gargalhava
descontroladamente, desconhecidos travavam intimidades instantâneas e
esfuziantes na fila "gente, que velha louca é essa?", alguns
balançavam a cabeça desaprovando (ou estavam tentando afugentar o pensamento de
que somos todos feitos da mesma matéria que aquela senhora?).
Eu fiquei
imóvel, endurecida, chocada, arrebatada. Ter quase 80 anos, ter uma cirurgia pra
fazer no dia seguinte e não ter o direito a ser maluca? Essa vida é de uma
dureza cortante. A senhora saiu praticamente sob vaias. Sua última frase antes
de abandonar uma plateia excitada com o ridículo do outro (portanto, fora de
si) foi: "Vocês deveriam ter me ajudado". Sim, deveríamos. Meu Deus
do céu como deveríamos!
Esse texto é
meu pedido de desculpas a essa mulher. Eu não ri, não vibrei, não fiz amigos.
Eu senti compaixão, amor, empatia, afinidade, vontade de abraçar a senhora,
saudade dos meus avós, impulso de sair pela cidade perguntando se alguém
precisava de ajuda pra não ficar louco. Ou pra ficar louco. Ou companhia pra
não enlouquecer sozinho. Eu odiei com todas as minhas forças cada funcionário
jovem que zombou da senhora, eles esqueceram que têm mães, avós, tios, pais e,
muito em breve, a visita permanente da própria velhice. No entanto, eu não fiz
nada.
Eu deveria
ter invadido nua o quadradinho VIP dos remédios controlados. Deveria ter
imitado um rinoceronte bebê alado chafurdando em algodões e fraldas. Deveria
ter distribuído 49 supositórios besuntados em gel Dorflex Ice Hot para aqueles
desgraçados todos que, unidos pela segurança de uma falsa sanidade, apontaram
dedos tão debochados quanto acovardados. E se, ou quando, alguém ousasse rir,
eu mostraria, por fim, tatuado em meu esfíncter não depilado, a única verdade
que tentamos todos os dias mascarar nas ruas ou esfregar no banho:
#somostodosvelhalouca.
Laerte
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