Armandinho - Alexandre Beck
Meu pai morreu. Muitas e muitas vezes.
De tiro, de frio, enforcado, queimado, crucificado
Matou uma velhinha para roubar joias
Assaltou bancos, invadiu casas
Foi traficante, viciado em drogas e em jogos
Meu pai foi prostituta e menor infrator
Foi preso na África, na Rússia, em Cuba, na França, no Uruguai
Foi torturado no Brasil
Meu pai fundou partidos, fez revoluções, combateu moinhos
foi humilhado, injustiçado e condenado
Foi vendido como escravo, passou fome
Escreveu livros, pintou quadros, pichou muros
Foi bailarina, padre, freira, remador, montanhista, vagabundo
Apaixonou-se, foi traído e traiu, fez aborto
Meu pai foi perseguido por ser homossexual
Morou em prédios de luxo, assentamentos, favela e calçadas
Lutou em guerras, foi cirurgião, político, operário e agricultor
Apanhou da polícia, do padrasto, resolveu crimes
Salvou vidas, foi professor, sofreu como cão e como gente
Teve medo, alegrias, inveja, ciúme, ódio, remorso, mágoa e esperança
Sentiu e sofreu todo tipo de preconceitos
Foi negro, branco, índio, mulher
Cristão, judeu, muçulmano, budista, ateu
Meu pai viveu muitas vidas, em muitas peles
Acredita que quanto mais certezas temos, menos sabemos
E que não se deve julgar uma pessoa
se não se é capaz de compreendê-la
Meu pai lê livros
HAGAR - DIK BROWNE
O que dizer por todos esses livros no zoológico das estantes? – Fernando Bonassi
Mas... com quantos livros se faz uma pessoa?
Livros de tabuada pra conta calculada. Livros de auto-ajuda praquilo que não muda. Livros de lazer pra quem tem muito o que fazer. Livros de direito pra homens de respeito. Livro de reza quando a coisa pesa. Livros em liquidação para leitores sem condição. Livros de oratória, livros de ortografia, livros de culinária, livros de psicologia. Livros em orgia. Livros pornográficos levados pra cama. Livros de etiqueta pra pôr a mesa. Livros sádicos. Livros trágicos. Livros míticos. Livros pro alimento do espírito e dos editores. Livros pra vaidade dos escritores. Livros especiais. Livros espaciais. Livros de colecionadores. Livros de informática são livros de computador. Livros de condolências são livros cheios de dor. Livros ensinam a ler. Livros pro humor. Livros pra quem quiser ver. Livros loucos pra saber. Livros com ilustração auxiliam a compreensão. Livros beijados, livros mordidos. Livros apalpados, livros espremidos. Livros lambidos como frutos escorridos. Livros embebidos. Livros embevecidos. Livros abraçados como casais apaixonados. Livros são romances cultivados. São feridas, são repastos. Livros passados de mão em mão, como boas biscas. Livros de arte. Livros de artistas. Páginas arrancadas sem vergonha, livros fumados com maconha. Livros de piada. Sacos de risada. Palavras cruzadas e frases alinhavadas. Livros depenados. Livros invocados. Livros em conflito. Páginas de livros processados em juízo. Livros censurados. Livros permissivos. Os livros das sopas, os livros dos sonhos, o livro dos molhos. Livros molhados nos clubes de livros. Livros de ocorrência. Livros policiais. Livros de referência. Livros originais. Livro pra orientação num universo em expansão. Livros equivocados. Livros inquisitivos. Livros engavetados. Livros recolhidos. Livros esmagados nos ônibus lotados. Livros encoxados, livros encolhidos. Livros espalhados por baixo dos estrados. Livros deflorados. Livros chacoalhados. Livros escondidos. Livros arremessados nos divórcios acalorados. Livros feito espadas. Livros como escudos. Livros que berram e livros que são mudos. O pior livro de cego é aquele que não quer se ler. Livros na ponta da língua. Livros com a ponta dos dedos. Livros engrossam, como rapazes. Livros melhoram, como mulheres. Livros murchos, livros sujos, livros finos. Livros como manda o figurino. Livros de moda. Livros em falta. Livros de sobra. Livros que cheiram bem e livros que cheiram mal (livros de renúncia fiscal). Livros roubados. Livros comprados. Livros vendidos. Árvores de livros abatidos. Livros de cabeceira. A fertilidade dos livros de madeira. Livros exibidos como corpos oferecidos. Livros safados. Livros falados. Livros sorvidos. Livros conservadores nas gavetas dos doutores. Livros emocionais pra cólicas menstruais. Livros de regime. Livros de política. Livros de ótica. Livros de crítica. Livros diários são livros crônicos, são livros cômicos, são livros tônicos. Dicionários de livros explicados. Raciocínios apalavrados. Teses de mestrado. Bolsas de livros financiados. Tomos, tombos, citações. Parágrafos, capítulos, correções. Publicações, polêmicas, opiniões. Livros importados. Livros transportados. Livros traduzidos. Livros encomendados, livros encarecidos. Livros encardenados como faraós embalsamados. Livros aposentados. Livros comentando livros. Livros lavrados em cartórios hereditários. Livros aplicados e homens especializados. Diplomas de livros emparedados. Livros emparelhados. Bibliotecas de livros amontoados. Sebos empoeirados. Livros decorados são livros encruados são livros mal comidos. Livros devorados por vermes aculturados. Livros bichados. Livros suados. Livros vencidos. Caixas e caixas de livros caixa. Arquivos mortos em pandemônio, as fortunas dos livros de patrimônio. Livros de capas trocadas, capas disfarçadas, capas ofensivas. Livros de capas ousadas. Capas proibidas. Os livros contra capas. Os lidos pelas costas. Livros sádicos, livros cínicos, livros mágicos. Livros lívidos, livros épicos, livros bíblicos. Livros lidos como vícios. Livros de sacrifícios. Todo homem é um livro aberto. Todo livro acha que é certo. Escreveu, não leu, continua sendo livro. Já no início era verbo! Larga a mão de ser burro e leia.
A Estante - José Jorge Letria
Leiam - Marcelo Rubens Paiva
Malvados - André Dahmer
O rapaz que habitava os livros – Valter Hugo Mãe
Barafustaram comigo, nem escutaram o que eu queria que
entendessem. Diziam que os livros queimavam os olhos, eram diurnos, não serviam
para as noites. As regras do nosso colégio interno, para meninos casmurros como
eu, mandavam assim.
Queriam os livros no corredor. As luzes apagadas às nove.
Eu ainda deitei mão a alguns volumes, toquei-lhes brevemente
igual a quem cai num precipício e procura agarrar-se, mas não me deixaram nada.
Apenas o candeeiro já apagado, como se a luz tivesse morrido de tristeza.
Adormeci muito mais tarde, de todo o modo. O coração rasgado
em papelinhos pequenos. E uma gula esquisita embrulhada no estômago parecia
dizer que eu não havia jantado.
Fui ver a minha nova estante logo pela manhã.
Era um bocado de espaço arranjado entre tralhas meio
esquecidas. Fiquei ofendido. Os livros não esquecem nada. Eles são para sempre
a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria
natureza. Embora, na verdade, eles nem se devam importar, porque podem esperar
eternamente.
Alguém colocara uma pequena placa dizendo: não alimente os
animais. Fiquei sem saber se queriam dizer que os livros eram bichos comendo as
nossas ideias ou se seria eu um devorador de páginas, alimentado de palavras
como as histórias. As histórias podem comer muitas palavras.
Pensei: os meus queridos livros. Era o que pensava e sentia:
os meus queridos livros. Olhava-os como se estivessem vivos e pudessem sofrer.
Como se pudessem também entristecer.
Gostei de colocar a hipótese de os livros serem como bichos.
Isso faz deles o que sempre suspeitei: os livros são objetos cardíacos. Pulsam,
mudam, têm intenções, prestam atenção. Lidos profundamente, eles estão
incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros.
Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência.
Os livros estão esbugalhados a olhar para nós. Quando os
seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar para nós.
Os meus colegas ficaram todos a rir-se de mim. Eu era
conhecido como o rapaz que perdia a hora de dormir. Tinha a cabeça na lua,
diziam. Não me importei nada. Rirem-se de nós pode ser só um erro no ponto de
vista. E eles, todos eles, estavam errados.
A primeira vez que vi um livro, que me lembre, era um que
estava aberto, pousado sobre a mesa, com as folhas em leque como se fossem uma
colorida flor contente.
Podia ser uma caixa esquisita para arquivar pétalas secas,
podia ser para guardar documentos ou cartas de amor. De perto, era afinal um
livro muito branco, cheio de palavras impressas. Julguei que podia ser um
bordado miudinho. Um enfeite para que as páginas ficassem bonitas. Pensei que
fosse uma prenda de enxoval.
Depois, compreendi, era o modo silencioso das conversas.
Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar
com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos
anos.
A morte não importa muito para os livros.
Mais tarde, aprendi que os livros acontecem dentro de nós.
Claro que eles podem ser bonitos de ver, mas são sobretudo incríveis de pensar.
Eu disse que ler é como caminhar dentro de mim mesmo. E é verdade. Quando lemos
estamos a percorrer o nosso próprio interior.
Uma menina do colégio perguntava-me sempre se eu queria
brincar de coisas bonitas. Brincar de beleza, dizia assim. Era igual a ficarmos
cheios de delicadezas a fazer de conta que adorávamos tudo: os puxadores velhos
das portas, os livros de álgebra, as meias rendadas da professora, a sopa de
beterraba à hora do jantar no refeitório ou o cão zangado do guarda noturno.
Servia de maneira divertida para fazermos de conta que o mundo era maravilhoso
e, subitamente, o mundo inteirinho parecia mesmo maravilhoso. Isso era tão bom
de sentir.
Um dia, eu disse: vamos brincar à beleza das coisas que se
pensam, como as que se lêem. Porque as coisas que se lêem precisam de ser
pensadas. E ela perguntou: as que existem ou as que não existem? E eu disse:
todas. As coisas todas que pudermos imaginar.
Então, ela propôs: pássaros com trombas de elefante a voar
sobre cabeças de mulheres com cabelos de raízes de árvores. Rimos muito e eu
exclamei: que lindo. Repeti, lentamente: pássaros com trombas de elefante a
voar sobre cabeças de mulheres com cabelos de raízes de árvores. Depois
acrescentei: chávenas de chá com bocas falantes que ferram as mãos de quem as
tenta pegar. Rimos muito e ela exclamou: que lindo. Repetiu: chávenas que
ferram.
Ela disse: carros com pneus feitos de batatas gigantes que
têm pêlos como as pernas dos homens e a transportar famílias de galinhas
felizes. Rimos e eu exclamei: que lindo, adoro galinhas felizes. Repeti: carros
com famílias de galinhas felizes.
E se fosse um homem com tartarugas ao invés de olhos? Ia ver
muito devagarinho. E outro que tivesse um canguru ao invés de boca? Ia falar
aos saltos.
Uma árvore que tivesse braços de pessoa ao invés de troncos
e segurasse ninhos de cegonhas nas mãos. Que lindo! Depois, eu disse: os meus
pais a darem um beijo. E os meus avós. E ela respondeu: e os meus também. Os
meus também. Rimos, e exclamamos subitamente em conjunto: que lindo.
Fui dizer-lhe que me haviam levado os livros do quarto.
Estava igual a sozinho. Absolutamente sozinho a noite inteira. E ela respondeu:
isso é feio. Sabia bem que importância tinham para mim as histórias. Ela
perguntou: e agora? Eu respondi: passo os dias à espera dos intervalos para ler
um bocadinho. Passo as noites a sonhar à pressa para poder acordar e voltar a
ler. Ela respondeu: sonhar à pressa é uma pena.
Quando eu sonhava que lia, acordava. Parecia um castigo.
Era comum, subitamente, que eu me esquecesse de tudo durante
os intervalos. Corria para os bancos no lado da frente do colégio, à vista dos
janelões principais, e aí deitava os olhos às letras e a alma inteira à
imaginação. Quando era hora de entrar, tantas vezes algum colega vinha
cutucar-me. Diziam: anda, seu distraído. Anda embora.
Um dia, ninguém me cutucou. Fiquei apenas caminhando dentro
de mim mesmo, o que era diferente da solidão.
A professora mandou dois rapazes aos janelões da frente a
chamar por mim. Assim chamaram. Mas eu, juro muito, não os ouvi.
Voltaram para dizer à professora: parece que se mudou para
dentro do livro porque não ouve a nossa voz. Usamos os binóculos da sala de
ciências e vimos bem, senhora professora. Ele sorri. Está feliz.
Isso levantara o problema de saber como trocar a felicidade
pelo regresso à aula.
Há objeto mais misterioso e subversivo que um silencioso livro? Roberto DaMatta
Um dos maiores
amantes de livros que tive o prazer de conhecer, Gilberto Schwartsmann,
realizou uma exposição na Academia Nacional de Medicina, tendo como tema a obra
do escritor Jorge Luis Borges, que, na verdade, foi uma viagem em torno dos
livros fundadores do que foi chamado de “cânone ocidental”.
Obras
emblemáticas porque foram criadas em paralelo, contrariando o estilo de pensar
lógico e prático dos “livros sagrados” e dos códigos jurídicos e científicos,
que conjuravam pecados, legitimavam poderes e traziam progresso.
Nessa mostra
apadrinhada pela obra de Borges, descortinamos narrativas determinadas pelo
viés muitas vezes visto como ofensivo ou pecaminoso – um universo de alusões,
contradições, mentiras, confissões e verdades inverossímeis, mas verdadeiras no
que classificamos como “literatura”. Essa esfera da vida na qual a consciência
conversa consigo mesma num exercício libertador como faz prova a obra de
Borges.
Porque Borges –
como, entre outros, Swift, Twain, Kafka, Poe, Carroll, Hesse, G. Rosa – foi um
escritor cuja obra não foi orientada pelo que o antropólogo Marshall Sahlins
chamou de “razão prática” – centrada e voltada para o funcionamento e o
controle da “realidade” –, mas pela luminosidade arriscada da fantasia.
Do memorioso
Funes, que jamais esquecia e, assim, não tinha memória nem história, ao padrão
fantasioso no qual as perspectivas se perdem pela ânsia infinita de
classificações babilônicas incrustadas na luta entre o prático e o teórico.
Eis uma obra na
qual o progressismo enfrenta uma sofisticação intelectual que lhe é oposta e
paralela – um pensamento mais selvagem do que fantástico, competidor dos
manuais “how to do”, que ensinam a transformar a agonia da condição humana num
sorvete.
Quem ama e
respeita os livros sabe das suas magias e acaba confrade de Kundera, Mann,
Hemingway, Maupassant, dos irmãos Azevedo, de Eça e do Machado cortante do
nosso homem de Assis. Mulato liminar que – certamente movido por essa dúvida –
foi um refinado demônio capaz de desmascarar (mascarando), com sua
contraditória igreja do diabo e com o aval da nossa sereníssima República, a
hipocrisia nacional.
Há objeto mais
misterioso e subversivo que um silencioso livro? Fechados e mudos, como os
túmulos, eles só se revelam quando cavoucados por algum perverso coveiro...
Alguém que deseja perigosamente ressuscitá-lo. Aberto, ele sai de sua quietude
para pôr a nu suas aventuras, sensibilidades, perversões e dúvidas.
Abrir um livro
é ressuscitar um morto para sentir no silêncio confessado na escrita uma
declaração de burrice ou de aterradora inteligência. Porque os livros gritam,
pedindo, como Camus, socorro pela angústia de viver consciente de nosso
permanente sofrimento e do nosso dever de abrandá-la. Ler um livro é olhar pelo
buraco dessa grandiosa fechadura que é o mundo.
Caco Galhardo
Para Salvar O País – Cíntia Moscovich
O enunciado é simplérrimo, mas exige um pouquinho de atenção. O amor do qual se
Em meio a essa terra em transe, cheguei a uma outra conclusão: as pessoas
Querendo fugir de idealizações, mas já idealizando, afirmo que aquele que
Mas não é só. Leitores de carteirinha têm senso de humor, resistem aos ímpetos
Sei que estou pregando uma panaceia meio boba assim como sei o quanto é difícil
Biratan
Fabiane Langona
Ferrugem
Relacione-se com quem te faz ler - Ruth Manus
Por sinal, lembrei que preciso ler aquele livro que a Tia Rê me emprestou. Não
Foi o moço da livraria ali na Avenida Moema que me indicou o No Mar. O mesmo
Pro meu namorado levei o livro de receitas de Game of Thrones. Um dia abri
As pessoas e seus livros - Ruth Manus
Fantasmas à deriva - Humberto Werneck
Já falei do plano que tenho de lançar livro não em livraria, mas num sebo. Para queimar etapas. Lançado ali, ali mesmo poderá ficar, tão logo o garçom recolha as taças de vinho branco, os pratinhos com patê verde e as cumbucas antes habitadas por aquelas bolotinhas multicoloridas. O comprador ficará dispensado de ler, pois livro de sebo, em princípio, já vem lido. Para o autor, haverá a vantagem de poder acostumar-se, já no lançamento, com a experiência desagradável de topar com seu rebento na poeira de um sebo.
Em Minas Gerais, a propósito, se conta como tendo acontecido ali a história do medalhão das letras que, ao fuçar entre volumes literalmente entregues às traças, encontrou, coberto de poeira, um exemplar do que supunha ser a sua obra-prima.
Coração aos solavancos, dedos trêmulos, pinçou o volume na estante e, sucumbindo à temerária tentação de abri-lo, deu de cara com a dedicatória que ali garatujara para um confrade, com o qual partilhava, além do hábito de produzir subliteratura, uma inextirpável antipatia de mão dupla. Detestavam-se os dois cordialmente, como sói acontecer entre escritores - mas não era este o advérbio que ele, pessoa peçonhenta, havia encastoado na dedicatória, redigida com os maus bofes de quem atira um punhado de folhas de urtiga. “Para fulano de tal, atenciosamente, o beltrano.” Sim, o mesmo “atenciosamente” com que se fecha a mais impessoal das correspondências comerciais.
Sentindo-se diante de uma rejeição também literária, algo para ele ainda mais ultrajante que a mudez da crítica, o homem de más letras decidiu passar por cima de sua conhecida sovinice e desembolsar uns trocados na compra do livro, tão velho quanto virgem, cujo baixo custo, aliás, lhe bateu como ofensa adicional. Em seguida, despachou-o de volta para o colega - não sem antes acrescentar à primeira dedicatória um dose redobrada de desprezo: “Com renovadas atenções”.
Não cheguei a tanto ao encontrar num sebo, dias atrás, um dos 500 exemplares, numerados e rubricados, de um livro de contos que publiquei, faz 12 anos, em edição particular, fora do comércio, com o objetivo de presentear amigos. Afinal, ele não estava em má companhia: a poucos palmos de distância, Jean-Paul Sartre piscava o olho torto para eventuais compradores. Se num sebo há de tudo, por que não algo de minha lavra?
E até mais do que isso. Quatro anos atrás, alguém me deu notícia de livro meu que nunca existiu, O Perfil no Jornalismo, oferecido por um alfarrabista em Simões Filho, Bahia, ao preço de 25 reais. Algum malandro apropriou-se de anotações que usei numa palestra, providenciou encadernação com espiral e botou à venda. Quando, intrigado, tentei comprar, havia desaparecido. Esgotei em Simões Filho.
No caso do livro de contos, que por sinal se chama Pequenos Fantasmas, assimilei perfeitamente a constatação melancólica de que ele, mesmo escrito e editado com tanto capricho, tinha ido parar na vala comum de um sebo. Já estava calejado, pois não foi a primeira vez que isso aconteceu. Na primeira, aquela, sim, traumatizante, hesitei antes de ler a dedicatória. Quem teria enjeitado a minha esmerada prenda literária? Senti alívio ao encontrar ali um prenome dos mais usuais. Dissipou-se-me (diria o Temer) o impulso masoquista de fulanizar o autor da descortesia: se podia ser tantos, então era nenhum.
O destinatário de outro exemplar dos meus fantasmas, o de n.º 410, teve a delicadeza de borrar seu nome na dedicatória, de modo a torná-lo ilegível. Como alma piedosa que resgata um enjeitadinho na calçada, trouxe-o comigo para casa. Foi consolador constatar que alguém compra livro meu, ainda quando esse alguém seja eu mesmo. Só não o faço mais frequentemente porque alguns alfarrabistas, com certeza apostando mais na tiragem diminuta do que no suposto valor de minha prosa, vêm pedindo por ela preços por demais obesos. Com especial voracidade, certa buquinista de Belo Horizonte, que, ao pedir um despropósito, só pode estar de olho numa valorização póstuma do autor.
Mas voltemos àquele exemplar que retornou às minhas mãos. Sem mágoa nem ressentimento, arrematei-o, com o objetivo de lhe dar uma segunda chance. E estou desde já preparado para a possibilidade de que hora dessas, num sebo, venha a topar outra vez com meu livrinho, acrescido agora de mais um borrão na folha de rosto. Quem sabe acabará ele por fazer história, que nem a casaca do filme Seis Destinos, de Julien Duvivier, no original Tales of Manhattan, título meio trocadilhesco, uma vez que tails, com a mesma pronúncia de tales, é sinônimo de casaca? (Desnecessário dizer que não é meu tanto saber cinematográfico, e sim do Sérgio Augusto, a quem jamais recorri em vão.) Como a peça de roupa do filme, meus fantasminhas rodariam por aí, expostos à possibilidade, quem sabe, de nessa peregrinação adquirirem, além de fungos, algum peso literário.
Tinha uma pedra no meio do caminho - Leandro Karnal
Guimarães Rosa usa um vocabulário único e reinventa a língua, dificultando a leitura para alguns. James Joyce dificulta para todos. Finnegans Wake foi um dos raros textos que abandonei pela metade. Ainda não tenho maturidade para entender a mente do irlandês. Não decifrei essa obra de Joyce e, confesso, tenho um pouco de medo de quem consiga fazê-lo. Joyce parece cumprir aquela velha piada: quando Hegel começou a escrever sua obra, só ele e Deus sabiam o que ele queria dizer; ao final, só ele...
O elenco das peças de Shakespeare é um desafio para o leitor. Há muitos nomes, especialmente nos dramas históricos. Apesar da clareza exemplar de linguagem, Tomás de Aquino assusta pelo volume. Outro exemplo de muro íngreme a escalar? O texto de Lacan apresenta palavras em letra maiúscula que são inteiramente diferentes do que podem parecer: Outro, Mesmo... Você precisa ser íntimo das bisbilhotices dos partidos guelfos/gibelinos/negros/brancos em Florença para atravessar o mata-burro da entrada do latifúndio de Dante Alighieri na Divina Comédia. A genealogia pouco criativa de Macondo é um dique para o fluxo do leitor de Cem Anos de Solidão: todos os nomes se repetem em todas as gerações. Não sabe se é o ditador Francia ou seu secretário que está falando? Perca-se em meio à sintaxe quase guarani da obra de Roa Bastos: Eu, o Supremo.
Tamanho, vocabulário, ideias, erudição, metáforas herméticas: tudo pode ser um obstáculo no enfrentamento de um clássico. Em oposição, um best-seller asfalta nosso caminho e o povoa de árvores e bancos para que o leitor não se canse na jornada. Palavras simples, enredo rápido e cheio de mudanças vibrantes, mistérios que se resolvem ao longo da obra e um doce canto da sereia da facilidade que deseja atrair nossa atenção. O livro comum quer nosso interesse e anela cativar. O clássico diz que esteve bem nos últimos 300 anos sem você e passará bem os próximos mil após sua morte. O best-seller grita: preciso do seu ibope! O clássico sussurra num muxoxo blasé: não tenho a menor necessidade da sua consideração.
Há dúvidas plausíveis na escolha. Por que pegar a estrada menos asfaltada e ser fustigado por um sol inclemente? Por que escolher a dificuldade em detrimento da facilidade? Quem escalaria a íngreme palmeira atrás do coco duro se dispusesse do mesmo coco já perfurado, gelado e com canudinho e servido à mesa? Que patologia move o leitor de obras difíceis? A resposta é complexa.
Se você se inscrever numa academia de musculação, verá que há pesos de poucos gramas. Fazer exercícios com eles pode provocar, em última instância, apenas tédio. O peso leve não oferece resistência. Sem obstáculo, o músculo não cresce. Sem trauma, a fibra não se transforma. Não suamos, não crescemos, não saímos da nossa zona de conforto. O mesmo ocorrerá se você decidir andar na esteira a um quilômetro por hora. O benefício será menor do que um passo mais decidido. Crescimento deriva do desafio.
A dificuldade da grande obra é seu mérito. Meu vocabulário cresce, minha mente se expande, minha musculatura intelectual se fortalece diante do esforço. O custo? Todo o cérebro range ao peso das ideias, como uma carroça sobrecarregada. As rodas afundam no solo, os bois resistem, o arcabouço estala e o avanço é lento. Ao final, as uvas da obra foram esmagadas por nossos pés cansados e do lagar flui um novo vinho complexo e capitoso.
Um best-seller pode ser muito bom. Já li dezenas. São obras bem construídas. Distraem e servem bem para momentos nos quais seria difícil a concentração extrema. Há dias de vinhos complexos e há dias de refrigerantes. Ao final da leitura da obra fácil, você está algumas horas mais próximo da morte. Best-seller tem função de opiáceo: relaxa, induz à tranquilidade, adormece.
A obra clássica é multifacetada. Muda nosso lugar no mundo. Ela desafia nossos limites e revira as ideias. O que você realmente sabia sobre desejo e fome até ler Um Artista da Fome de Kafka? Não há nenhuma palavra nova no conto. A narrativa é linear e até fácil. Mas, as ideias... o final surpreendente. Ir além seria spoiler...
A obra clássica bem lida tem de ser digerida. Pessoas com certezas absolutas nunca parecem ter se aprofundado em Dostoievski. Quando alguém me afirma que o mundo anda meio perdido, eu me indago se ele varou noites na Comédia Humana de Balzac. Se me dizem que estamos perdendo nossa identidade ocidental, eu suponho que não tenha entendido Coração das Trevas, de J. Conrad. Confundindo afetos, gênero e moral? Já leu a Ilíada de Homero ou Bom-Crioulo de Adolfo Caminha? Terá captado as sutilezas entre Davi e Jônatas? A boa leitura impede que você suponha que nossos dias são extraordinariamente novos. Você ousaria saber?
História secreta de um livro - Milton Hatoum
Era um dos livros raros na tenda de um “bouquiniste” à margem do Sena. Em dois ou três sábados gelados daquele inverno distante, passei por lá para admirar as gravuras e a tipografia da edição de 1874. Em fevereiro, o livro sumiu.
Um outro fetiche parisiense era ficar na calçada de um pequeno restaurante da Rive Gauche e observar a comida fumegante, como se eu estivesse do lado de fora de um aquário aquecido; mas a fome pelo livro raro era mais voraz. Eu o havia lido numa reles edição de bolso, mais barata que um crepe na rue des Écoles, ali ao lado da Sorbonne Nouvelle; ou um croque-monsieur em qualquer padaria do décimo segundo distrito, onde eu morava.
Um dia, depois de dar uma aula particular num subúrbio rico de Paris, vi meu vizinho brasileiro da rue d’Aligre sair do edifício com um livro apertado contra o peito. Parecia a edição de 1874, que imantava sonhos e desejos. Perguntei se o havia comprado num bouquiniste. Negou com uma expressão confusa e disse: Este livro tem uma história. Eu ia dizer que todo livro tinha uma história, mas o vizinho, esquivo, encerrou a conversa.
Numa noite de março - lembro que nevara nesse sábado e Paris estava branca e triste -, entrei num café do Faubourg Saint-Antoine e vi meu vizinho apoiado no balcão, lendo anotações numa caderneta. Sem mais nem menos, me convidou pra tomar um conhaque no seu “lar”. Eu, que morava num lugar apertado, me surpreendi com esse “lar”: uma ironia ou um eufemismo radical.
Ele dormia num quartinho com uma latrina, que a herança do orientalismo francês chamava de banheiro turco. As quatro paredes pareciam febris e suarentas de tanta nostalgia, e uma lâmpada solitária no teto iluminava as noites mais escuras da alma do expatriado.
Paris, para ele, era mais sombra que luz? Foi o que eu me indaguei ao observar o aposento opressivo. Me ofereceu conhaque, depois se serviu e entornou meio copo, sedento. Sentamos no carpete puído, nós dois cercados de jornais e revistas franceses. O livro raro estava sobre uma mesinha encostada a uma parede cheia de fotografias de amigos. Ele falou um pouco de cada um deles; por fim, movido pelo conhaque, contou com elã a história do livro. Impossível resumir numa crônica essa narrativa de êxtase.
Saí de lá às seis da manhã do domingo, e só tornei a revê-lo numa tarde de abril, quando as árvores esverdeavam, floridas. Ele parecia possuído pela alegria de um viajante que volta para casa. Ajudei-o a carregar uma sacola de lona até o metrô da Bastilha, de onde iria a Châtelet e depois ao aeroporto. Na despedida, perguntei se a sacola estava cheia de pedras parisienses.
“Jornais e revistas”, respondeu. “Selecionei mais de cem exemplares do Le Monde, Figaro e Libération e duas dúzias da Nouvelle Revue Française. É a minha bagagem. Tenho pouca roupa, nenhum objeto. Aquele livro está guardado num estojo, dentro desta maletinha... É o meu amuleto.”
Ri dessa loucura e ele, talvez por contaminação, ou para não chorar de sua miséria, também riu. Esse rosto risonho no subterrâneo da Bastilha foi a última visão do meu vizinho.
O rosto dele foi borrado pelo tempo, mas não a história do livro. Trinta e cinco anos depois, minha editora francesa me enviou um pacote. O remetente era o ex-vizinho, e o endereço, parisiense: rua Charles Baudelaire, ali perto da rue d’Aligre. No fundo, voltara ao mesmo lugar.
Numa longa carta, rememorou nosso encontro de 1981 e agradeceu mais uma vez minha ajuda naquela tarde de abril. Recontou a história do livro raro, acrescentando detalhes e omitindo alguns, que eu recordava: omissões que atribuo à duvidosa ordem do tempo ou à inevitável desordem da memória. No fim da carta, disse que tinha me visto no Salão do Livro de Paris, em março de 2015.
“Éramos dois velhos... Você não me reconheceu, e eu não quis quebrar o encanto do esquecimento.”
Quando abri o pacote, vi com emoção o livro raro, e tão cobiçado. Era um convite sutil para que eu escrevesse a outra história desse livro: uma narrativa triste e tumultuada de um jovem brasileiro no exílio parisiense.
André Derain, A xícara de chá, 1935
O dono do livro – Martha Medeiros
Mas logo o menino mostrou o que tinha em mãos: um livro do próprio Mia Couto. Esse livro é seu? perguntou o menino. Sim, respondeu o escritor. Vim devolver. O garoto explicou que horas antes estava na rua quando viu uma moça com aquele livro nas mãos, cuja capa trazia a foto do autor.
O garoto reconheceu Mia Couto pelas fotos que já havia visto em jornais. Então perguntou para a moça: Esse livro é do Mia Couto?. Ela respondeu: É. E o garoto mais que ligeiro tirou o livro das mãos dela e correu para a casa do escritor para fazer a boa ação de devolver a obra ao verdadeiro dono.
Uma história assim pode acontecer em qualquer país habitado por pessoas que ainda não estejam familiarizadas com os livros – aqui no Brasil, inclusive. De quem é o livro? A resposta não é a mesma de quando se pergunta: “Quem escreveu o livro?”.
O autor é quem escreve, mas o livro é de quem lê, e isso de uma forma muito mais abrangente do que o conceito de propriedade privada – comprei, é meu. O livro é de quem lê mesmo quando foi retirado de uma biblioteca, mesmo que seja emprestado, mesmo que tenha sido encontrado num banco de praça.
O livro é de quem tem acesso às suas páginas e através delas consegue imaginar os personagens, os cenários, a voz e o jeito com que se movimentam. São do leitor as sensações provocadas, a tristeza, a euforia, o medo, o espanto, tudo o que é transmitido pelo autor, mas que reflete em quem lê de uma forma muito pessoal. É do leitor o prazer. É do leitor a identificação. É do leitor o aprendizado. É do leitor o livro.
Dias atrás gravei um comercial de rádio em prol do Instituto Estadual do Livro em que falo aos leitores exatamente isso: os meus livros são os seus livros. E são, de fato. Não existe livro sem leitor. Não existe. É um objeto fantasma que não serve pra nada.
Aquele garoto de Moçambique não vê assim. Para ele, o livro é de quem traz o nome estampado na capa, como se isso sinalizasse o direito de posse. Não tem ideia de como se dá o processo todo, possivelmente nunca entrou numa livraria, nem sabe o que é tiragem.
Mas, em seu desengano, teve a gentileza de tentar colocar as coisas em seu devido lugar, mesmo que para isso tenha roubado o livro de uma garota sem perceber.
Ela era a dona do livro. E deve ter ficado estupefata. Um fã do Mia Couto afanou seu exemplar. Não levou o celular, a carteira, só quis o livro. Um danado de um amante da literatura, deve ter pensado ela. Assim são as histórias escritas também pela vida, interpretadas a seu modo por cada dono.
Tudo o que é preciso para fazer literatura - Tati Bernardi
Ricardo pediu demissão do trabalho pra poder terminar, finalmente, o seu romance. Ricardo gostava do seu trabalho em um prédio na Berrini, mas não gostava nem do prédio e nem da Berrini. Gostar não bastava, amor mesmo ele tinha pela literatura.
No primeiro dia em casa, entendeu que sem uma porta delimitando o escritório seria impossível. A criança berrando, a empregada puxando papo, a mulher ligando. Até o arquiteto terminar a reforma foram sete semanas sem nenhuma linha escrita por Ricardo.
Isolado em sua ilha criativa, Ricardo entendeu que sem ar-condicionado seria impossível. Teve que quebrar as paredes recém-levantadas pra meter um Split Inverter. Foram mais 16 dias sem nenhuma palavra escrita, apenas alguns xingamentos por e-mail para a Fujitsu porque eles atrasaram dois dias.
Congelado e isolado em seu escritório com frigobar (notou que seria impossível escrever sem um frigobar), Ricardo entendeu que só tem assunto quem está fora de casa, vivendo a vida ou simplesmente vendo a dos outros. Resolveu comprar um laptop e se aventurar em um café. Sempre achou muito chique pessoas que "escrevem em um café". Tentou um perto da sua casa, mas ficou travado. Tentou um bem longe da sua casa e continuou travado. As pessoas falam muito alto nos cafés.
Ricardo concluiu que o problema era São Paulo. Essa cidade combina com prédios na Berrini e não com literatura. Comprou então um terreno pequeno no meio do mato e, nos quase dois anos que demorou pra construir, encher de móveis e a Net realmente aparecer, não escreveu nenhuma linha do seu romance. Claro! Era impossível tocar o mais divino em si enquanto estivesse estressado com uma obra que não acabava nunca! E, falando em obra, daqui a pouco o mundo saberia do que ele é capaz.
A mesa de madeira de demolição era voltada para árvores. A cadeira estava na altura mais adequada em relação ao seu problema na lombar, e o computador, em cima de livros de arte sacra, estava na altura mais adequada em relação ao seu problema na cervical. Agora vai! Ricardo escreveu a primeira frase "Era uma manhã como outra qualquer quando...". Achou a frase uma boa de uma bosta e mudou para "Não fosse uma manhã qualquer quando..." e deduziu que essa era pior ainda. A casa inteira fedia mofo com cachorro molhado. Quem é que escreve num lugar desses?
A grana foi acabando toda, a mulher foi pagando tudo, o filho foi crescendo e demandando mil coisas e Ricardo sumiu. Por dias a família não teve notícias do escritor até que, em uma manhã como outra qualquer, ele apareceu fantasiado de mendigo. Achou que dormindo na rua teria assunto pro livro. E você escreveu alguma caralha, seu desgraçado? A paciência da pobre esposa estava mais surrada que a roupa de Ricardo. A resposta era: não. Infelizmente ele foi obrigado a trocar seu laptop por uma manta quadriculada de lã, em uma madrugada fria.
Ricardo tentou Paris, cocaína, tatuagem, depressão, traição, homossexualismo, acupuntura, suicídio e curso de escritor na Vila Madalena. Nenhuma dessas coisas resultou em romance, mas Ricardo sabe bem o motivo: ele ainda é muito novo. Agora, de volta ao prédio na Berrini, ele planeja, em breve, fazer o que sempre quis: largar tudo pra escrever seu romance. Quem sabe um dia.
Will Tirando
Caco Galhardo
Sugestão de risco - Ruy Castro
Fralda - Fabrício Corsaletti
Sem problemas. Entrei no escritório e olhei as estantes. Pra começar, "Matadouro 5", de Kurt Vonnegut, "Franny & Zooey", de J. D. Salinger, "Tanto Faz", de Reinaldo Moraes (mesmo sendo brasileiro, resolvi arriscar), "Iniciantes", de Raymond Carver, e "Amuleto", de Roberto Bolaño.
Devorou tudo em menos de dois meses. Dessa vez levou Philip Roth, Virginia Woolf e Kafka. Na seguinte: Tchekhov, Poe, "Memórias de um Sargento de Milícias", Dickens e Jane Austen.
Depois vieram Borges, Cortázar, Felisberto Hernández. Adorou Maupassant, Mark Twain e Italo Calvino. Quando leu Faulkner, disse que nunca mais queria ler Bolaño. Entrou de cabeça em Dostoiévski e ficou perturbado. Se encheu um pouco do "Ulysses" mas foi até o fim. Ouviu dizer que Proust é que era o cara e dedicou um semestre ao "Em Busca do Tempo Perdido".
Então enchi uma sacola só com poetas: Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral, Szymborska, Angélica Freitas, Matilde Campilho, Byron, Cummings, Eliot, Baudelaire, Chacal, Nâzim Hikmet. Virou fã dos três últimos.
Da prosa brasileira contemporânea (a essa altura, não recusava nada), curtiu o "Diário da Queda", do Michel Laub, e o "Budapeste", do Chico Buarque, que ele chama de Chico Buraco.
Passou por Homero, Cervantes, Shakespeare e Voltaire. Voltou pros séculos 19 e 20. Se surpreendeu com Machado e Graciliano.
Neste momento, está lendo "Tarás Bulba", do Gógol (anoto suas leituras num caderno). "Aqueles cossacos malucos", ele diz.
Quem vê o Fralda não acredita. Baixista de bandas punks (Ratos de Porão, Blind Pigs, Lobotomia), parece mais um líder dos Hells Angels do que um leitor compulsivo e vagamente aristocrático, que prefere Balzac a Hunther Thompson.
Mora nos fundos de um estúdio de música de uns amigos e trabalha numa loja de vinis em Perdizes, onde faz a faxina e tira chope artesanal; tem 40 anos e uma semibarriga de cerveja; tatuou na testa a frase "STONE DEAD FOREVER" e usa mais pulseiras e colares que uma falsa baiana de acarajé de shopping.
Às vezes, tenho a impressão de que trata o próprio corpo como se fosse uma galeria de arte —é uma performance ambulante. Minha mulher diz que ele tem uma noção forte de estilo. Mas acho que o Fralda (aliás, Christian Wilson, embora assine os e-mails como "tia Fralda") daria risada dessa conversa.
Na semana passada, veio me devolver o Karl Ove e pegar uma nova leva. Fumando um cigarro enquanto esperava a chuva passar, contou de uma época em que dormia num "catre" na cozinha da casa da avó. E antes que eu demonstrasse qualquer estranhamento por aquela palavra tão pouco underground, ele interrompeu a história e perguntou rindo, orgulhoso:
- Gostou de "catre", animal?
Sapatos e Livros – Carlos Gerbase
Uma mulher comprando sapatos é um espetáculo. O corpo movimenta-se suavemente entre as vitrines. O cartão de crédito pulsa e arfa na escuridão da bolsa, ansioso para cumprir sua função existencial. O sapato é o supremo desejo da mulher. Não de todas, é claro. Só 99% delas. As outras estão escolhendo meias longas pra combinar, e só então alcançam o clímax. Imelda Marcos, primeira-dama das Filipinas, famosa por possuir 3 mil pares de sapatos enquanto o povo passava fome, nunca foi um monstro. Ela apenas deixou a natureza se manifestar, com apoio cultural do seu cartão de crédito.
As mulheres sabem o poder que o sapato certo, a meia certa e a perna certa exercem sobre os homens. Helmut Newton, meu fotógrafo preferido, ainda bem jovem rendeu-se ao poder do stiletto, o scarpin perfeito, e viveu à procura de uma modelo que merecesse calçá-lo. E o melhor de tudo: não precisava ficar esperando a modelo escolher os sapatos na loja. Eles vinham direto para o estúdio, junto com as pernas certas e as meias certas. Não sou um fetichista tão feliz. Eu levo um livro, um jornal ou uma revista para a loja e fico esperando, sentado no meio daquele monte de caixas de papelão.
Livros não são sapatos. Eles funcionam nas mãos, e não nos pés. Eles não precisam ser novos. Pelo contrário. Um livro usado, quem sabe até bem antigo, tem um charme todo especial. Livros podem ser até mais sensuais que sapatos, desde que estejam na mão da mulher certa. Se ela estiver de óculos, então... Mulheres de óculos, meias de seda e saltos altos lendo a Odisseia são o ponto mais alto da evolução humana. Helmut Newton fotografou várias para a Vogue.
Na interminável polêmica sobre o que é mais importante na construção da essência do ser humano – a natureza ou a cultura – Helmut Newton prova que essas duas forças se complementam. Um pé feminino nu já é um espetáculo grandioso. Mas, se for parcialmente escondido e elevado pelo sapato certo, transcenderá sua mera existência física. Ao mesmo tempo, um sapato sem ossos, carne, pele e sangue quente em seu interior é tão inútil quanto um livro sem leitores. Sapatos de salto alto e livros são o que nos separa dos outros animais.
Filho de Quem – Paulo Bentancur
o som de membro tão hábil.
Levou-me na direção,
as minha pernas cantando
pedras, tropeços, recantos.
Sentou-me no colo do chão,
desenhou-me a cor da grama,
coloriu-me a terra densa
e suas raízes músculos.
Ergueu-me o rosto pro céu,
a cegar o sol e as nuvens.
Baixou-me o olhar até
o leito onde escorriam
as palavras a criar
o menino já crescido.
Minha mãe com seu vestido,
puído, escondendo os joelhos;
meu pai tropeçando vinho,
gargalhando com os vizinhos.
Eu já era cuidado
ao ponto de cuidadoso
com o que dizia a todos.
Os livros ali tão perto.
Os livros me sussurrando.
Os livros: conselho, relho,
Os livros, sérios, brincando.
Os livros, pais a me dar
um rumo e um rumor
necessários no recreio
quando colegas cravavam
receio em quem pensavam
ser filho de pais ausentes.
Literatura, a bênção,
senhora,
minha mãe de sempre.
onde se descansa
do mundo
“Nunca escrevo meu nome nos livros que compro até depois de lê-los, porque só então posso chamá-los de meus.
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