terça-feira, 6 de junho de 2017

Livros




Armandinho - Alexandre Beck









Alexandre Beck

Meu pai morreu. Muitas e muitas vezes.
De tiro, de frio, enforcado, queimado, crucificado
Matou uma velhinha para roubar joias
Assaltou bancos, invadiu casas
Foi traficante, viciado em drogas e em jogos
Meu pai foi prostituta e menor infrator
Foi preso na África, na Rússia, em Cuba, na França, no Uruguai
Foi torturado no Brasil
Meu pai fundou partidos, fez revoluções, combateu moinhos
foi humilhado, injustiçado e condenado
Foi vendido como escravo, passou fome
Escreveu livros, pintou quadros, pichou muros
Foi bailarina, padre, freira, remador, montanhista, vagabundo
Apaixonou-se, foi traído e traiu, fez aborto
Meu pai foi perseguido por ser homossexual
Morou em prédios de luxo, assentamentos, favela e calçadas
Lutou em guerras, foi cirurgião, político, operário e agricultor
Apanhou da polícia, do padrasto, resolveu crimes
Salvou vidas, foi professor, sofreu como cão e como gente
Teve medo, alegrias, inveja, ciúme, ódio, remorso, mágoa e esperança
Sentiu e sofreu todo tipo de preconceitos
Foi negro, branco, índio, mulher
Cristão, judeu, muçulmano, budista, ateu
Meu pai viveu muitas vidas, em muitas peles
Acredita que quanto mais certezas temos, menos sabemos
E que não se deve julgar uma pessoa
se não se é capaz de compreendê-la
Meu pai lê livros



HAGAR - DIK BROWNE


Calvin - Bill Waterson



Recruta Zero - Mort Walker




O que dizer por todos esses livros no zoológico das estantes? – Fernando Bonassi


Livros são animais sexuados: livros são metidos, livros são gestados, livros são paridos. Livros crescem, como meninos. Livros sangram, como meninas. Livros infantis com ideias de aprendiz. Livros de aventura pra estimular a travessura. Livros de iniciação pras pessoas em formação. Todo livro é um livro da vida (mesmo os livros de contabilidade, que são livros de dívidas). Livros de poesia controlam a azia. Livros de História fortalecem a memória. Livros de viagem aperfeiçoam a paisagem. Livros de religião aumentam a devoção. Livros de química servem pra misturar. Livros de teste, pra confundir. Livros de lógica, pra entender. Livros didáticos, pra explicar. Livros revolucionários são livros vermelhos espetados no ar. Livres pra reclamar, livros de arrepiar!
Mas... com quantos livros se faz uma pessoa?
Livros de tabuada pra conta calculada. Livros de auto-ajuda praquilo que não muda. Livros de lazer pra quem tem muito o que fazer. Livros de direito pra homens de respeito. Livro de reza quando a coisa pesa. Livros em liquidação para leitores sem condição. Livros de oratória, livros de ortografia, livros de culinária, livros de psicologia. Livros em orgia. Livros pornográficos levados pra cama. Livros de etiqueta pra pôr a mesa. Livros sádicos. Livros trágicos. Livros míticos. Livros pro alimento do espírito e dos editores. Livros pra vaidade dos escritores. Livros especiais. Livros espaciais. Livros de colecionadores. Livros de informática são livros de computador. Livros de condolências são livros cheios de dor. Livros ensinam a ler. Livros pro humor. Livros pra quem quiser ver. Livros loucos pra saber. Livros com ilustração auxiliam a compreensão. Livros beijados, livros mordidos. Livros apalpados, livros espremidos. Livros lambidos como frutos escorridos. Livros embebidos. Livros embevecidos. Livros abraçados como casais apaixonados. Livros são romances cultivados. São feridas, são repastos. Livros passados de mão em mão, como boas biscas. Livros de arte. Livros de artistas. Páginas arrancadas sem vergonha, livros fumados com maconha. Livros de piada. Sacos de risada. Palavras cruzadas e frases alinhavadas. Livros depenados. Livros invocados. Livros em conflito. Páginas de livros processados em juízo. Livros censurados. Livros permissivos. Os livros das sopas, os livros dos sonhos, o livro dos molhos. Livros molhados nos clubes de livros. Livros de ocorrência. Livros policiais. Livros de referência. Livros originais. Livro pra orientação num universo em expansão. Livros equivocados. Livros inquisitivos. Livros engavetados. Livros recolhidos. Livros esmagados nos ônibus lotados. Livros encoxados, livros encolhidos. Livros espalhados por baixo dos estrados. Livros deflorados. Livros chacoalhados. Livros escondidos. Livros arremessados nos divórcios acalorados. Livros feito espadas. Livros como escudos. Livros que berram e livros que são mudos. O pior livro de cego é aquele que não quer se ler. Livros na ponta da língua. Livros com a ponta dos dedos. Livros engrossam, como rapazes. Livros melhoram, como mulheres. Livros murchos, livros sujos, livros finos. Livros como manda o figurino. Livros de moda. Livros em falta. Livros de sobra. Livros que cheiram bem e livros que cheiram mal (livros de renúncia fiscal). Livros roubados. Livros comprados. Livros vendidos. Árvores de livros abatidos. Livros de cabeceira. A fertilidade dos livros de madeira. Livros exibidos como corpos oferecidos. Livros safados. Livros falados. Livros sorvidos. Livros conservadores nas gavetas dos doutores. Livros emocionais pra cólicas menstruais. Livros de regime. Livros de política. Livros de ótica. Livros de crítica. Livros diários são livros crônicos, são livros cômicos, são livros tônicos. Dicionários de livros explicados. Raciocínios apalavrados. Teses de mestrado. Bolsas de livros financiados. Tomos, tombos, citações. Parágrafos, capítulos, correções. Publicações, polêmicas, opiniões. Livros importados. Livros transportados. Livros traduzidos. Livros encomendados, livros encarecidos. Livros encardenados como faraós embalsamados. Livros aposentados. Livros comentando livros. Livros lavrados em cartórios hereditários. Livros aplicados e homens especializados. Diplomas de livros emparedados. Livros emparelhados. Bibliotecas de livros amontoados. Sebos empoeirados. Livros decorados são livros encruados são livros mal comidos. Livros devorados por vermes aculturados. Livros bichados. Livros suados. Livros vencidos. Caixas e caixas de livros caixa. Arquivos mortos em pandemônio, as fortunas dos livros de patrimônio. Livros de capas trocadas, capas disfarçadas, capas ofensivas. Livros de capas ousadas. Capas proibidas. Os livros contra capas. Os lidos pelas costas. Livros sádicos, livros cínicos, livros mágicos. Livros lívidos, livros épicos, livros bíblicos. Livros lidos como vícios. Livros de sacrifícios. Todo homem é um livro aberto. Todo livro acha que é certo. Escreveu, não leu, continua sendo livro. Já no início era verbo! Larga a mão de ser burro e leia.

Adão Iturrusgarari














A Estante - José Jorge Letria

Moro nas casas e nas bibliotecas
para que os livros tenham casa
onde possam viver arrumados
e onde, na hora certa,
possam ser encontrados.
Gosto de sentir o peso
dos romances e da poesia,
dos livros de teatro dos CONTOS DE FANTASIA.
E há uma coisa que peço
a quem me mandou fazer:
por favor guardem em mim
livros que sejam para ler.
Se forem só para mostrar, com as pomposas LOMBADAS,
por favor troquem os livros
por focas amestradas,
que mesmo sem nada lerem
deixam as visitas impressionadas

Ginnie Hsu

Os Livros - José Fanha 

A minha casa é feita de livros que li,
que não li
e alguns que talvez nunca leia.
Em todos nasci e renasci,
em todos vivo e me deito
em todos adormeço e acordo.
Todas as manhãs lhes digo bom dia
e levo-os na mão ao sair
para poder abri-los
em todas as breves ou longas esperas
que a vida me ofereça.
Lombadas, memórias, momentos,
lágrimas guardadas entre páginas.
Bebo em cada um coisas de amor e de saber,
atravesso o mundo em múltiplas viagens.
Fico a conhecer coisas que me levam à frente e atrás,
ao castelo conquistado pelos guerreiros de
D. Afonso,
ao massacre dos judeus no Rossio,
aos rapazes dos tanques
no Terreiro do Paço
de um Abril luminoso.
A minha casa é feita de livros.
Naquela prateleira mora Melquíades,
o cigano de Macondo.
Na outra continua a morrer eternamente
Ivan Ilitch.
Mais à frente o escrivão Bartleby
continua a preferir não estar, não ser,
não fazer.
Aqui, neste recanto, junto a mim,
ardem docemente os versos de Neruda,
dançam os de Lorca,
voa a ironia de Prévert,
entorna-se o vinho
na voz de Omar Khayyam.
Carlos da Maia desce o Chiado
pelo braço da irmã
na estante do corredor.
Atrás deles vai o Tom Sawyer a correr
com um livrinho do Ferlinghetti na mão.
O Ary anda à procura de uma garrafa de gin
e, se de repente, se ouvir tasquinhar é por certo
o O´Neill a espreitar os tiques de quem passa
a caminho da cozinha.
A minha casa é feita de livros
e cada livro é um navio a largar
dos dias da minha infância
a caminho de um tempo que vai chegando.
E eu sei
que é a minha avó que em cada livro me penteia
e me deixa para sempre cercado pela geografia azul
das suas brancas mãos.







Leiam - Marcelo Rubens Paiva


Desde os anos 1980, nosso ofício virou missão. Criar o novo leitor do novo Brasil, terra com um dos piores índices de leitura, na rampa de saída de décadas de silêncio e debates reprimidos. Outdoors incentivavam a leitura. No Pacaembu, usavam Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”.

Até hoje, saímos em caravanas literárias, vamos a escolas, faculdades, bibliotecas, feiras de livros, festivais, nos reunimos com vendedores, livreiros e distribuidores. Não somos apenas escritores boêmios, poetas louco, mas militantes de um Brasil melhor, culto, bem informado, democrático, livre!

A batalha foi perdida. Lê-se menos no Brasil. Livrarias de bairro, não mais. Grandes redes vendem também canecas, camisetas, bichinhos de pelúcia, revistas, cafés e tortas. Noite de autógrafos, agora são eventos, amigos escritores célebres ajudam amigos célebres e iniciantes, para atrair público.

Pedro Hertz, da Livraria Cultura, que, de uma provinciana loja familiar, deu numa rede nacional, livreiro realista, fez o prognóstico à sombra da nova era da tecnologia da informação: não é o livro que pode acabar, mas o leitor que está sumindo.

Os últimos acontecimentos, as aberrações ditas em rede sociais, a vergonha alheia no púlpito dos poderes, o contexto nebuloso na política, a baixa cultura e educação, provam que o desconhecimento de História, a falta de leitura, traz um dano que prejudica o pouco que resta de Projeto de Nação.

Depois de anos nos Estados Unidos, uma amiga com três filhos voltou ao Brasil e ficou chocada com a falta de incentivo à leitura na escola de elite em que os matriculou. Lá fora, liam de tudo, debatiam em aula,     declamavam. Nos cadernos, o aviso aos pais: gastar 30 minutos com leitura. Aqui, ao reclamar, ouviu o equívoco didático sem tamanho. Não querem que os alunos encarem o livro como obrigação, mas com prazer.

Beleza, não obrigam, eles não leem. Poderiam também não os obrigar à Química Orgânica, Biologia, Gramática, Trigonometria, façam eles terem uma relação de prazer com o conhecimento. Ensinem apenas o que lhes dá prazer. Criem uma geração hedonista e manipulável.

Li, porque me obrigaram. Se não me obrigassem, eu jogaria botão o dia todo, e pingue-pongue às noites. Fui forçado a ler Dostoievski, Kafka, Camus, Sarte, Tolstoi, Marx Webber e Dürrenmatt, aos 16 anos. Minha média era quatro livros por mês. Minha escola era um oásis, e sou grato a ela. Existem outros. Sobrevivem.

O Colégio Equipe é o de gosto mais eclético. Já no primeiro ano do ensino médio, dá Convite à Filosofia (Marilena Chauí), O Senhor das Moscas (William Golding), Vidas Secas (Graciliano), As Bacantes (Sófocles), Eumênides (Ésquilo), entre outros. Em inglês, Frankenstein (Mary Shelley) e Of Mice and Men (John Steinbeck).

Para a segunda série, vão de A Metafísica (Descartes), Dos Canibais (Montaigne), Farsa de Inês Pereira (Gil Vicente) a Michael Kohlhaas (Heinrich von Kleist). Por fim, claro, Brás Cubas (Machado). O professor de inglês surpreende: Down Second Avenue (Es’kia Mphahlele), Do Androids Dream of Electric Sheep? (Philip Dick), Siddhartha (Hermann Hesse), 1984 (Orwell) e o sensacional e legível livro de contos Dubliners (Joyce), encomendado por seu editor, para o experimentalista irlandês poder ser lido por um público mais amplo.

A terceira série passa por Serafim Ponte Grande (Oswald) e livros voltados aos vestibulares da USP e Unicamp.

No Miguel de Cervantes, leem no ensino médio, em espanhol, Lazarillo de Tormes, La Celestina (Fernando de Rojas), Dom Quixote, Lorca, García Márquez, Vargas Llosa, Cortázar, Borges e Neruda, além da lista de autores brasileiros para os vestibulares. Marcelino Freire e Marçal Aquino já estiveram por lá. Neste ano, debatem o Brasil com Dois Irmãos e Órfãos de Eldorado (Milton Hatoum), e dois livros meus, Feliz Ano Velho e Ainda Estou Aqui.

No primeiro ano da Escola Vera Cruz, um livro do meu ex-professor Luiz Roncari é indicado, Dos Primeiros Cronistas aos Últimos Românticos. Tem literatura de cordel, Augusto Matraga (Guimarães), Ensaio Sobre a Lucidez (Saramago), Comandante Hussi (Jorge Araújo), Ai, Que Preguiça (Rodolfo Guttilla)

No segundo ano, 1889 (o melhor Laurentino Gomes), e Boris Fausto. Os livros listados para o vestibular “serão solicitados ao longo do ano”. Para o terceiro ano, entram A Era dos Extremos (Hobsbawm), Macunaíma, Sagarana, Laços de Família e A Hora da Estrela (Clarice), Vidas Secas (Graciliano), Órfãos de Eldorado, Capitães de Areia (Jorge Amado), Sentimento do Mundo e Terra Sonâmbula (Mia Couto).

O Santa Cruz (onde fiz o colegial) vai de Édipo Rei (Sófocles), Centauro no Jardim (Moacyr Scliar), Aleph (Borges), Macbeth (Shakespeare), Cândido (Voltaire), Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brontë), Aquele Que Diz Sim e Aquele Que Diz Não (Brecht), Entre Quatro Paredes (Sartre), Sinfonia Pastoral (Gide), Carta ao Pai (Kafka), O Estrangeiro (Camus), Memórias do Subsolo (Dostoievski). No 3.º ano, partem para os livros dos vestibulares. Incluem Maus (Art Spiegelman) e A Revolta da Vacina (Sevcenko).

As escolas se veem obrigadas a seguir a lista do Vestibular 2017 da Fuvest, apenas nove obras: Iracema (José de Alencar), Brás Cubas, O Cortiço (Aluísio Azevedo), A Cidade e as Serras (Eça de Queirós), Capitães da Areia, Vidas Secas, Claro Enigma (Drummond), Sagarana e Mayombe (Pepetela).

O Vestibular Unicamp 2017 inclui teatro, poesia e contos: Sonetos 1 (Camões), Poemas Negros (Jorge de Lima), Laços de Família (Clarice), Matraga, Negrinha (Monteiro Lobato), Lisbela e o Prisioneiro (Osman Lins), Coração, Cabeça e Estômago (Camilo Castelo Branco), Caminhos Cruzados (Erico Verissimo), Til (José de Alencar), O Cortiço, Brás Cubas e Terra Sonâmbula (Mia Couto).

Além de serem livros escritos em português (ficam de fora Shakespeare, Flaubert, Dostoievski, Proust, Virginia Woolf, Hemingway, Rimbaud, Melville, todos muito bem traduzidos por autores brasileiros), não há nada sobre macropolítica, ditadura, anos 1960, 70, 80, 90, passado recente.

E ficam de fora Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de     Hollanda, Caio Prado, Darcy Ribeiro, Antonio Candido, Roberto Schwarz, Lilia Moritz Schwarcz, Viveiros de Castro, Sevcenko, Safatle, ou o jornalista Elio Gaspari. Dá pra acreditar?

Malvados - André Dahmer







O rapaz que habitava os livros – Valter Hugo Mãe  

Barafustaram comigo, nem escutaram o que eu queria que entendessem. Diziam que os livros queimavam os olhos, eram diurnos, não serviam para as noites. As regras do nosso colégio interno, para meninos casmurros como eu, mandavam assim.

Queriam os livros no corredor. As luzes apagadas às nove.

Eu ainda deitei mão a alguns volumes, toquei-lhes brevemente igual a quem cai num precipício e procura agarrar-se, mas não me deixaram nada. Apenas o candeeiro já apagado, como se a luz tivesse morrido de tristeza.

Adormeci muito mais tarde, de todo o modo. O coração rasgado em papelinhos pequenos. E uma gula esquisita embrulhada no estômago parecia dizer que eu não havia jantado.

Fui ver a minha nova estante logo pela manhã.

Era um bocado de espaço arranjado entre tralhas meio esquecidas. Fiquei ofendido. Os livros não esquecem nada. Eles são para sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria natureza. Embora, na verdade, eles nem se devam importar, porque podem esperar eternamente.

Alguém colocara uma pequena placa dizendo: não alimente os animais. Fiquei sem saber se queriam dizer que os livros eram bichos comendo as nossas ideias ou se seria eu um devorador de páginas, alimentado de palavras como as histórias. As histórias podem comer muitas palavras.

Pensei: os meus queridos livros. Era o que pensava e sentia: os meus queridos livros. Olhava-os como se estivessem vivos e pudessem sofrer. Como se pudessem também entristecer.

Gostei de colocar a hipótese de os livros serem como bichos. Isso faz deles o que sempre suspeitei: os livros são objetos cardíacos. Pulsam, mudam, têm intenções, prestam atenção. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência.

Os livros estão esbugalhados a olhar para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar para nós.

Os meus colegas ficaram todos a rir-se de mim. Eu era conhecido como o rapaz que perdia a hora de dormir. Tinha a cabeça na lua, diziam. Não me importei nada. Rirem-se de nós pode ser só um erro no ponto de vista. E eles, todos eles, estavam errados.

A primeira vez que vi um livro, que me lembre, era um que estava aberto, pousado sobre a mesa, com as folhas em leque como se fossem uma colorida flor contente.

Podia ser uma caixa esquisita para arquivar pétalas secas, podia ser para guardar documentos ou cartas de amor. De perto, era afinal um livro muito branco, cheio de palavras impressas. Julguei que podia ser um bordado miudinho. Um enfeite para que as páginas ficassem bonitas. Pensei que fosse uma prenda de enxoval.

Depois, compreendi, era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos.

A morte não importa muito para os livros.

Mais tarde, aprendi que os livros acontecem dentro de nós. Claro que eles podem ser bonitos de ver, mas são sobretudo incríveis de pensar. Eu disse que ler é como caminhar dentro de mim mesmo. E é verdade. Quando lemos estamos a percorrer o nosso próprio interior.

Uma menina do colégio perguntava-me sempre se eu queria brincar de coisas bonitas. Brincar de beleza, dizia assim. Era igual a ficarmos cheios de delicadezas a fazer de conta que adorávamos tudo: os puxadores velhos das portas, os livros de álgebra, as meias rendadas da professora, a sopa de beterraba à hora do jantar no refeitório ou o cão zangado do guarda noturno. Servia de maneira divertida para fazermos de conta que o mundo era maravilhoso e, subitamente, o mundo inteirinho parecia mesmo maravilhoso. Isso era tão bom de sentir.

Um dia, eu disse: vamos brincar à beleza das coisas que se pensam, como as que se lêem. Porque as coisas que se lêem precisam de ser pensadas. E ela perguntou: as que existem ou as que não existem? E eu disse: todas. As coisas todas que pudermos imaginar.

Então, ela propôs: pássaros com trombas de elefante a voar sobre cabeças de mulheres com cabelos de raízes de árvores. Rimos muito e eu exclamei: que lindo. Repeti, lentamente: pássaros com trombas de elefante a voar sobre cabeças de mulheres com cabelos de raízes de árvores. Depois acrescentei: chávenas de chá com bocas falantes que ferram as mãos de quem as tenta pegar. Rimos muito e ela exclamou: que lindo. Repetiu: chávenas que ferram.

Ela disse: carros com pneus feitos de batatas gigantes que têm pêlos como as pernas dos homens e a transportar famílias de galinhas felizes. Rimos e eu exclamei: que lindo, adoro galinhas felizes. Repeti: carros com famílias de galinhas felizes.

E se fosse um homem com tartarugas ao invés de olhos? Ia ver muito devagarinho. E outro que tivesse um canguru ao invés de boca? Ia falar aos saltos.

Uma árvore que tivesse braços de pessoa ao invés de troncos e segurasse ninhos de cegonhas nas mãos. Que lindo! Depois, eu disse: os meus pais a darem um beijo. E os meus avós. E ela respondeu: e os meus também. Os meus também. Rimos, e exclamamos subitamente em conjunto: que lindo.

Fui dizer-lhe que me haviam levado os livros do quarto. Estava igual a sozinho. Absolutamente sozinho a noite inteira. E ela respondeu: isso é feio. Sabia bem que importância tinham para mim as histórias. Ela perguntou: e agora? Eu respondi: passo os dias à espera dos intervalos para ler um bocadinho. Passo as noites a sonhar à pressa para poder acordar e voltar a ler. Ela respondeu: sonhar à pressa é uma pena.

Quando eu sonhava que lia, acordava. Parecia um castigo.

Era comum, subitamente, que eu me esquecesse de tudo durante os intervalos. Corria para os bancos no lado da frente do colégio, à vista dos janelões principais, e aí deitava os olhos às letras e a alma inteira à imaginação. Quando era hora de entrar, tantas vezes algum colega vinha cutucar-me. Diziam: anda, seu distraído. Anda embora.

Um dia, ninguém me cutucou. Fiquei apenas caminhando dentro de mim mesmo, o que era diferente da solidão.

A professora mandou dois rapazes aos janelões da frente a chamar por mim. Assim chamaram. Mas eu, juro muito, não os ouvi.

Voltaram para dizer à professora: parece que se mudou para dentro do livro porque não ouve a nossa voz. Usamos os binóculos da sala de ciências e vimos bem, senhora professora. Ele sorri. Está feliz.

Isso levantara o problema de saber como trocar a felicidade pelo regresso à aula.

 












Há objeto mais misterioso e subversivo que um silencioso livro? Roberto DaMatta

Um dos maiores amantes de livros que tive o prazer de conhecer, Gilberto Schwartsmann, realizou uma exposição na Academia Nacional de Medicina, tendo como tema a obra do escritor Jorge Luis Borges, que, na verdade, foi uma viagem em torno dos livros fundadores do que foi chamado de “cânone ocidental”.

Obras emblemáticas porque foram criadas em paralelo, contrariando o estilo de pensar lógico e prático dos “livros sagrados” e dos códigos jurídicos e científicos, que conjuravam pecados, legitimavam poderes e traziam progresso.

Nessa mostra apadrinhada pela obra de Borges, descortinamos narrativas determinadas pelo viés muitas vezes visto como ofensivo ou pecaminoso – um universo de alusões, contradições, mentiras, confissões e verdades inverossímeis, mas verdadeiras no que classificamos como “literatura”. Essa esfera da vida na qual a consciência conversa consigo mesma num exercício libertador como faz prova a obra de Borges.

Porque Borges – como, entre outros, Swift, Twain, Kafka, Poe, Carroll, Hesse, G. Rosa – foi um escritor cuja obra não foi orientada pelo que o antropólogo Marshall Sahlins chamou de “razão prática” – centrada e voltada para o funcionamento e o controle da “realidade” –, mas pela luminosidade arriscada da fantasia.

Do memorioso Funes, que jamais esquecia e, assim, não tinha memória nem história, ao padrão fantasioso no qual as perspectivas se perdem pela ânsia infinita de classificações babilônicas incrustadas na luta entre o prático e o teórico.

Eis uma obra na qual o progressismo enfrenta uma sofisticação intelectual que lhe é oposta e paralela – um pensamento mais selvagem do que fantástico, competidor dos manuais “how to do”, que ensinam a transformar a agonia da condição humana num sorvete.

Quem ama e respeita os livros sabe das suas magias e acaba confrade de Kundera, Mann, Hemingway, Maupassant, dos irmãos Azevedo, de Eça e do Machado cortante do nosso homem de Assis. Mulato liminar que – certamente movido por essa dúvida – foi um refinado demônio capaz de desmascarar (mascarando), com sua contraditória igreja do diabo e com o aval da nossa sereníssima República, a hipocrisia nacional.

Há objeto mais misterioso e subversivo que um silencioso livro? Fechados e mudos, como os túmulos, eles só se revelam quando cavoucados por algum perverso coveiro... Alguém que deseja perigosamente ressuscitá-lo. Aberto, ele sai de sua quietude para pôr a nu suas aventuras, sensibilidades, perversões e dúvidas.

Abrir um livro é ressuscitar um morto para sentir no silêncio confessado na escrita uma declaração de burrice ou de aterradora inteligência. Porque os livros gritam, pedindo, como Camus, socorro pela angústia de viver consciente de nosso permanente sofrimento e do nosso dever de abrandá-la. Ler um livro é olhar pelo buraco dessa grandiosa fechadura que é o mundo.



Caco Galhardo



Para Salvar O País – Cíntia Moscovich  

Vivendo o horror em que se tornou nosso país, viro e reviro uma frase que me 
chegou através do psicanalista Abrão Slavutzky: “As pessoas amam para que não 
fiquem doentes”.

O enunciado é simplérrimo, mas exige um pouquinho de atenção. O amor do qual se
fala é, em sentido amplo, a capacidade de criar vínculos de afeto e de se 
reconhecer no outro. Não é um amor óbvio, portanto, mas é amor que vem da 
saúde da alma e da disposição para viver em grupo.

Em meio a essa terra em transe, cheguei a uma outra conclusão: as pessoas 
leem pelo mesmo motivo pelo qual amam. A leitura também serve para não 
ficarmos doentes. A leitura é uma forma de amor.

Querendo fugir de idealizações, mas já idealizando, afirmo que aquele que 
nutre o hábito da leitura apresenta algumas virtudes imprescindíveis em 
momentos de crise. A maioria dos leitores habituais é capaz de compreender 
conceitos sofisticados, de cruzar e analisar informações e de perceber 
sutilezas reveladoras. A leitura, porque reproduz aquela solidariedade que o autor 
estabelece com seus personagens, estimula a que se reconheça no outro 
um semelhante. Essa empatia e cultivo de conhecimentos são experimentados 
durante as horas em que se divide a vida com um livro.

Mas não é só. Leitores de carteirinha têm senso de humor, resistem aos ímpetos 
de justiçamento e às chantagens emocionais. O indivíduo que lê acostumou-se a
 formar mundos somente com imagens mentais e, por outro lado, acostumou-se 
também a um padrão estético elástico, mas nem por isso pouco exigente. 
Leitores esquivam-se do elogio fácil – coisa que vale ouro em época de um 
certo cinismo, na qual, em nome de valorizar o   indivíduo, alimenta-se a mediocridade como mérito.

Sei que estou pregando uma panaceia meio boba assim como sei o quanto é difícil 
formar novos leitores. No entanto, o país está agonizante. Tenho certeza de 
que o Slavutzky concordaria comigo: mais do que estreitar laços para garantir nossa 
saúde, bem que poderíamos começar a ler para curar duas vezes nossas almas. 
Quem sabe uma nação de leitores é capaz de curar o país?
















Biratan



Fabiane Langona

Ferrugem

 LAERTE


Relacione-se com quem te faz ler - Ruth Manus


Estou saindo para a casa da Kátia. Não posso ir visitar a Kátia sem levar um livro
para emprestar. Das últimas vezes, ela me trouxe três. O Martelo das Feiticeiras, 
Regrets Sur Ma Vieille Robe de Chambre e A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. 
Esse último foi das coisas mais gostosas que li. Não posso chegar lá sem um livro.
Olho para a minha prateleira e escolho A Montanha da Água Lilás, do Pepetela. 
Preciso de mais alguma coisa. Poesia. Ela não é muito de poesia, mas vou levar 
mesmo assim. Escolhi a Wislawa Szymborska, com aquele cigarrão na capa. Ela 
vai gostar.
Por sinal, lembrei que preciso ler aquele livro que a Tia Rê me emprestou. Não 
lembro o nome, era um vermelho, sobre uma indiana que tentava se matar. Ficou
lá em Lisboa. Preciso ler, deve ser bom. E preciso saber o que ela achou do livro 
da Agatha Christie que emprestei pra ela. Tia Rê lê rápido que nem o meu pai, 
morro de inveja. Por falar no meu pai, nessa onda de Pepetela que eu estava, 
comprei pra ele o livro do agente Jaime Bunda e esqueci de perguntar o que ele 
achou. Da última vez que indiquei uma leitura pra ele, não deu certo. Era No Mar, 
aquele livro do holandês que perdia a filha dentro do veleiro. Eu deveria ter 
imaginado, meu pai detesta coisas angustiantes com filhas. Sorte a minha.
Foi o moço da livraria ali na Avenida Moema que me indicou o No Mar. O mesmo
que me indicou aquele livro do José Luís Peixoto sobre a morte do pai. Uma das 
coisas mais bonitas que já li. Outro dia descobri que o escritor é quase tão bonito 
quanto o livro. Quando morreu o pai de um amigo mandei esse livro pra ele. Não 
sei se ajudou, mas foi de coração.
Pro meu namorado levei o livro de receitas de Game of Thrones. Um dia abri 
o livro e tentei fazer uma cebola com conhaque no forno. Não ficou bonita que nem 
o José Luís Peixoto nem gostosa que nem A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. 
Ainda bem que o Filipe cozinha bem e gosta que eu seja melhor com livros do que 
com cebolas. No Natal ele me deu a primeira edição de Human Sexual Response, 
livro pioneiro no estudo da sexualidade humana, publicado nos anos 60, que virou
uma série pela qual eu fiquei vidrada. Primeira edição, ele me deu a primeira edição. 
Mais uma razão para casar com ele.












As pessoas e seus livros - Ruth Manus

Lembro que logo que entrei na faculdade de direito, os olhos do meu pai brilhavam ao me ver perambulando com aquelas dezenas de livros que eu mal compreendia. Francesco Carnelutti, Cândido Dinamarco, Maria Helena Diniz, Franco Montoro, Dalmo Dallari. O simples fato de ver os livros ao meu lado já parecia ser quase suficiente para alegrar aqueles olhos de pai professor, que, no fundo, sabia que frequentemente eu lia sobre teoria geral do direito civil pensando seriamente se meu açaí seria com banana ou com morango.
Até que um dia aquele olhar risonho foi tomado por uma nuvem negra e a expressão pacífica do pisciano ganhou ares de assombro. Ele não podia acreditar no que estava vendo. Ele não queria acreditar que a própria filha, tão Manus e tão alérgica a wasabi quanto ele, pudesse estar cometendo tamanha atrocidade. Ele se aproximou lentamente, como quem estica o pescoço assustado para observar uma vítima de acidente ou um animal selvagem, e me perguntou o que eu estava fazendo.
“Estudando”, eu respondi, um pouco desconcertada com a existência de dúvida perante uma cena tão autoexplicativa. Então ele disse aos solavancos com os olhos arregalados “VO. CÊ. ES. TÁ. GRI. FAN. DO. O. LI. VRO. COM. CA. NE. TA?”. Eu, cada vez mais desnorteada, respondi que sim, estava grifando com marca texto laranja e fazendo anotações com a caneta azul, afinal, o livro era meu, não era da biblioteca. Certo?
Foi então que eu descobri que as pessoas têm relações absolutamente distintas com seus livros. O que parece normalíssimo para alguns, parece um verdadeiro sacrilégio para outros. Temas como emprestar ou não emprestar, doar ou não doar, anotar ou não anotar, dobrar ou não dobrar, tornam-se dilemas tão shakespearianos quanto ser ou não ser.
Eu confesso que realmente adoro anotar coisas nos meus livros. Puxar setas, grifar frases, colocar asteriscos. E não tenho qualquer problema em fazer isso a caneta. Até com caneta vermelha, se for preciso. Meus livros frequentemente se parecem com a bandeira do orgulho gay. No entanto, tenho a mais profunda aversão a pessoas que dobram a pontinha da página para marcar algo que julguem relevante. Isso sim me tira do sério.
Minha mãe faz algumas anotações, mas sempre a lápis. Meu pai é absolutamente incapaz de interferir nas linhas. Quando muito, coloca seu nome na primeira página. Minha tia compra o livro, lê e doa. Acho a coisa mais linda do mundo. E não tenho a menor capacidade de fazer o mesmo. Preferiria doar dinheiro vivo para bibliotecas públicas do que doar meus livros. Simplesmente não consigo evitar esse sentimento egoísta de amar prateleiras gorduchas.
Outro dia minha irmã me perguntou por que eu não tinha um Kindle. Eu, antes de lembrar daquele aparelho para ler livros digitais, confundi Kindle com kinder e me perguntei por que minha irmã achava que eu deveria ter ovos de chocolate recheados com surpresas nessa fase da vida. Mas depois que entendi, respondi, quase ofendida, “Ué Nina, porque eu gosto de livros!”. Ela me olhou com aquela cara de administradora hi-tech e disse “os livros não deixam de ser livros por serem digitais”. Até hoje não sei bem o que pensar, me mantendo no conservadorismo do papel.
Soma-se a isso a traumática experiência de emprestar livros. Quantos livros foram e não voltaram? Quantos livros ficaram nas nossas prateleiras sem que saibamos exatamente quem nos emprestou? Trata-se de uma prática cujos índices de insucesso rondam os 98%.
Ninguém dá atenção para esse assunto, mas a relação das pessoas com os seus livros é tão íntima quanto uma vida de casal. Há pormenores, traumas, manias. Há sutilezas, pânicos, bloqueios. Prefiro que mexam no meu queijo do que mexam nos meus livros. Eu hein, vai que dobram a pontinha da página. 






Fascinantes retratos - Humberto Werneck
Em tempos menos bicudos, como outrora se dizia, eu costumava adquirir, para presentear, ainda sem destinatário certo, exemplares de algum livro pelo qual estivesse apaixonado. Escolhia o ganhador, entregava o livro e avisava, extrapolando na ênfase: se não gostar, devolva - e rompemos relações! Foi assim, por exemplo, com Marca d’Água, de Joseph Brodsky, sobre Veneza. Claro Enigma, de Drummond. Vista do Rio, romance de Rodrigo Lacerda. A Face Horrível, contos de Ivan Angelo. A Balada do Café Triste, de Carson McCullers. Devolução? Nenhuma - sinal de que, para literatura como para leitores, tenho faro bom.
Naquela farra - no momento suspensa, convém avisar, por motivo de rarefação pecuniária -, a obra que mais distribuí foi talvez O Príncipe e o Sabiá, coletânea póstuma de perfis escritos por Otto Lara Resende e selecionados por Ana Miranda. Saiu pela primeira vez em fevereiro de 1994. Disse alguém que, pouco antes de morrer, em dezembro de 1992, Otto andava às voltas com a seleção desses escritos, ao mesmo tempo em que, no afã de “despiorar”, como dizia, O Braço Direito, seu único romance, de 1963, praticamente o transformou em livro novo.
Tenho dúvidas de que Otto Lara Resende estava mesmo disposto a concluir um livro de perfis, aplacando assim as insistentes cobranças de amigos e editores. Era famosa a sua inapetência editorial. Para o cupincha Hélio Pellegrino, psicanalista além de poeta, Otto era um caso de bibliofobia.
De fato, relutou até o fim em permitir reedição de qualquer de seus escritos, ou mesmo a circulação dos já impressos. Já contei dos esforços que fez para que eu lhe devolvesse um exemplar de O Lado Humano, o livro de contos com que estreou nas livrarias, em 1952, relíquia que ele próprio, num momento de descuido, me presenteara. Se em 1991 consentiu na publicação de uma seleta de contos, O Elo Partido, terá sido, acredito, como pagamento de pedágio da amizade que o ligava a Dalton Trevisan, responsável pela iniciativa. Foi preciso que Otto morresse para que sua obra, breve mas sólida, pudesse novamente circular para além das bibliotecas.
Junto com reedições, veio então o inédito O Príncipe e o Sabiá, que, além de encantar leitores em geral, aos poucos converteu-se em leitura obrigatória para jornalistas em formação, ou mesmo já rodados, como este cronista. Esgotado fazia tempo, o livro foi agora relançado pela Companhia das Letras, em edição ainda mais esmerada, acrescida de esplêndido posfácio de Wilson Figueiredo, outro craque do jornalismo, amigo de Otto desde os anos 1940. Desconfio que, remediava a atual anemia financeira, voltarei a buscar quem me pareça merecer O Príncipe e o Sabiá.
O gênero, perfil, me seduz desde sempre - existe neste mundo algo mais interessante do que gente? -, e Otto Lara Resende é para ele especialmente dotado. Chega a ser injustiça de Deus, se houver, a atribuição de tantos talentos a uma só pessoa. Não lhe bastasse ter sido um jornalista atento e afiado como poucos, Otto era dono, também, de cintilante texto literário, o que, no jornalismo, de saída o colocava vários palmos acima da maioria dos colegas. Para completar, tinha genuíno interesse no seu semelhante, fosse ele figura pública ou obscura pessoa.
Coisa rara, convenhamos, no ser humano em geral, essa capacidade de ver e ouvir, ainda mais em se tratando de artistas da palavra oral, como foi Otto, legendário causeur que, no meu panteão particular, só vejo ao lado de Antonio Candido, outro extraordinário conversador. Donos de verbo brilhante tendem a ignorar o verbo alheio, mais preocupados que estão em ressoar nos ouvidos do interlocutor, para eles plateia. Não é o caso dos supracitados, capazes também de se interessar pelo outro e por seu ponto de vista, abertos até mesmo a eventuais mudanças de opinião. Otto dizia que, por isso, não lhe convinha ser apresentado ao demônio.
Ao contrário do que em geral acontece, não se confinava ao universo dos que pensassem como ele. Aberto também a seu dessemelhante, não me surpreende a quantidade de gente com quem dialogou em 70 anos de vida. Fernando Sabino, que o conheceu na adolescência, gostava de propor o duríssimo desafio de apontar uma só figura pública da vida brasileira com quem Otto Lara Resende não tivesse batido uma bola. Também por isso é natural que tenha sido o perfilador que foi.
Sei que você merece, mas não fique à espera de ganhar de mim seu exemplar de O Príncipe e o Sabiá. Recomendo ir sem mais tardança a essa galeria de impecáveis retratos. Lá estão escritores como os três grandes Andrades - Mário, Oswald e Drummond -, Manuel Bandeira, Graciliano, Clarice, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Murilo Mendes. Estrelas políticas de variadas galáxias, entre elas JK, Getúlio, João Goulart, Carlos Lacerda e o ditador português Salazar. E muita gente mais.
Do que mais gostei? Não ponha num aperto quem se deliciou da primeira à última página, aí incluído o posfácio do Figueiró. Se eu votar, digamos, em “Jânio, ao cair da tarde: 1961”, corro o risco de estar sendo injusto com todos os demais escritos deste livro.
Ah: não acredite no Otto quando ele diz que é “melhor minerador dos outros do que de mim mesmo”. O desmentido está ali, mesmo, num texto tão cativante quanto vertiginoso, praticamente sem parágrafos, feito por instigação de Paulo Mendes Campos que, um dia, perguntou ao amigo: “Quem é Otto Lara Resende?” Duvido que se pudesse achar fecho melhor para O Príncipe e o Sabiá.
















Fantasmas à deriva - Humberto Werneck


Já falei do plano que tenho de lançar livro não em livraria, mas num sebo. Para queimar etapas. Lançado ali, ali mesmo poderá ficar, tão logo o garçom recolha as taças de vinho branco, os pratinhos com patê verde e as cumbucas antes habitadas por aquelas bolotinhas multicoloridas. O comprador ficará dispensado de ler, pois livro de sebo, em princípio, já vem lido. Para o autor, haverá a vantagem de poder acostumar-se, já no lançamento, com a experiência desagradável de topar com seu rebento na poeira de um sebo.

Em Minas Gerais, a propósito, se conta como tendo acontecido ali a história do medalhão das letras que, ao fuçar entre volumes literalmente entregues às traças, encontrou, coberto de poeira, um exemplar do que supunha ser a sua obra-prima.

Coração aos solavancos, dedos trêmulos, pinçou o volume na estante e, sucumbindo à temerária tentação de abri-lo, deu de cara com a dedicatória que ali garatujara para um confrade, com o qual partilhava, além do hábito de produzir subliteratura, uma inextirpável antipatia de mão dupla. Detestavam-se os dois cordialmente, como sói acontecer entre escritores - mas não era este o advérbio que ele, pessoa peçonhenta, havia encastoado na dedicatória, redigida com os maus bofes de quem atira um punhado de folhas de urtiga. “Para fulano de tal, atenciosamente, o beltrano.” Sim, o mesmo “atenciosamente” com que se fecha a mais impessoal das correspondências comerciais.

Sentindo-se diante de uma rejeição também literária, algo para ele ainda mais ultrajante que a mudez da crítica, o homem de más letras decidiu passar por cima de sua conhecida sovinice e desembolsar uns trocados na compra do livro, tão velho quanto virgem, cujo baixo custo, aliás, lhe bateu como ofensa adicional. Em seguida, despachou-o de volta para o colega - não sem antes acrescentar à primeira dedicatória um dose redobrada de desprezo: “Com renovadas atenções”.

Não cheguei a tanto ao encontrar num sebo, dias atrás, um dos 500 exemplares, numerados e rubricados, de um livro de contos que publiquei, faz 12 anos, em edição particular, fora do comércio, com o objetivo de presentear amigos. Afinal, ele não estava em má companhia: a poucos palmos de distância, Jean-Paul Sartre piscava o olho torto para eventuais compradores. Se num sebo há de tudo, por que não algo de minha lavra?

E até mais do que isso. Quatro anos atrás, alguém me deu notícia de livro meu que nunca existiu, O Perfil no Jornalismo, oferecido por um alfarrabista em Simões Filho, Bahia, ao preço de 25 reais. Algum malandro apropriou-se de anotações que usei numa palestra, providenciou encadernação com espiral e botou à venda. Quando, intrigado, tentei comprar, havia desaparecido. Esgotei em Simões Filho.

No caso do livro de contos, que por sinal se chama Pequenos Fantasmas, assimilei perfeitamente a constatação melancólica de que ele, mesmo escrito e editado com tanto capricho, tinha ido parar na vala comum de um sebo. Já estava calejado, pois não foi a primeira vez que isso aconteceu. Na primeira, aquela, sim, traumatizante, hesitei antes de ler a dedicatória. Quem teria enjeitado a minha esmerada prenda literária? Senti alívio ao encontrar ali um prenome dos mais usuais. Dissipou-se-me (diria o Temer) o impulso masoquista de fulanizar o autor da descortesia: se podia ser tantos, então era nenhum.

O destinatário de outro exemplar dos meus fantasmas, o de n.º 410, teve a delicadeza de borrar seu nome na dedicatória, de modo a torná-lo ilegível. Como alma piedosa que resgata um enjeitadinho na calçada, trouxe-o comigo para casa. Foi consolador constatar que alguém compra livro meu, ainda quando esse alguém seja eu mesmo. Só não o faço mais frequentemente porque alguns alfarrabistas, com certeza apostando mais na tiragem diminuta do que no suposto valor de minha prosa, vêm pedindo por ela preços por demais obesos. Com especial voracidade, certa buquinista de Belo Horizonte, que, ao pedir um despropósito, só pode estar de olho numa valorização póstuma do autor.

Mas voltemos àquele exemplar que retornou às minhas mãos. Sem mágoa nem ressentimento, arrematei-o, com o objetivo de lhe dar uma segunda chance. E estou desde já preparado para a possibilidade de que hora dessas, num sebo, venha a topar outra vez com meu livrinho, acrescido agora de mais um borrão na folha de rosto. Quem sabe acabará ele por fazer história, que nem a casaca do filme Seis Destinos, de Julien Duvivier, no original Tales of Manhattan, título meio trocadilhesco, uma vez que tails, com a mesma pronúncia de tales, é sinônimo de casaca? (Desnecessário dizer que não é meu tanto saber cinematográfico, e sim do Sérgio Augusto, a quem jamais recorri em vão.) Como a peça de roupa do filme, meus fantasminhas rodariam por aí, expostos à possibilidade, quem sabe, de nessa peregrinação adquirirem, além de fungos, algum peso literário.








Tinha uma pedra no meio do caminho - Leandro Karnal


Sempre houve livros mais fáceis do que outros. Mesmo dentro de uma mesma coleção como a Bíblia, é mais fácil explicar a metáfora do salmo “O senhor é meu pastor” do que o prólogo joanino: “No princípio era o Verbo”. A leitura de Alexandre Herculano emperra mais do que a de Machado de Assis. Tamanho das frases e vocabulário explicam a diferença. Por vezes, é a erudição do autor; em outras, a complexidade da narrativa.
Guimarães Rosa usa um vocabulário único e reinventa a língua, dificultando a leitura para alguns. James Joyce dificulta para todos. Finnegans Wake foi um dos raros textos que abandonei pela metade. Ainda não tenho maturidade para entender a mente do irlandês. Não decifrei essa obra de Joyce e, confesso, tenho um pouco de medo de quem consiga fazê-lo. Joyce parece cumprir aquela velha piada: quando Hegel começou a escrever sua obra, só ele e Deus sabiam o que ele queria dizer; ao final, só ele...
O elenco das peças de Shakespeare é um desafio para o leitor. Há muitos nomes, especialmente nos dramas históricos. Apesar da clareza exemplar de linguagem, Tomás de Aquino assusta pelo volume. Outro exemplo de muro íngreme a escalar? O texto de Lacan apresenta palavras em letra maiúscula que são inteiramente diferentes do que podem parecer: Outro, Mesmo... Você precisa ser íntimo das bisbilhotices dos partidos guelfos/gibelinos/negros/brancos em Florença para atravessar o mata-burro da entrada do latifúndio de Dante Alighieri na Divina Comédia. A genealogia pouco criativa de Macondo é um dique para o fluxo do leitor de Cem Anos de Solidão: todos os nomes se repetem em todas as gerações. Não sabe se é o ditador Francia ou seu secretário que está falando? Perca-se em meio à sintaxe quase guarani da obra de Roa Bastos: Eu, o Supremo.
Tamanho, vocabulário, ideias, erudição, metáforas herméticas: tudo pode ser um obstáculo no enfrentamento de um clássico. Em oposição, um best-seller asfalta nosso caminho e o povoa de árvores e bancos para que o leitor não se canse na jornada. Palavras simples, enredo rápido e cheio de mudanças vibrantes, mistérios que se resolvem ao longo da obra e um doce canto da sereia da facilidade que deseja atrair nossa atenção. O livro comum quer nosso interesse e anela cativar. O clássico diz que esteve bem nos últimos 300 anos sem você e passará bem os próximos mil após sua morte. O best-seller grita: preciso do seu ibope! O clássico sussurra num muxoxo blasé: não tenho a menor necessidade da sua consideração.

Há dúvidas plausíveis na escolha. Por que pegar a estrada menos asfaltada e ser fustigado por um sol inclemente? Por que escolher a dificuldade em detrimento da facilidade? Quem escalaria a íngreme palmeira atrás do coco duro se dispusesse do mesmo coco já perfurado, gelado e com canudinho e servido à mesa? Que patologia move o leitor de obras difíceis? A resposta é complexa.
Se você se inscrever numa academia de musculação, verá que há pesos de poucos gramas. Fazer exercícios com eles pode provocar, em última instância, apenas tédio. O peso leve não oferece resistência. Sem obstáculo, o músculo não cresce. Sem trauma, a fibra não se transforma. Não suamos, não crescemos, não saímos da nossa zona de conforto. O mesmo ocorrerá se você decidir andar na esteira a um quilômetro por hora. O benefício será menor do que um passo mais decidido. Crescimento deriva do desafio.
A dificuldade da grande obra é seu mérito. Meu vocabulário cresce, minha mente se expande, minha musculatura intelectual se fortalece diante do esforço. O custo? Todo o cérebro range ao peso das ideias, como uma carroça sobrecarregada. As rodas afundam no solo, os bois resistem, o arcabouço estala e o avanço é lento. Ao final, as uvas da obra foram esmagadas por nossos pés cansados e do lagar flui um novo vinho complexo e capitoso.
Um best-seller pode ser muito bom. Já li dezenas. São obras bem construídas. Distraem e servem bem para momentos nos quais seria difícil a concentração extrema. Há dias de vinhos complexos e há dias de refrigerantes. Ao final da leitura da obra fácil, você está algumas horas mais próximo da morte. Best-seller tem função de opiáceo: relaxa, induz à tranquilidade, adormece.
A obra clássica é multifacetada. Muda nosso lugar no mundo. Ela desafia nossos limites e revira as ideias. O que você realmente sabia sobre desejo e fome até ler Um Artista da Fome de Kafka? Não há nenhuma palavra nova no conto. A narrativa é linear e até fácil. Mas, as ideias... o final surpreendente. Ir além seria spoiler...
A obra clássica bem lida tem de ser digerida. Pessoas com certezas absolutas nunca parecem ter se aprofundado em Dostoievski. Quando alguém me afirma que o mundo anda meio perdido, eu me indago se ele varou noites na Comédia Humana de Balzac. Se me dizem que estamos perdendo nossa identidade ocidental, eu suponho que não tenha entendido Coração das Trevas, de J. Conrad. Confundindo afetos, gênero e moral? Já leu a Ilíada de Homero ou Bom-Crioulo de Adolfo Caminha? Terá captado as sutilezas entre Davi e Jônatas? A boa leitura impede que você suponha que nossos dias são extraordinariamente novos. Você ousaria saber?



Aldir Blanc 

Foto de Piaget









Livros e terapia - Leandro Karnal

Franz Kafka tinha algo como 21 anos quando, em uma carta para um amigo, definiu por que vale a pena ler. Era uma resposta. Seu colega dissera que ler era algo que deveria ser feito para nos deixar felizes. Kafka dizia o oposto, que devemos tender à leitura daquilo que nos fere, nos machuca: “Se o livro que estamos lendo não nos acordar com um golpe na cabeça, para que estamos lendo?


Precisamos de livros que nos afetem como uma tragédia, que nos entristeçam profundamente, como a morte de alguém que amamos mais que a nós mesmos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado para o mar congelado dentro de nós. Essa é minha crença”. 

Meu sentimento não é tão trágico com o de Kakfa, mas quem sou eu perto do gênio... Humildemente, penso que livros ferem, curam, sossegam, inquietam, quebram o gelo dentro de nós, congelam a alma. Às vezes, esse efeito bipolar da leitura pode se dar em uma mesma obra. O fato inescrutável é que bons livros nos formam, nos transformam. 


Essa regra é universal e por isso me dói pensar que somos um país com tão poucos leitores. O número deles cresceu, mas, em média, o brasileiro lê apenas 2,5 livros por ano (a maioria é de livros religiosos). 

Estatísticas são escorregadias: dizer que lemos 2,5 livros em média por ano é omitir que 30% de nós nunca compraram um livro e que 25% dos que leram algo o fizeram por exigência da fé, da escola ou do trabalho. É uma pena. As soluções passam por melhorias na educação (dando maior capacidade de compreensão daquilo que se lê), acesso aos livros (bibliotecas públicas, doações, expansão das livrarias físicas e online). Essas são questões macroestruturais mais complexas. Mas há questões de hábito, que podem ser resolvidas mais facilmente, com a criação de um clube ou laboratório de leitura, por exemplo.

Meu amigo Dante Claramonte Gallian dava aulas de História da Medicina na Unifesp. Tratava de história da medicina e analisava grandes médicos do passado, como Galeno ou Harvey. Aquilo foi ficando estranho, não conseguia humanizar a medicina – que, em tese, deveria ser a quintessência do humano. Ele passou, então, a levar pequenos textos de autores antigos, medievais e modernos para que seus alunos lessem em primeira mão. A aula deu um salto. A experiência cresceu e nasceu um laboratório de humanidades, que ganhou vida própria e se transformou no laboratório de leitura. Um clube de leitores. Ninguém precisa ler acompanhado. Nossos hábitos de ler são históricos e mudaram muito com o tempo, mas há séculos temos o costume de ler silenciosamente, como exercício introspectivo. Ler é solidão. Mas compartilhar a leitura é algo igualmente rico. 

As experiências de ler como busca de conhecimento de si e do mundo, ler como terapia inclusive, viraram o livro A Literatura Como Remédio (Editora Martin Claret). Dante desenvolve o uso de clássicos como forma de se reelaborar. O projeto hoje atinge empresas. Cada vez mais administradores percebem o valor de funcionários diferenciados pela leitura produtiva de clássicos. 

Em chave distinta, Fernanda Sofio fez o texto Literacura – Psicanálise Como Forma Literária (Editora Fap-Unifesp). Buscando a voz poderosa (e pouco conhecida, surpreendentemente) de Fabio Herrmann como guia, as ideias de Sofio buscam na sensibilidade da criação literária um caminho de compreensão. Minha leitura de Freud foi muito renovada pela capacidade de refazer seu caminho de ruptura (em detrimento do dogmático) a partir do que a Fernanda encontra na ficção, como na obra de Herrmann A Infância de Adão. Pelas mãos de Fernanda, li A Infância de Adão e, confesso, fiquei muito tempo tentando digerir todas as provocações do texto. 

Em uma análise terapêutica, sofremos, rimos, superamos, perlaboramos, remoemos, destilamos, superamos traumas e passagens de nossa existência. Na leitura, fazemos o mesmo a partir do poder narrativo, da grandeza poética da pena de outra pessoa. Machado, Lispector, Pessoa, Kafka, Cervantes, Shakespeare, Austen e tantos outros nos formam, nos estruturam, nos fazem sair de nós mesmos para voltarmos diferentes, como em qualquer história de herói clássica: o retorno a nossa Ítaca nunca trará o mesmo Ulisses que partiu. 

Quer pensar uma experiência desafiadora para 2019? Comece um grupo de leitura. Escolha pessoas interessantes. Talvez existam três delas entre todos os seus conhecidos. Adotem um clássico. Leia de forma pausada. Usem os métodos de Dante ou de Fernanda como guias, se desejarem. É preciso querer muito porque o entusiasmo inicial vai esbarrar nas agendas em breve. Se você tiver um bom clássico e possuir algumas pessoas interessantes capazes de repetir uma reunião semanal ou quinzenal, exulte! Você é uma pessoa privilegiada. O resultado da experiência é transformador e mais barato do que muitas soluções contemporâneas em busca de paz e de conhecimento. Sugestões? O livro de Jó na Bíblia, Macbeth de Shakespeare, Dom Quixote de Cervantes, Lavoura Arcaicade Nassar, Paixão Segundo GH de Clarice Lispector ou Memórias de Adriano de M. Yourcenar. Papel ou virtual? Irrelevante. Quantas páginas por semana? Subjetivo de acordo com o grupo, mas não mais de 50, para que se possa realmente aproveitar o debate. Digerir bem o texto é fundamental. Creia-me: tudo mudará no seu cérebro depois da experiência. Pensar é uma escolha metódica, é erguer uma cabeça acima do pântano e resistir ao frio externo. Pensar é sair das fogueirinhas acesas pelas bolhas sociais. É preciso ter esperança. 

Escadarias da Universidade de Balamand - Líbano





História secreta de um livro - Milton Hatoum


Era um dos livros raros na tenda de um “bouquiniste” à margem do Sena. Em dois ou três sábados gelados daquele inverno distante, passei por lá para admirar as gravuras e a tipografia da edição de 1874. Em fevereiro, o livro sumiu. 
Um outro fetiche parisiense era ficar na calçada de um pequeno restaurante da Rive Gauche e observar a comida fumegante, como se eu estivesse do lado de fora de um aquário aquecido; mas a fome pelo livro raro era mais voraz. Eu o havia lido numa reles edição de bolso, mais barata que um crepe na rue des Écoles, ali ao lado da Sorbonne Nouvelle; ou um croque-monsieur em qualquer padaria do décimo segundo distrito, onde eu morava.

Um dia, depois de dar uma aula particular num subúrbio rico de Paris, vi meu vizinho brasileiro da rue d’Aligre sair do edifício com um livro apertado contra o peito. Parecia a edição de 1874, que imantava sonhos e desejos. Perguntei se o havia comprado num bouquiniste. Negou com uma expressão confusa e disse: Este livro tem uma história. Eu ia   dizer que todo livro tinha uma história, mas o vizinho, esquivo, encerrou a conversa.

Numa noite de março - lembro que nevara nesse sábado e Paris estava branca e triste -, entrei num café do Faubourg Saint-Antoine e vi meu vizinho apoiado no balcão, lendo anotações numa caderneta. Sem mais nem menos, me convidou pra tomar um conhaque no seu “lar”. Eu, que morava num lugar apertado, me surpreendi com esse “lar”: uma ironia ou um eufemismo radical.
Ele dormia num quartinho com uma latrina, que a herança do orientalismo francês chamava de banheiro turco. As quatro paredes pareciam febris e suarentas de tanta nostalgia, e uma lâmpada solitária no teto iluminava as noites mais escuras da alma do expatriado.
Paris, para ele, era mais sombra que luz? Foi o que eu me indaguei ao observar o aposento opressivo. Me ofereceu conhaque, depois se serviu e entornou meio copo, sedento. Sentamos no carpete puído, nós dois cercados de jornais e revistas franceses. O livro raro estava sobre uma mesinha encostada a uma parede cheia de fotografias de amigos. Ele falou um pouco de cada um deles; por fim, movido pelo conhaque, contou com elã a história do livro. Impossível resumir numa crônica essa narrativa de êxtase.
Saí de lá às seis da manhã do domingo, e só tornei a revê-lo numa tarde de abril, quando as árvores esverdeavam, floridas. Ele parecia possuído pela alegria de um viajante que volta para casa. Ajudei-o a carregar uma sacola de lona até o metrô da Bastilha, de onde iria a Châtelet e depois ao aeroporto. Na despedida, perguntei se a sacola estava cheia de pedras parisienses.
“Jornais e revistas”, respondeu. “Selecionei mais de cem exemplares do Le Monde, Figaro e Libération e duas dúzias da Nouvelle Revue Française. É a minha bagagem. Tenho pouca roupa, nenhum objeto. Aquele livro está guardado num estojo, dentro desta maletinha... É o meu amuleto.”
Ri dessa loucura e ele, talvez por contaminação, ou para não chorar de sua miséria, também riu. Esse rosto risonho no subterrâneo da Bastilha foi a última visão do meu vizinho.
O rosto dele foi borrado pelo tempo, mas não a história do livro. Trinta e cinco anos depois, minha editora francesa me enviou um pacote. O remetente era o ex-vizinho, e o endereço, parisiense: rua Charles Baudelaire, ali perto da rue d’Aligre. No fundo, voltara ao mesmo lugar.
Numa longa carta, rememorou nosso encontro de 1981 e agradeceu mais uma vez minha ajuda naquela tarde de abril. Recontou a história do livro raro, acrescentando detalhes e omitindo alguns, que eu recordava: omissões que atribuo à duvidosa ordem do tempo ou à inevitável desordem da memória. No fim da carta, disse que tinha me visto no Salão do Livro de Paris, em março de 2015.
“Éramos dois velhos... Você não me reconheceu, e eu não quis quebrar o encanto do esquecimento.”
Quando abri o pacote, vi com emoção o livro raro, e tão cobiçado. Era um convite sutil para que eu escrevesse a outra história desse livro: uma narrativa triste e tumultuada de um jovem brasileiro no exílio parisiense.






Natureza Morta - Van Gogh


André Derain, A xícara de chá, 1935 


Milton Avery, Poesia depois do café da manhã, 1951

O dono do livro – Martha Medeiros


Li outro dia um fato real narrado pelo escritor moçambicano Mia Couto. Ele disse que certa vez chegou em casa no fim do dia, já havia anoitecido, quando um garoto humilde de 16 anos o esperava sentado no muro. O garoto estava com um dos braços para trás, o que perturbou o escritor, que imaginou que pudesse ser assaltado. 

Mas logo o menino mostrou o que tinha em mãos: um livro do próprio Mia Couto. Esse livro é seu? perguntou o menino. Sim, respondeu o escritor. Vim devolver. O garoto explicou que horas antes estava na rua quando viu uma moça com aquele livro nas mãos, cuja capa trazia a foto do autor.

O garoto reconheceu Mia Couto pelas fotos que já havia visto em jornais. Então perguntou para a moça: Esse livro é do Mia Couto?. Ela respondeu: É. E o garoto mais que ligeiro tirou o livro das mãos dela e correu para a casa do escritor para fazer a boa ação de devolver a obra ao verdadeiro dono.

Uma história assim pode acontecer em qualquer país habitado por pessoas que ainda não estejam familiarizadas com os livros – aqui no Brasil, inclusive. De quem é o livro? A resposta não é a mesma de quando se pergunta: “Quem escreveu o livro?”.

O autor é quem escreve, mas o livro é de quem lê, e isso de uma forma muito mais abrangente do que o conceito de propriedade privada – comprei, é meu. O livro é de quem lê mesmo quando foi retirado de uma biblioteca, mesmo que seja emprestado, mesmo que tenha sido encontrado num banco de praça.

O livro é de quem tem acesso às suas páginas e através delas consegue imaginar os personagens, os cenários, a voz e o jeito com que se movimentam. São do leitor as sensações provocadas, a tristeza, a euforia, o medo, o espanto, tudo o que é transmitido pelo autor, mas que reflete em quem lê de uma forma muito pessoal. É do leitor o prazer. É do leitor a identificação. É do leitor o aprendizado. É do leitor o livro.

Dias atrás gravei um comercial de rádio em prol do Instituto Estadual do Livro em que falo aos leitores exatamente isso: os meus livros são os seus livros. E são, de fato. Não existe livro sem leitor. Não existe. É um objeto fantasma que não serve pra nada.

Aquele garoto de Moçambique não vê assim. Para ele, o livro é de quem traz o nome estampado na capa, como se isso sinalizasse o direito de posse. Não tem ideia de como se dá o processo todo, possivelmente nunca entrou numa livraria, nem sabe o que é tiragem.

Mas, em seu desengano, teve a gentileza de tentar colocar as coisas em seu devido lugar, mesmo que para isso tenha roubado o livro de uma garota sem perceber.

Ela era a dona do livro. E deve ter ficado estupefata. Um fã do Mia Couto afanou seu exemplar. Não levou o celular, a carteira, só quis o livro. Um danado de um amante da literatura, deve ter pensado ela. Assim são as histórias escritas também pela vida, interpretadas a seu modo por cada dono.


Ivan Zigg







Benett







PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS   -   ESTELA MAY







Laerte





Tudo o que é preciso para fazer literatura - Tati Bernardi


Ricardo pediu demissão do trabalho pra poder terminar, finalmente, o seu romance. Ricardo gostava do seu trabalho em um prédio na Berrini, mas não gostava nem do prédio e nem da Berrini. Gostar não bastava, amor mesmo ele tinha pela literatura.

No primeiro dia em casa, entendeu que sem uma porta delimitando o escritório seria impossível. A criança berrando, a empregada puxando papo, a mulher ligando. Até o arquiteto terminar a reforma foram sete semanas sem nenhuma linha escrita por Ricardo.

Isolado em sua ilha criativa, Ricardo entendeu que sem ar-condicionado seria impossível. Teve que quebrar as paredes recém-levantadas pra meter um Split Inverter. Foram mais 16 dias sem nenhuma palavra escrita, apenas alguns xingamentos por e-mail para a Fujitsu porque eles atrasaram dois dias.

Congelado e isolado em seu escritório com frigobar (notou que seria impossível escrever sem um frigobar), Ricardo entendeu que só tem assunto quem está fora de casa, vivendo a vida ou simplesmente vendo a dos outros. Resolveu comprar um laptop e se aventurar em um café. Sempre achou muito chique pessoas que "escrevem em um café". Tentou um perto da sua casa, mas ficou travado. Tentou um bem longe da sua casa e continuou travado. As pessoas falam muito alto nos cafés.

Ricardo concluiu que o problema era São Paulo. Essa cidade combina com prédios na Berrini e não com literatura. Comprou então um terreno pequeno no meio do mato e, nos quase dois anos que demorou pra construir, encher de móveis e a Net realmente aparecer, não escreveu nenhuma linha do seu romance. Claro! Era impossível tocar o mais divino em si enquanto estivesse estressado com uma obra que não acabava nunca! E, falando em obra, daqui a pouco o mundo saberia do que ele é capaz.

A mesa de madeira de demolição era voltada para árvores. A cadeira estava na altura mais adequada em relação ao seu problema na lombar, e o computador, em cima de livros de arte sacra, estava na altura mais adequada em relação ao seu problema na cervical. Agora vai! Ricardo escreveu a primeira frase "Era uma manhã como outra qualquer quando...". Achou a frase uma boa de uma bosta e mudou para "Não fosse uma manhã qualquer quando..." e deduziu que essa era pior ainda. A casa inteira fedia mofo com cachorro molhado. Quem é que escreve num lugar desses?

A grana foi acabando toda, a mulher foi pagando tudo, o filho foi crescendo e demandando mil coisas e Ricardo sumiu. Por dias a família não teve notícias do escritor até que, em uma manhã como outra qualquer, ele apareceu fantasiado de mendigo. Achou que dormindo na rua teria assunto pro livro. E você escreveu alguma caralha, seu desgraçado? A paciência da pobre esposa estava mais surrada que a roupa de Ricardo. A resposta era: não. Infelizmente ele foi obrigado a trocar seu laptop por uma manta quadriculada de lã, em uma madrugada fria.

Ricardo tentou Paris, cocaína, tatuagem, depressão, traição, homossexualismo, acupuntura, suicídio e curso de escritor na Vila Madalena. Nenhuma dessas coisas resultou em romance, mas Ricardo sabe bem o motivo: ele ainda é muito novo. Agora, de volta ao prédio na Berrini, ele planeja, em breve, fazer o que sempre quis: largar tudo pra escrever seu romance. Quem sabe um dia.



Will Tirando



Caco Galhardo





Sugestão de risco - Ruy Castro

Um amigo me procurou para falar de como, de repente, foi acometido de uma incontrolável necessidade de escrever ficção. Mas seu trabalho em importante escritório de advocacia não lhe dá tempo para isso. Como me julga uma autoridade no assunto, perguntou-me o que fazer. Respondi que, se essa necessidade for mesmo incontrolável, nada o deterá —ele jogará tudo para o alto, carreira, família, e se tornará escritor.
Se bom ou mau, só se saberá quando publicar seu romance ou livro de contos —se chegar a publicá-lo.
Mas nada o livrará de ter de lutar minimamente pela subsistência, e o ideal seria achar um emprego compatível com a criação literária. Daí, sugeri-lhe aquele que, segundo William Faulkner, autor de "Santuário", era o emprego ideal para um escritor: o de gerente de bordel.
É um lugar, disse Faulkner, onde se pode dormir (quartos não faltam), comer e beber no emprego. Não há muito que fazer - no máximo, cuidar de que os impostos sejam pagos em dia e ir mensalmente à delegacia para contribuir com o fundo de pensão da polícia. O bordel é sossegado pela manhã, que é a melhor hora para escrever. À noite, a vida social é intensa, e o sujeito pode participar dela, se quiser. Além disso, tanto os clientes quanto as meninas são potenciais fornecedores de material para seu livro.
É também um emprego, continua Faulkner, que garante ao sujeito um relativo status em sociedade. Todos os inquilinos da casa são mulheres e o tratam com deferência. Idem quanto aos fornecedores de bebida, que dependem do seu aval sobre as falsificações. E o próprio delegado será alguém a quem ele poderá chamar pelo apelido ("Bolão") e até dar tapinhas na barriga.
Faulkner não disse, mas o risco nessa história é o sujeito se apaixonar pelo emprego e desistir da literatura. O que talvez não seja má ideia.



Fralda - Fabrício Corsaletti


Ele queria livros emprestados. Tinha planos de começar a escrever. Mas principalmente queria ler boa literatura. "Nada de beatnik tomando pico de heroína no banheiro ou nego doido fazendo suruba no quarto da sogra. Disso eu já vi o suficiente. Também não tô com saco pra literatura brasileira. Me arruma uns desses gigantes aí, Dostoiévski, James Joyce."

Sem problemas. Entrei no escritório e olhei as estantes. Pra começar, "Matadouro 5", de Kurt Vonnegut, "Franny & Zooey", de J. D. Salinger, "Tanto Faz", de Reinaldo Moraes (mesmo sendo brasileiro, resolvi arriscar), "Iniciantes", de Raymond Carver, e "Amuleto", de Roberto Bolaño.

Devorou tudo em menos de dois meses. Dessa vez levou Philip Roth, Virginia Woolf e Kafka. Na seguinte: Tchekhov, Poe, "Memórias de um Sargento de Milícias", Dickens e Jane Austen.

Depois vieram Borges, Cortázar, Felisberto Hernández. Adorou Maupassant, Mark Twain e Italo Calvino. Quando leu Faulkner, disse que nunca mais queria ler Bolaño. Entrou de cabeça em Dostoiévski e ficou perturbado. Se encheu um pouco do "Ulysses" mas foi até o fim. Ouviu dizer que Proust é que era o cara e dedicou um semestre ao "Em Busca do Tempo Perdido".

Então enchi uma sacola só com poetas: Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral, Szymborska, Angélica Freitas, Matilde Campilho, Byron, Cummings, Eliot, Baudelaire, Chacal, Nâzim Hikmet. Virou fã dos três últimos.
Da prosa brasileira contemporânea (a essa altura, não recusava nada), curtiu o "Diário da Queda", do Michel Laub, e o "Budapeste", do Chico Buarque, que ele chama de Chico Buraco.

Passou por Homero, Cervantes, Shakespeare e Voltaire. Voltou pros séculos 19 e 20. Se surpreendeu com Machado e Graciliano.

Neste momento, está lendo "Tarás Bulba", do Gógol (anoto suas leituras num caderno). "Aqueles cossacos malucos", ele diz.

Quem vê o Fralda não acredita. Baixista de bandas punks (Ratos de Porão, Blind Pigs, Lobotomia), parece mais um líder dos Hells Angels do que um leitor compulsivo e vagamente aristocrático, que prefere Balzac a Hunther Thompson.

Mora nos fundos de um estúdio de música de uns amigos e trabalha numa loja de vinis em Perdizes, onde faz a faxina e tira chope artesanal; tem 40 anos e uma semibarriga de cerveja; tatuou na testa a frase "STONE DEAD FOREVER" e usa mais pulseiras e colares que uma falsa baiana de acarajé de shopping.

Às vezes, tenho a impressão de que trata o próprio corpo como se fosse uma galeria de arte —é uma performance ambulante. Minha mulher diz que ele tem uma noção forte de estilo. Mas acho que o Fralda (aliás, Christian Wilson, embora assine os e-mails como "tia Fralda") daria risada dessa conversa.

Na semana passada, veio me devolver o Karl Ove e pegar uma nova leva. Fumando um cigarro enquanto esperava a chuva passar, contou de uma época em que dormia num "catre" na cozinha da casa da avó. E antes que eu demonstrasse qualquer estranhamento por aquela palavra tão pouco underground, ele interrompeu a história e perguntou rindo, orgulhoso:

- Gostou de "catre", animal?












Sapatos e Livros – Carlos Gerbase


Uma mulher comprando sapatos é um espetáculo. O corpo movimenta-se suavemente entre as vitrines. O cartão de crédito pulsa e arfa na escuridão da bolsa, ansioso para cumprir sua função existencial. O sapato é o supremo desejo da mulher. Não de todas, é claro. Só 99% delas. As outras estão escolhendo meias longas pra combinar, e só então alcançam o clímax. Imelda Marcos, primeira-dama das Filipinas, famosa por possuir 3 mil pares de sapatos enquanto o povo passava fome, nunca foi um monstro. Ela apenas deixou a natureza se manifestar, com apoio cultural do seu cartão de crédito.

As mulheres sabem o poder que o sapato certo, a meia certa e a perna certa exercem sobre os homens. Helmut Newton, meu fotógrafo preferido, ainda bem jovem rendeu-se ao poder do stiletto, o scarpin perfeito, e viveu à procura de uma modelo que merecesse calçá-lo. E o melhor de tudo: não precisava ficar esperando a modelo escolher os sapatos na loja. Eles vinham direto para o estúdio, junto com as pernas certas e as meias certas. Não sou um fetichista tão feliz. Eu levo um livro, um jornal ou uma revista para a loja e fico esperando, sentado no meio daquele monte de caixas de papelão.

Livros não são sapatos. Eles funcionam nas mãos, e não nos pés. Eles não precisam ser novos. Pelo contrário. Um livro usado, quem sabe até bem antigo, tem um charme todo especial. Livros podem ser até mais sensuais que sapatos, desde que estejam na mão da mulher certa. Se ela estiver de óculos, então... Mulheres de óculos, meias de seda e saltos altos lendo a Odisseia são o ponto mais alto da evolução humana. Helmut Newton fotografou várias para a Vogue.

Na interminável polêmica sobre o que é mais importante na construção da essência do ser humano – a natureza ou a cultura – Helmut Newton prova que essas duas forças se complementam. Um pé feminino nu já é um espetáculo grandioso. Mas, se for parcialmente escondido e elevado pelo sapato certo, transcenderá sua mera existência física. Ao mesmo tempo, um sapato sem ossos, carne, pele e sangue quente em seu interior é tão inútil quanto um livro sem leitores. Sapatos de salto alto e livros são o que nos separa dos outros animais.












POLITICOPATAS      CJ



VIVER DÓI   -   FABIANE LANGONA

Filho de Quem  –  Paulo Bentancur


Conduziu-me pela mão
o som de membro tão hábil.

Levou-me na direção,
as minha pernas cantando
pedras, tropeços, recantos.

Sentou-me no colo do chão,
desenhou-me a cor da grama,
coloriu-me a terra densa
e suas raízes músculos.

Ergueu-me o rosto pro céu,
a cegar o sol e as nuvens.

Baixou-me o olhar até
o leito onde escorriam
as palavras a criar
o menino já crescido.

Minha mãe com seu vestido,
puído, escondendo os joelhos;
meu pai tropeçando vinho,
gargalhando com os vizinhos.

Eu já era cuidado
ao ponto de cuidadoso
com o que dizia a todos.

Os livros ali tão perto.
Os livros me sussurrando.
Os livros: conselho, relho,
Os livros, sérios, brincando.

Os livros, pais a me dar
um rumo e um rumor
necessários no recreio
quando colegas cravavam
receio em quem pensavam
ser filho de pais ausentes.

Literatura, a bênção,
senhora,
minha mãe de sempre.

Beleza italiana vendo livro no ateliê, 1886
Pieter Oyens (Holanda, 1842-1894)
óleo sobre tela, 101 x 77 cm







Falando de livros  -  Roseana Murray  
O livro é a casa
onde se descansa
do mundo
O livro é a casa
do tempo
é a casa de tudo
Mar e rio
no mesmo fio
água doce e salgada
O livro é onde
a gente se esconde
em gruta encantada.
Chiquinha - Miguel Paiva









“Nunca escrevo meu nome nos livros que compro até depois de lê-los, porque só então posso chamá-los de meus.

Carlo Dossi







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