Você aperta bem no
meio do tubo, e nada: eis o primeiro sinal do fim, mas quem atenta para os
primeiros sinais? Além do que, a bisnaga está quase cheia, só ali pelo meio é
que abaulou: basta pressioná-la em cima, perto do bico, ou embaixo, próximo à
base, e a pasta sairá, roliça e lustrosa, nas cerdas de sua escova. A ideia de
passar numa farmácia pisca em seu córtex como um distante vaga-lume, para logo
desaparecer no cipoal de neurônios.
Cinco ou seis dias
depois, contudo, você aperta o tubo na parte de cima, outrora bojuda, e nada
acontece: abaulou-se, também, mas para que se abalar com isso? Um pequeno
remanejamento dá conta do recado: com os polegares e indicadores, vai
espremendo da base pro bico. A visão da bisnaga de peito estufado traz algum
alívio no curto prazo, mas a informação "preciso comprar pasta de
dente" agora está colada, como um Post-it, na tela de sua consciência.
E daí? Há assuntos
mais importantes, sempre há: a infiltração no teto do banheiro, o aumento que
pretende pedir --a demissão, se tivesse coragem--, uma DR definitiva da qual
foge como o diabo da cruz. É lá do fim dessa fila que acena, pequenina, a
possível escassez dentifrícia.
A Terra, porém,
completa mais algumas voltas em torno de seu eixo: folhas caem das árvores,
flores brotam nos jardins, pormenores atingem a maioridade --eis o que você
percebe, diante do tubo vazio, hirto como uma fronha secando no varal.
O problema não é mais
"preciso comprar pasta" e sim "por que cazzo não comprei
antes?!", mas a indagação traz outras questões de fundo que talvez seja
melhor ignorar. Importante agora é escovar os dentes: você apoia o tubo na
bancada do banheiro e, com a haste de um pente, o aplaina da base ao bico.
Ao cuspir a espuma na
pia, jura que de hoje não passa, mas a convicção se esvai na mesma velocidade
que o sabor de hortelã: não há vaga em frente à farmácia, a lojinha do posto
está fechada, depois já passam das dez, a reunião é às 11, o torvelinho do
cotidiano te suga e só te devolve ao incômodo na hora de ir para a cama.
O pente é inútil: a
bisnaga parece uma fronha passada a ferro. Um rolo compressor seria inútil: não
há ranhura ou desvão que não tenha sido achatado. Se Maomé não vai à montanha,
a montanha vai até Maomé, você resmunga, então mete as cerdas no bico do tubo,
meticulosamente. Elas não saem sequer melecadas, apenas opacas, como se
tivessem sido mergulhadas no leite.
Você dorme mal. Acorda
desgostoso, antes do despertador. Sabe o que te espera. Não se orgulha do que
está prestes a fazer, mas o fará, assim mesmo: abre a gaveta, pega a tesourinha
de unha, respira fundo e corta o tubo, de cima abaixo. Enquanto chafurda a
escova pelo interior da carcaça, pensa no aumento que não pediu, na demissão
que não pedirá, no namoro que se esgarça diante de seus olhos; percebe como a
infiltração no teto e a bisnaga estripada são metáforas chinfrins do estado das
coisas. O que mais dói, contudo, é saber que ainda não chegou ao fundo do poço:
adiante, te esperam a escovação sem pasta, reavivando os resíduos de espuma
seca nas cerdas e, para coroar o desmantelo, a escovação com sabonete: aí sim,
aí sim é o fim.
Armandinho
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