quarta-feira, 17 de maio de 2017

Cadelas e Cachorros

Gabriel Moon - Fábio Bá


Baleia –  Graciliano Ramos
          A cachorra  Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
         Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa nas base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
          Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
          Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que advinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
          – Vão bulir com a Baleia?
          Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.
          Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiquiro das cabras.
          Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-­se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.
           Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
          Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
          Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:
          – Capeta excomungado.
          Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
          Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
          Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou um pedaço da cabeça.
          Fabiano percorreu o alpendre, olhando as barúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:
          -Ecô! ecô!
          Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.
          Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando alto. Fabiano recolheu-se.
          E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
          Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
          Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-­se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis.
          Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.
         Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava­se.
          Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
          Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.
          Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
          O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
          Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
          Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
          Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
          Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.
          Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
          Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
          Provavelmente estava no cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
          A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
          Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
          Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
Morte da Baleia


O Sacrifício – Fernando Bonassi

          Ainda era uma cadela. Estava no banco traseiro, a língua de fora, babando no assento de veludo e no vidro aberto um tanto. O motorista lançou olhares nos espelhos retrovisores, os de fora e o de dentro, torcendo para não cruzar com o olhar dela. A Cadela, como sempre fez antes deste dia, latiu e se agitou à passagem das motocicletas. Passaram muitas. O motorista ficou estacionado no trânsito; gostaria de ir rápido  como nunca, ou pelo menos como os motociclistas do lado, vazando pelo meio dos carros para chegar num rasgo ao seu destino.
         “Não é possível!” E ele meteu a mão na buzina. Não adiantou nada. Aliás, atrasou, porque chamou a atenção dos motoristas em torno, e os distraiu das marchas e contramarchas na avenida engarrafada. A cadela, ignorante de tudo, não tinha pressa do que  iria lhe acontecer. Latiu mais uma vez. Ele achou que era com ele e não olhou mais nada que não fosse o outro carro encalacrado como o dele logo à frente.
          “Há sempre alguém na frente”, ele falou, como se a cadela pudesse entendê-lo. Depois se calou, porque lhe pareceu grosseiro partilhar uma reflexão sobre a vida, justo com ela, naquela hora. Naquela hora mesmo a cadela assoviou de fininho, era agudo também, como um chorinho, e entrou bem no ouvido dele, que tentava dirigir. Parecia um comentário desolado o que ela  fazia, como se intuísse a desumanidade dele. A cadela tinha se voltado e o motorista fez o que não devia, olhando no espelho de fora, para dar de cara com o olhar molhado dela na sua nuca. Poderia matá-lo com um dente, ele pensou, mas sabia que a cadela não o atacaria. Aliás, lambeu-lhe o pescoço. Nada mudou para ela, que ainda supunha ser sua melhor amiga. Em sua cabeça minúscula, sentia-se feliz e protegida... Acontece que a mudança é dele, ou com ele, que seja, e para a sua infelicidade, já que não tem certeza se ele próprio mudou para algum lugar. Era aquilo, aquele tráfego, aquele problema com espaço, com o tempo. Ele era ateu, mas rezou para que fosse depressa. Não foi. Foi aquele anda e para até  o último instante, quando o motorista jogou-se naquela casa marcada, na última vaga do estacionamento do veterinário. A sua manobra gerou a fúria das buzinas em volta, a cadela pulou para o seu banco, mordiscou-lhe a orelha direita e latiu.
          “Ta que os pariu”, gritou o homem para todo o mundo, mas com o cuidado de não ser ouvido pelos que estavam por perto e arrumar mais confusão naquela hora desgraçada. Doía sua orelha. Não, sua cabeça. A cabeça toda, como se fosse uma touca apertada ou  um capacete muito pequeno que esmagasse o raciocínio. Não era para pensar. Era para agir. Alguém precisava fazê-lo. Já tinham discutido, e ele tinha assumido a responsabilidade perante a esposa. A cadela desceu pela porta do motorista, que se retirou sorrateiro. Saiu como quem podia ser pego, censurado ou que fosse vigiado pelos outros com severidade. Mas era coisa só dele, que via todos os olhares voltados para si. Chegou à recepção, onde a atendente de branco afetava ares de enfermeira diplomada, debruçada num telefone cheio de teclas, discutindo um caso clínico e preenchendo um formulário médico.
          “Pois não?”, ela disparou contra o homem que puxava o pescoço da cadela na correia. Ele se sentiu atingido, mas era apenas um cumprimento. Ela era simpática, atenciosa, e ele se recuperou a tempo de responder, falando “Bom dia”, para começar, e explicando com muita dificuldade que queria “conversar... tratar com o veterinário, o doutor...”. “Executor”,  deveria ter dito, mas não teve coragem.
          “Aguarde um minuto, ele já o atende”, ela disse,  como se fosse com ele que se tratava o assunto.
         “É um belo animal”, ainda comentou, indicando a cadela, para aumentar a angústia dele, que teve de afirmar que sim, que “era, apesar de tudo”. E apesar de ter já manifestado assim um  certo  luto, a mulher, ignorante como era a cadela, continuou elogiando o pelo, o porte e o comportamento daquela cachorra que se enroscava nas pernas do homem, a boca escancarada, como a dar risada da sua situação. Ele estava sério, ou quase isso. E esperou com impaciência o que viria, desejando que chegasse o quanto antes, para que ela, ou ele, pelo menos, pudesse partir em paz. Supunha que seria possível, depois de enfrentar a decisão que tomaram, ele e a família, mas que ele comandava como o chefe dos carrascos. O tal doutor veterinário veio  buscá-lo pessoalmente e fez questão de chamá-lo pelo nome, como se quisesse identificá-lo para denúncia posterior. A atendente levantou imediatamente a cabeça de um fichário e fez o mesmo, como se percebesse algo diferente, vergonhoso. O homem e a cadela entraram cabisbaixos no consultório. Mais ele do que ela, que tinha medo daquilo, mas não o manifestava. O homem ficou intrigado com isso, além de angustiado com as outras coisas. Todas as outras coisas... A propósito,  outra coisa que o intrigou, ou intimou, não sabe dizer, foi o fato do médico, o doutor... aquele  veterinário, não o ter convidado para sentar. Sentou-se ele e encarou o seu cliente como, talvez ele o fosse, uma espécie de assassino desalmado. O homem não gostava do que era, mas também não era aquilo. Puxou uma cadeira e sentou-se diante dele, o médico. A cadela mais atrás, também se cansou e deitou.
         “O senhor tem certeza do que está fazendo?” O homem com a cadela tinha, se tanto, a metade da idade do veterinário, que  era, ele sim, um homem velho, mas falava como se aquele homem mais jovem fosse mais responsável do que ele era e fora em todos os tempos. Para um profissional de fato, ele explicou, nem era questão de responsabilidade, mas de “moral”, “jurídica”. Afirmava que não fora por aquilo que jurara na faculdade, muito pelo contrário,  e que isso tinha um preço. A cadela ficou inquieta quando o home perguntou quanto era.  Quando o médico disse, ela se ergueu em guarda, como se protestasse pelo dono. O dono mesmo não disse nada e ainda procurou censurá-la, enforcando-a com a coleira.
         “É uma injeção, não é?”, perguntou mais por instinto de preservação do que por interesse verdadeiro.
          “Primeiro aplicamos tranquilizantes, depois um medicamento que provoca parada cardíaca, ou respiratória, depende: tudo dentro da lei, sem sofrimento para ela”, informou o médico, tecnicamente.
         “Então a cadela via morrer dormindo?”, o dono dela quase sorriu, mas o humor do outro lado não era da mesma natureza.
         “Ela vai morrer, com certeza.”
          Então o homem amarrou a coleira da cadela na cadeira do médico, gaguejou suas desculpas para ele e para ela, despedindo-se comum carinho no focinho. Achava que era só isso. E puxou do bolso uma carteira com um  maço de dinheiro, confiante de que tinha se livrado do problema. Passou a maioria das notas para a mão direita, deixou o monte na mesa, e se ergueu para correr, fugir, mas...
         “Espere aí!”, ordenou o médico. O homem, atingido por um raio, ficou pregado no assoalho, como se tivessem lhe enfiado uma estaca no coração.
        “O senhor paga para a recepcionista, lá fora”, esclareceu o doutor.
         O homem quase desfaleceu, ante a probabilidade de lidar com a atendente desinformada dos detalhes, mas girou nos calcanhares e voltou-se para o médico, a mesa, a cadela aos pés dela, balançando o rabo para ele.
         “O miserável não suja a mão com dinheiro, é?” Obviamente, o homem não disse isso também. Pelo contrário, gaguejou. “ O que mais o senhor quer de mim?”, suplicando em desespero por encarar a cadela depois da última vez, abanando aos seus pés.
         “Eu  preciso da sua assinatura nesta autorização. Para os efeitos da legislação, ela teve um problema...” Então o médico estendeu um papel para o homem, onde estava escrito que a cadela tinha uma doença incurável e progressiva e que ele autorizava o outro, o profissional, a realizar a execução imediata, não, execução, não... o sacrifício do animal, talvez... Ele já não lembra enquanto assina aquela folha de mentiras, cegamente, mas exatamente no lugar indicado pelo dedo apontado do outro. Agora era formal. Tinha sua assinatura na sentença.
         “Posso ir? Eu tenho hora para...”, ele tinha mais urgências do que nunca agora.
         “O senhor é quem sabe”, disse o salafrário do veterinário, como se o cliente devesse “se despedir” da outra. Isso o homem não conseguiria mais fazer... “Ela quase já não era!”, disse depois. Naquele momento, virado para sair, lançou algumas palavras no ar, como um agradecimento raivoso pelo socorro que o outro lhe prestava... O favor que fazia por ela... A coitada da cachorra dele, enfim... E foi se arrastar para fora do consultório, pesando uma tonelada, atolado com sapatos. Bateu a porta às suas costas e caminhou para a recepcionista com o dinheiro contado.
         “Vai querer recibo?”, a atendente, como sempre, com aquele sorriso mal parafusado no rosto...
        “Não, obrigado”, gaguejou o homem, ofendido.
        “A sua bonequinha vai ficar?”, ela insistia. “Por que me perguntar, agredir, humilhar?”, pensava o homem. Mas outra vez ele não disse o que pensava. Não era de dizer coisas como aquelas...
         “Vai, sim, vai ficar”, foi só o que o homem respondeu.

         A recepcionista ainda perguntou quando ele a viria buscar, mas ela achou que ele não ouviu. Olhou para ela, mas não reagiu. Tropeçando casa afora o homem partiu. Para nunca mais voltar.


Editoria de Arte/Folhapress

Tudo o que o Sol toca, Simba, tudo é passível de treta - Gregorio Duvivier

Semana passada, Estela, a labradora da minha mãe, teve dez filhotes. Dez. Do dia pra noite, uma dezena de criaturinhas branquelas e meladas saíram do seu ventre e, superando as previsões mais otimistas, todas seguem vivas e saudáveis e deliciosamente fofas.
Estela passa o dia lambendo a cria, e quando um bebê tá dormindo há muito tempo ela acorda o filhote preguiçoso: "Bora mamar!".
Poderia ficar horas assistindo ao espetáculo de dez filhotinhos disputando nove tetas –tem uma magricela que nunca consegue mamar, só porque é magricela, o que a torna ainda mais magricela, então é preciso volta e meia fazer uma redistribuição de tetas.
Tenho evitado a internet. Tudo vira uma discussão inócua e interminável. "Taí uma coisa unânime", pensei. "Filhotes de cachorro talvez sejam a última unanimidade que nos resta." Quem sabe conseguiria, com uma foto da prole mamando, unir o Brasil. Doce ilusão.
"Parece o governo do PT", comentou um, abaixo da foto. "Por que procriar e não adotar?", perguntou um seguidor. "São 30 milhões de animais domésticos abandonados no Brasil", dizia um ativista, emendando com a hashtag #QuemAmaCastra.
Conclusão: melhor desistir da internet. Entendo que já existam muitos cachorros, mas ainda assim continuo sem entender que tipo de criatura vê filhotes de labrador e pensa: "Eu preferia que eles não existissem".
Tentei argumentar que parir era um direito, e o sexo também, mas logo rebateram: "Não existe sexo consensual entre animais, logo lamento te informar que sua cadela foi estuprada". Meu Deus, como avisar isso pra ela?
Detesto fazer coro com os que dizem que o mundo tá chato. Mas se uma cachorra já não pode ter filhotes, e se os filhotes não podem ser comemorados, vou ter que concordar: o mundo tá meio chato.
Já que a superpopulação incomoda tanto aos ativistas, vale lembrar que no momento existe uma superpopulação muito mais perigosa pro planeta: a superpopulação humana. E já não adianta castrar humanos, porque o estrago que a gente fez tá bem adiantado. Aproveito então pra propor uma hashtag bem mais eficiente pros ativistas de timeline. Chama #QuemAmaSeMata. Afinal, sua vida tá esquentando o planeta e tornando pior a vida de muita gente ao seu redor. Você já pensou nisso?
Ah, todos os filhotes já tem casa. E a Estela vai ser castrada. Porque afinal todos concordam que dez é um bom número. 


Sejamos cadelas - Ana Cardoso


Calma, calma leitora. Não é nada disso que você está pensando. O que vou sugerir neste singelo texto de fim de ano é que a gente siga mais nossos instintos em 2019, como a protagonista desta história, a cadela Raia.

É sabido que alguns animais têm inteligência emocional superior à nossa. Você certamente já observou que os pássaros voam para longe antes da tempestade, que as abelhas fogem dos venenos e que os gatos evitam ao máximo quem não gosta deles.

Há alguns Natais, em Eldorado do Sul, a pastora alemã Raia deu à luz 10 cãezinhos. Não sei quantas tetas tem uma cadela, mas 10 filhos é muita coisa para um mamífero. A bichinha não tinha sossego. Estava magra, esgotada.

Uma semana depois do parto, pela manhã, a dona encontrou Raia com apenas cinco filhotes. Onde estariam os outros? Adriana acordou o marido Rui e saíram a procurar o restante da prole pelo sítio. Depois de muito andarem, acharam um buraco, não muito profundo, a 500 metros da casa, com os outros cachorrinhos dentro.

Estavam vivos e chorando. Os humanos pegaram os cães e os levaram de volta para a casinha da cadela. Raia não demonstrou estar contente, mas os aceitou. No meio da tarde, Adriana foi conferir se estava tudo em ordem e PLUFT!, cinco cachorrinhos haviam sumido novamente.

Desta vez, já sabiam o caminho. Trouxeram de volta os filhotes. Raia não deu a mínima. Que raios estava acontecendo ali? Será que a cadela não queria os filhos? No meio da noite, Adriana acordou assustada. Levantou, e suas suspeitas se confirmaram: apenas metade deles estava na casinha, com a mãe. Adriana, no meio da madrugada, deu-se por vencida e não foi buscar os demais.

Adriana nem dormiu direito. No dia seguinte, encontrou, na casinha, apenas os filhotes "escolhidos", que dormiam e grunhiam, tão pequenos que nem sabiam latir. Temendo que a cadela houvesse fugido - era só que o faltava nessa esdrúxula novela canina - Adriana correu para o buraco. Lá estavam Raia e seus outros cinco filhos.

Então a humana, que é uma psicóloga renomada, entendeu a lógica da cadela. Do alto de sua sabedoria canina, Raia havia separado os filhos em dois grupos para dar conta melhor da família. Quantas vezes, nós humanos, queremos abraçar o mundo de uma só vez e falhamos? Que tal compartimentarmos nossos deveres e nos concentrarmos no que conseguimos fazer, respeitarmos nossos limites ao invés de querer criar 10 filhos ao mesmo tempo, o tempo todo?



Biruta – Lygia Fagundes Telles

          Alonso foi para o quintal carregando uma bacia cheia de louça suja. Andava com dificuldade, tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus bracinhos finos.
         - Biruta, êh, Biruta! – chamou sem voltar.
         O cachorro saiu de dentro da garagem. Era pequenino  e branco, uma orelha em pé e a outra completamente caída.
         - Sente-se aí, Biruta, que vamos ter uma conversinha – disse Alonso pousando a bacia ao lado do tanque. Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os pratos.
          Biruta sentou-se muito atento, inclinando interrogativamente a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda, como se quisesse aprender melhor as palavras do seu dono. A orelha caída ergueu-se um pouco, enquanto a outra  empinou, aguda e reta. Entre elas, formaram-se dois vincos, próprios de uma testa franzida no esforço da meditação.
          - Leduína disse que você entrou no quarto dela – começou o menino num tom brando. – E subiu em cima da cama dela e focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou lá. A carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira nova, Biruta! Se fosse uma carteira nova! M e diga agora o que é que ia acontecer se ela fosse uma carteira  nova !? Leduína  te dava uma surra e eu não podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina, lembra? Você se lembra muito bem, sim senhor, não precisa fazer essa cara de inocente!...
          Biruta deitou-se, enfiou o focinho entre as patas e baixou a orelha. Agora, ambas as orelhas estavam no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu olhar interrogativo parecia perguntar: “Mas que foi que eu  fiz. Alonso? Não me lembro de nada...”
- Lembra sim senhor! E não adianta ficar aí com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! – repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos. Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha mãos de velho.
          - Alonso, anda ligeiro com essa louça! – gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da cozinha. – Já está escurecendo, tenho que sair!
          - Já vou indo – respondeu o menino enquanto removia a água da bacia. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por quê? Por que não se esforçava para ser  melhorzinho ?  Dona Zulu já andava impaciente, Leduína também, Biruta fez isso, Biruta fez aquilo...
           Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar,  precisava encher os pastéis, “Alonso, você não viu onde deixei a carne?” Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente, foi até a garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro num velho  colchão metido num ângulo da parede. Biruta estava lá, deitado em cima do travesseiro, com a posta de vcarne entre as patas, comendo tranquilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu qua a carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, “que é que eu faço, dona Zulu?!”
           Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão.
          - Está aqui, Leduína.
          - Mas falta um pedaço!
          - Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.
          - Mas por que você escondeu o resto? – perguntou a patroa aproximando-se.
          - Porque fiquei com medo.
          Tinha bem viva na memória a dor que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes de escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo como se não pudesse parara nunca mais.
         - Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãozinho!
         Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. “Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal. Não faz mal.”
          Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe s lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.
Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de Dona Zulu?
          - Hem, Biruta?! E se fosse a carteira de dona Zulu?
          Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.
          - Por que você não arrebenta minhas coisas? – prosseguiu o menino elevandoa voz. – Você sabe que tem todas as minhas coisas para morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal, está acabado. Você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!...
         Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na Bacia. Em seguida, calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.
          Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal,  queria só  brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças?
          Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. “Por que dona Zulu tem que ser assim?”O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse. Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. Ah, Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pelo e as duas orelhas em pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!”
          - Alonso! – Era a voz de Leduína. – Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase noite, menino.
           - Chega de dormir, seu vagabundo! – disse Alonso espargindo água no focinho do cachorro.
           Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas dianteiras, num longo espreguiçamento.
          O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe  os tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu avental.
- Aproveita, seu bandidinho! – riu-se Alonso. – Aproveita que estou com a mão ocupada, aproveita!
          Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas Biruta, esquivou-se, latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.
          - Ai, Leduína, que o Biruta judiou de mim!...
          A empregada pôs-se a guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola com batatas.:
          - Olha aí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.
          - Mas só eu vou jantar? – surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.
          - Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.
          Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olhinhos brilharam no escuro: Biruta ainda estava lá. Alonso suspirou. Era tão bom quando Biruta resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia. Tinha então a certeza de que não estava acontecendo nada. A trégua. Voltou-se para Leduína.
         - O que seu filho vai ganhar?
         - Um cavalinho – disse a mulher.  A voz suavizou. – Quando ele acordar amanhã, vai encontrar  o cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentando que queria um cavalinho, que queria um cavalinho...
          Alonso pegou uma batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.
          - Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moças com uns saquinhos de balas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapatos, um casaquinho de malha e uma camisa.
          - Por que ela não ficou com você?
          - Ela me disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...
          Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno da vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para o todo o rosto uma expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois que não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a respeito, era apenas a “madrinha”. Inutilmente a procurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de presentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quandoentão se reunia com os meninso na capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo!
          “...O bom Jesus é quem nos traz
          A mensagem de amor e alegria”...
          - Também ,é muita responsabilidade tirar criança para criar! – disse Leduína desamarrando o avental. – Já chega os que a gente tem.
          Alonso baixou o olhar. E de repente, sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo.
         - Êh, Biruta! Está com fome, Biruta? Seu vagabundo! vagabundo!... Sabe, Leduína, Biruta também vai ganhar um presente que está escondido debaixo do meu travesseiro. Com aquele dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma beleza de bola! Agora ele não vai mais precisar morder suas coisas, tem a bolinha só pra isso. Ele não vai mexer em nada, sabe,  Leduína?
         - Hoje cedo ele não esteve no quarto da dona Zulu?
         O menino empalideceu.
          - Só se foi na hora que fui lavar o automóvel... Por que, Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?
         Ela hesitou. E encolheu os ombros.
         - Nada. Perguntei à toa.
         A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela estava sorridente. O menino sorriu também.
         - Ainda não foi pra sua festa, Leduína? – perguntou a mulher num tom afável. Abotoava os punhos do vestido de renda. – Pensei que você já tivesse saído... – E antes que a empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: - Então? Preparando seu jantarzinho?
O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava asssim mansamente, ele não sabia o que dizer.
         - O biruta está limpo, não está? – prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se debaixo do fogão.
         Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:
         - Biruta, Biruta! Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder...- Voltou-se para a patroa. E sorriu desculpando-se: - Até de mim ele se esconde.
         A mulher pousou a mão no ombro do menino:
         - Vou numa festa onde tem um menino assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de levar o Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar radiante, o pobrezinho. Você me empresta seu Biruta só por hoje, não empresta? O automóvel já está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.
         O rosto do menino resplandeceu. Mas então era isso?!...Dona Zulu pedindo o Biruta emprestado, precisando do Biruta! Abriu a boca para dizer-lhe que ssim, que o Biruta estava limpinho e que ficaria contente de emprestá-lo ao menino doente. Mas sem dar-lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.
         - Viu, Biruta? Você vai numa festa! -0 exclamou. – Numa festa comcrianças, com doces, com tudo! Numa festa, seu sem-vergonha! – repetiu beijando o focinho do cachorro. – Mas, pelo amor de Deus, tenha juízo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu sapato...- acrescentou num sussurro, coma boca encostada na orelha do cachorro. Apertou-lhe a pata. – Te espero acordado,Biru... Mas não demore muito!
          O patrão já estava na direção, do carro. Alonso aproximou-se.
          - O Biruta, doutor.
         O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.
         - Está bem, está bem. Deixe ele aí atrás.
         Alonso ainda beijou o focinho do cachorro. Em seguida, fez-lhe uma última carícia, colocou-o no assento do automóvel e afastou-se correndo.
         - Biruta vaia dorar a festa! – exclamou assim que entrou na cozinha. – E la´temdoces, tem crianças, ele não quer outra coisa! – fez uma pausa Sentou-se. – Hoje tem festa em toda parte, não, Leduína?
         A mulher já se preparava para sair.
         - Decerto.
         Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.
         - Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?
         - Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é que aquele rei manda prender os três.
          Alonso concentrou-se:
          - Sabe, Leduína, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do mato e ficava morando por lá a vida inteira, só nós dois! -0 Riu-se metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruído do carro que já saía. – Dona Zulu estava linda, não?
         - Estava.
         - E tão boazinha. Você não achou que hoje ela estava boazinha?
         - Estava, estava muito boazinha...
         - Por que você está rindo?
         - Nada – respondeu ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta. Mas antes, parecia querer dizer qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.
         Alonso observou-a. E julgou adivinhar o que a preocupava.
         - Sabe, Leduína, você não precisa dizer pra dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com ele, já surrei ele. Não vai fazer mais isso nunca, eu prometo que não.
          A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez, encarou-o. Vacilou ainda um instante. Decidiu-se:
         - Olha aqui, se eles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu pra você, Biruta não vai mais voltar.
          - Não vai o quê? – perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca. Levantou-se. – Não vai o quê, Leduína?
         - Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, qua amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era Natal...Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.
           Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca. A voz era um sopro
- Não?...
          Ela perturbou-se.
         - Que gente também! – explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. – Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar.
         Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho foi saindo para o quintal. Dirigiu-se à garagem. A porta de ferro estava erguida. Aluz fria do luar chegava até a borda do colchão desmantelado.
Alonso cravou os olhos brilhantes num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou-se. Estendeu a mão tateante. Tirou de baixo do travesseiro uma bola de borracha.
         - Biruta – chamou baixinho. – Biruta...- E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.
          Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, segurando a bola. Depois apertou-a fortemente contra o coração.


A disciplina do amor – Lygia Fagundes Telles


Foi na França, durante a Segunda Grande guerra: um jovem tinha um cachorro que todos os dias, pontualmente, ia esperá-lo voltar do trabalho. Postava-se na esquina, um pouco antes das seis da tarde. Assim que via o dono, ia correndo ao seu encontro e na maior alegria acompanhava-o com seu passinho saltitante de volta à casa. A vila inteira já conhcecia o cachorro e as pessoas que passavam faziam-lhe festinhas e ele correspondia, chegava até a correr todo animado atrás dos mais íntimos. Para logo voltar atento ao seu posto e ali ficar sentado até o momento em que seu dono apontava lá longe.

Mas eu avisei que o tempo era de guerra, o jovem foi convocado. Pensa que o cachorro deixou de esperá-lo? Continuou a ir diariamente até a esquina, fixo o olhar naquele único ponto, a orelha em pé, atenta ao menor ruído que ou pudesse indicar a presença do dono bem-amado. Assim que anoitecia, ele voltava para casa e levava sua vida normal de cachorro, até chegar o dia seguinte. Então, disciplinadamente, como se tivesse um relógio preso à pata, voltava ao posto de espera. O jovem morreu num bombardeio mas no pequeno coração do cachorro não morreu a esperança. Quiseram prendê-lo, distraí-lo. Tudo em vão. Quando ia chegando aquela hora ele disparava para o compromisso assumido, todos os dias.
Todos os dias, com o passar dos anos (a memória dos homens!) as pessoas foram se esquecendo do jovem soldado que não voltou. Casou-se a noiva com um  primo. os familiares voltaram-se para outros familiares. Os amigos para outros amigos. Só o cachorro já velhíssimo (era jovem quando o jovem partiu) continuou a esperá-lo na sua esquina.

As pessoas estranhavam, mas quem esse cachorro está esperando?…Uma tarde (era inverno) ele lá ficou, o focinho voltado para aquela direção.

Sempre Ao Seu Lado - 
O filme "Sempre ao seu lado", protagonizado pelo ator Richard Gere, nos apresenta o grande amor de um cão por seu dono. Baseia-se em uma história verdadeira sobre Hachiko, um cão japonês da raça akita que, após a morte de seu dono, foi durante nove anos esperá-lo na estação onde ele pegava o trem todos os dias para ir trabalhar.



"Teoria do Cão" - Rodrigo Naves

          Jacobina era um mendigo do bairro a quem me afeiçoara havia muitos anos. Todos os dias trocávamos algumas palavras: conselhos recíprocos, novidades, palpites sobre o tempo. Dava-lhe dinheiro com regularidade, que ele aceitava quase como o pagamento de uma dívida. Ele vivia com Coronel, um vira-lata em cuja pelagem indefinida convergiam muitas linhagens de cães. O bicho não era dado a expansões, mas aos poucos cedeu a meus afagos. Jacobina e Coronel passavam o tempo todo juntos. À noite dormiam colados um ao outro, em meio ao ninho de papelão e cobertores baratos que os agasalhava.
         A morte de Jacobina não me deixou escolha: levei Coronel para casa e procurei ocupar o lugar que o mendigo tivera em sua vida
         O animal recusou-se terminantemente a dormir na área de serviço do apartamento: arranhava a porta, gania. Resolvi então arrumar sua cama ao pé da minha. Por uns dias ele aceitou a nova situação. Um dia, despertei com o cachorro a meu lado. E não houve jeito de reconduzi-lo ao lugar anterior.
         O pior, porém, ainda estava por vir. Em pouco tempo Coronel teimou em voltar para o chão e não sossegou enquanto não lhe fizesse companhia. Soube responder estoicamente às novas circunstâncias e em poucos dias já me sentia à vontade na acomodação precária.
        Poucos meses depois comecei a perceber mudanças no comportamento de meu companheiro. Sentia-o intranquilo, como se os limites de meu apartamento o oprimissem. O animal não tinha sossego e rodava pelos ambientes à procura de uma saída. Uma manhã, ao retornarmos do passeio matinal, mal pude contê-lo. Coronel queria voltar à rua de todo modo. Tornara-se até violento.
         Não foi uma escolha fácil. Por fim cedi a seus apelos. Hoje vivemos sem nada, à mercê da caridade alheia. Tratamos com afeto aqueles que nos ajudam. Não me arrependo um só momento pela decisão tomada. Entendo o ar de compaixão dos homens e mulheres que zelam por nós. E nossas faces maltratadas pelo tempo quase não deixam transparecer o que sentimos por eles.



Depois de Tudo - Paulo Bentancur
Seguro o queixo ou a cabeça pende.
Não basta o trabalho das mãos
trazendo até esta superfície
o que precisa ser confessado.

Sento no chão rente à casa
eu e meus pertences, e o cão vem
e me lambe o rosto. Eu o afago.

Afogadas estão as labaredas
neste começo de noite.
Não há um céu no céu. Os astros
se retiraram todos.

Quem se esconde é um homem
no queixo que o prende. O cão
permanece ali. É companhia
neste dia já cansado.


Morador de rua e seu cachorro morrem de frio e são encontrados abraçados

Bagé no Rio Grande do Sul - 25/05/2019





"Sou devoto dos cachorros mancos" - Fabrício Carpinejar

         "Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o quanto ela é musculosa".
          Sou devoto dos cachorros mancos. Aquele cachorro com uma perna imaginária, apoiando-se no vento. Admiro imensamente o vira-lata que, apesar de quebrado, percorre seu trajeto com o focinho erguido. Que altivez! Que elegância vinda do desespero!
          Irei segui-lo na rua para descobrir o que come e onde mora. Posso entornar as latas de lixo para me tornar igual. Posso errar o caminho do trabalho e respirar Porto Alegre atrás de seu vulto. Fico curioso e assombrado pela força sobrenatural que emana de seu andar.
          Ele perdeu a pata, mas não a estrada. Ele perdeu a pata, mas não a vontade. Ele perdeu a pata, mas não a esperança. Ele perdeu a pata, mas não perdeu a lembrança de caminhar.
          Não tenho pena dele, nem cometo o desatino de me comparar. O cão manco é um homem inteiro.
Passeia por mim e não pede desculpa. Não menosprezo sua convicção: o cachorro manco também corre. O cachorro manco talvez voe. O cachorro manco esquece que tem chão. Sua esperança é uma centopeia apressada.
          Ele não se entregou ao encolhimento, continua se arriscando no trânsito pela compreensão. Aceitou apenas que a vida não é perfeita e ninguém é capaz de controlá-la. Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o quanto ela é musculosa.
          Olhar com calma o pelo que renasceu depois dos maus-tratos e do sol em demasia. Encarar os olhos carentes desprovidos de cílios, nada separando a realidade do fundo das pupilas.
Sua aparição transforma nosso jeito de desejar o mundo. É só pegar o animal no colo que paramos de reclamar dos pequenos aborrecimentos. Desistimos do orgulho. Nasce uma suave fé da carícia.
          Porque o cão manco confia antes de conhecer. Faz festa mesmo sem ser convidado. No amparo estranho, abanará o rabo e tremerá de contentamento. Ele sofreu e não se tornou arredio. Sofreu e não deixou de oferecer o coto.
          Um cão manco é uma passagem para a infância – ele lambe o rosto para lavar pudores e ressentimentos. Aceita um prato de comida como se fosse o seu próprio aniversário. Harmonioso na falta, nos diz que não dependemos de equilíbrio, e sim de um lugar para ir.
          O cão manco é meu professor de transcendência. Me explicou que eu não posso amar por dois, posso amar por três, quatro, cinco, o que precisar para retribuir a ternura de outro amor.


Todo cão é fiel – Fabrício Carpinejar

        Tenho um irmão amado que mora em Faxinal do Soturno: Miguel, juiz, pai do Murilo e casado com Milena.
        É o caçula de casa, o único que se dá bem com toda a família e o mais quieto e sábio, talvez porque foi o último a chegar nas brigas e descobriu que eram insolúveis e não valeria a pena perder tempo com elas.
        Ele cuida de dois cachorros. O mais novo, um salsicha, o Mandi, foi atropelado na frente do Miguel. Escapou de um passeio vigiado na residência e se animou a atravessar a rua de repente.
        Diante do estrondo das rodas, do rasgo do freio e do latido esganiçado, Miguel correu para socorrê-lo. Mesmo abatido, mesmo morrendo, o cachorro mexeu o rabo ao ver seu dono.
        Destroçado, encolhido na frieza das pedras, fez um esforço colossal de mexer o rabo para festejar as mãos de Miguel em sua cabeça. Apesar de ferido e sangrando, alheio a sua condição agonizante, mexeu o rabo, esta mão prodigiosa que o cachorro tem além das patas, esta antena do coração, esta risada do corpo.
         Mesmo soltando seu último suspiro, mesmo desesperadamente doendo, o cachorro mexeu o rabo ao ver o Miguel próximo. Mesmo no pior momento de sua vida, ele encontrou um instante de felicidade e ternura, e acenou com o rabo, quis demonstrar para Miguel que o amava.
         Mexeu o rabo de agradecimento. Mexeu o rabo de comoção. Mexeu o rabo, como sempre mexeu o rabo, quando Miguel chegava do trabalho e perguntava pelo seu nome pelos corredores. Nada mudaria seu hábito de mexer o rabo. Nada arrancaria dele o gesto puro e repetido dia a dia.
         Nem o fim impediu sua declaração. Nem a falta de ar, o medo, a angústia de não estar mais entre nós para sempre. Ficou mais feliz de ver Miguel do que triste de morrer. Ele é um exemplo de como não ser tragado pela infelicidade.
         O quanto não devemos nos afundar na angústia, seremos maiores do que as fatalidades e os reveses, pois poderemos agradecer o que somos e o que recebemos.
         Ainda que nossa vida esteja perdida, temos uma chance de eternizá-la ao nos entregar para a amizade do outro.
         Miguel mexeu os olhos em resposta. Sem ter certeza se estava rindo pelo carinho surpreendente de seu cão naquele momento ou chorando pelo acidente trágico.

         As lágrimas escorriam, ao mesmo tempo, de contentamento envergonhado e de dor exagerada. Não conseguia separar os sentimentos. Isto é a grandeza do humano, a imprevisibilidade do amor, que também mora na alma dos cachorros.


Pryscila Vieira

Floreal


Cachorros extraordinários - Fabrício Carpinejar

Cachorros nasceram para o abraço. Têm a vocação do abraço. É apenas olhar fixo para eles, que mexem o rabo e já saem do seu canto para procurar um carinho. Largam o sono, a quentura confortável, o luxo de um osso por um olhar. Deixam a sua preguiça por amor.

É um mero e banal olhar, que eles se sentem correspondidos. É um simples olhar, que logo disparam, pulam, procuram subir nas nossas pernas, querem brincar de escada para lamber as nossas bochechas.

Lealdade é disponibilidade. Lealdade é rotina. Por isso, os cachorros são fiéis. Eles priorizam o contato e jamais abandonam os seus afetos.

Lembro de dois cães extraordinários. O labrador amarelo do escultor Bez Batti. Fui visitar seu ateliê em Bento Gonçalves e ele mostrou onde esculpe os rostos. Na pedraria, ao longo do quintal, confessou que quem escolhe as pedras para a sua criação é o cachorro. "Ele tem intuição", me alertou. Jurei que era um chiste. Não acreditei até enxergar o seu ajudante canino carregando uma peça de granito com a boca. Quando presenciei a entrega da bruta joia mineral, que logo viraria escultura, eu concluí: cachorro tem alma. Alma é cuidar do outro como se fosse a si mesmo.

Fez sentido agora a história contada pela minha mãe. Por mais sobrenatural que parecesse. Por mais conto de fadas que soasse aos meus ouvidos de guri. Na infância, o seu cachorro Pico a levava e a buscava na escola em Guaporé, inclusive transportando a sua pequena mochila de cadernos entre os dentes.

Sempre iam os dois, chutando a geada, às 6h30min, Pico e Mariazinha uniformizados pela amizade.

Quando o relógio marcava 11h50min, Pico largava as suas tarefas de farejar o mundo e se bandeava para o colégio. Dentro de si, possuía um relógio que nunca falhava. Voltavam os dois, Pico e Mariazinha, iluminados pelo sol do almoço.


Um dia, Pico não veio, já no final do ano letivo. Minha mãe, estranhando a quebra do hábito, começou a procurar o seu cachorro. Encontrou o pequeno vira-lata gemendo no arbusto do jardim. Havia sido atropelado. Ele esperou Mariazinha para morrer. Aguardou o olhar dela, o abraço do olhar, para enfim suspirar. Só se entregou depois da mirada da menina que amava. Naquela manhã, não foi Pico que buscou a minha mãe na escola, foi a minha mãe que buscou Pico de sua vida.


Queria um cachorro – David Coimbra

         Um dia vou ter um cachorro. Não que nunca tenha tido um. Tive.
         Chamava-se Banzé, como o cachorro dos sobrinhos do Donald, o Huguinho, o Zezinho e o Luisinho.
Eu gostava daqueles três patinhos. Resolviam os problemas consultando o Manual do Escoteiro. Quando a Disney lançou um manual que era para ser igual ao deles, capa amarela, mais de 300 páginas, vendi jornal e garrafa até juntar dinheiro para comprar um. Assim formei a coleção completa dos manuais da Disney. O do Tio Patinhas, sobre, digamos, economia. O do Peninha, sobre jornalismo. O do Mickey, sobre detetives. O do Zé Carioca, sobre futebol.
         Esse do Zé Carioca foi lançado pouco antes da Copa de 1974, eu já tinha 12 anos e conhecia todas as escalações dos times do Brasil, até a da Portuguesa de Desportos, onde jogava o Eneas, com a camisa 8. Naquele ano, o Brasil montou uma Seleção que meteria sete em qualquer uma que pudesse ser feita hoje. No gol, Leão, famoso pelo seu gênio e por ter “as pernas mais bonitas do Brasil” (eu não concordava, preferia as da Sandra Brea); na zaga, Luizão Pereira, o Chevrolet; na lateral-esquerda, Marinho Chagas, o Vanusa; no meio, Paulo César, o Caju; na frente, Jairzinho, o Furacão; e, para arrematar, o melhor de todos, Rivellino, o Patada Atômica. Time com epíteto sempre joga mais.
        Mas havia também a Holanda de Cruyff, o Holandês Voador, e a Alemanha de Franz Beckenbauer, o Kaiser, o homem que não sabia qual era a cor da grama, porque nunca olhava para baixo quando jogava.
Portanto, o Brasil perdeu a Copa, para minha frustração.
         Naquela época, eu não tinha mais cachorro. Não tive nenhum outro, depois do Banzé. Ele faleceu de forma trágica: desprendeu-se dos meus braços e, por algum motivo, resolveu atravessar a rua. O que teria chamado a atenção de Banzé? A provocação de algum gato vadio ou a sinuosidade de alguma gatinha? Não sei. Sei que ele tentou atravessar a rua, que até era bem calma, mas justamente naquele momento vinha um carro, que acertou o pequeno Banzé em cheio. Ele deu dois suspiros e depois morreu.
          Provavelmente por isso não quis mais cachorro. Tive um galo, o Alfredo, que foi assassinado e servido no almoço de domingo (não comi!). Tive duas tartarugas, mas elas não eram muito animadas. Tive pintassilgos, caturritas e canarinhos, mas hoje não manteria preso um passarinho – tenho pena. Passarinho na gaiola é coisa antiga. O Rivellino era dono de um viveiro de passarinhos, aliás.
          Ah, tive uma codorna, que me seguia por toda a casa. A Matilde. Amava a Matilde, mas ela também foi assassinada, por um vizinho maligno que não gostava de seus gritos e lhe acertou uma pedrada.
Ainda penso em Matilde.
          Mas agora queria um cachorro. Um cachorro grande, um pastor alemão parecido com o Rin-Tin-Tin. Eu o chamaria de Kaiser. Não como o Guilherme II; como Beckenbauer e a cerveja. Ele estaria sempre comigo, com sua lealdade canina. Vejo-me sentado numa poltrona confortável de frente para o mar. Na mesinha ao lado há um prato de torpedinhos de siri e uma taça de algum tinto honesto. Com uma mão, seguro o livro que leio, com a outra, afago a cabeça do velho Kaiser.
          O mar rumoreja a 50 metros de distância e o calor de um raio de sol que entra pela varanda me dá preguiça. Começo a sentir um sono envolvente. Não me dou o trabalho de fechar o livro, deixo que caia aberto no meu colo. Vou fechando os olhos. Posso dormir tranquilo, meu amigo está vigiando. Sim, ele estará sempre comigo, o bom e velho Kaiser.



Por que o cachorro vira a cabeça – David Coimbra

         Não tenho a menor dúvida de que a notícia mais interessante publicada nos últimos dias foi a respeito da pesquisa científica que tenta descobrir por que os cachorros viram a cabeça para o lado quando uma pessoa fala com eles. Essa questão não me havia ocorrido, até então. Já tinha reparado que os cães entortam a cabeça de vez em quando, mas achei que, sei lá, fosse só um jeitão deles.
         Algumas mulheres, por exemplo, trançam as pernas, em vez de cruzá-las. Assim: além de fazer um xis com os joelhos, elas torcem as pernas de maneira que uma canela encoste na outra panturrilha. Aí elas ficam sentadas de ladinho, e parece bem confortável. Definitivamente, é preciso flexibilidade para se acomodar nessa posição. Por que elas fazem isso? O que significa? Qual é o estado de espírito de uma mulher, quando ela senta dessa forma?
          Essas coisas sempre me intrigaram, além de outros hábitos curiosos das mulheres, como jogar os bracinhos para cima quando dançam. Adoro esse momento. Nenhum cientista jamais tentou descobrir tais mistérios femininos. No entanto, um psicólogo chamado Stanley Coren saiu pelos Estados Unidos entrevistando donos de cachorros para saber por que razão eles (os cachorros, não os donos) giram a cabeça para um lado se um ser humano, por algum motivo, resolve lhes dirigir a palavra.
          Esse psicólogo falou com 582 donos de cães acerca desse tema. Não é pouca coisa. Se ele entrevistou dois donos de cachorro por dia, inclusive durante os finais de semana, levou quase um ano na atividade. Mais o tempo para tabular os dados e para colocar no papel, bote aí cerca de ano e meio de trabalho.
          Um ano e meio pensando em por que um cachorro vira a cabeça para o lado quando uma pessoa fala com ele. Um homem afortunado, esse Stanley.
          No mundo de Stanley, não há políticos que sabotam o país para vencer a próxima eleição, nem governos que se utilizam da máquina pública para se eternizar no poder, ninguém tem medo de ser assaltado na rua ou de ficar desempregado, não há Dilmas, Aécios, Lulas, Willys ou Bolsonaros. No mundo de Stanley, pouco importa a opinião das pessoas nas redes sociais ou nos jornais. A Pugliesi fez uma brincadeira sobre gordas? A Manuela não gostou? E daí? Que diferença faz? No mundo de Stanley, o que interessa é saber por que, afinal, um cachorro entorta a cabeça no momento em que uma pessoa se comunica com ele.
           Aliás, por que mesmo? O que concluiu a pesquisa? Stanley não tem certeza. Talvez seja pelo tamanho do focinho, talvez seja para agradar, talvez seja para ouvir melhor, ele não sabe ao certo. Mas isso também não tem importância. O que tem importância é que alguém, finalmente, preocupou-se com a virada de cabeça dos cachorros e que a imprensa inteira publicou essa notícia com entusiasmo. Que bom. Que alívio, até. Continuamos ignorantes sobre esse enigma canino, mas descobrimos que o mundo pode ser singelo, afinal.

Fernando Gonsales

Todo mundo só reclama - David Coimbra

Todos os cachorros descendem dos lobos. E todos os cachorros dependem dos homens.
Há mais ou menos 20 mil anos, grupos humanos nômades viviam vagando pelo mundo, das savanas africanas às estepes da Ásia. Paravam por algum tempo em algum lugar, geralmente à beira de um rio. Arrancavam as frutas das árvores e as raízes da terra. Matavam os bichos com carne apetecível e os assavam em fogueiras acesas no solo. Quando os recursos acabavam, mudavam-se para outra região. À margem desses acampamentos, os homens deixavam restos de comida, que atraíam os lobos.
Esses lobos que se achegavam perceberam que era mais fácil se alimentar das sobras dos humanos do que caçar por conta própria. Assim, eles seguiam os bandos de homens e mulheres por toda parte. A convivência por conveniência fez com que tanto os bichos quanto as pessoas perdessem o medo uns dos outros, e, quando o medo se vai, o que vem é a amizade. Amansados, os lobos terminaram domesticados e, por fim, transformados.
Penso nessa história cada vez que vejo esses cachorrinhos pequenos e felpudos que são levados por seus donos a passear nos parques das cidades. Olhe para os poodles com seus rabos de pompom, para os minúsculos chihuahuas, para os cabeludos yorkshires, para os molengas lhasas apsos. Como é possível que esses cães exclusivamente decorativos sejam parentes, ainda que remotos, de nobres, imponentes e valentes lobos? Pode-se chamar a isso de ?evolução??
Claro que não. Esses frágeis cães de apartamento não conseguem mais sobreviver por conta própria. Se a espécie humana não os sustentar e proteger, eles se extinguirão miseravelmente.
O que os fez assim subalternos e submissos?
As benesses da civilização. As comodidades. A vida fácil.
Neste momento, você, amante de cachorros pequenos, deve estar sentindo ganas de me enviar um e-mail de fogo e fúria. Mas calma. Não me deterei nos cães. Falarei de você.
Sim! Com você, Homo sapiens que anda de elevador e come mamão papaia no café da manhã, está acontecendo o mesmo que aconteceu com os cachorros. O homem moderno, sobretudo o homem ocidental, amolentou-se com a civilização. As delicadezas da existência urbana, os xampus e os cremes, os banhos quentes e as roupas de algodão, os chinelos de feltro, as sessões de psicanálise, as teorias da sociologia e os bancos dos automóveis, os mimos da era da internet, em resumo, fizeram aquele lobo selvagem e orgulhoso virar um pequinês de sofá.
E o que faz um pequinês de sofá?
Ele late.
Homens e mulheres do século 21 reclamam. Queixam-se a maior parte do dia, esperando que alguma espécie superior resolva os problemas por eles. Queixas, reclamações, protestos, críticas. É só o que se vê e se ouve, principalmente aqui, neste país tropical, e mais ainda exatamente aqui, no sul do mundo.
A ação é mínima. A colaboração, nenhuma.
Pugs de cara amassada, é nisso que vocês se transformaram! Parem de reclamar! Façam algo por vocês mesmos! E tentem ser os lobos que seus antepassados um dia foram!





Mouro – Luis  Fernando Verissimo

           Compraram um cachorro para cuidar da casa. Depois de tantos roubos e arrombamentos, depois de tantos ataques ao seu patrimônio, a família decidiu que só um cachorro resolveria. Mas um cachorro de verdade, treinado para pegar ladrões, não apenas espantá-los. Nada parecido com um cachorrinho antigo da família, chamado Frufru, um inútill que morrera de susto ao ver um gato.
           Mouro – deram-lhe o nome de Mouro por causa da sua assustadora cor preta – era um cachorro especial. Quando entrava alguém na casa, ele corria para cheirar o recém-chegado. Isto causou o primeiro problema com Mouro na casa. Um dia, a filha chegou com um namorado, e o cachorro, depois de cheirá-lo, derrubou-o no chão e sentou em cima do seu peito, como se esperasse a chegada de reforços para dominá-lo. Descobriram depois que o namorado carregava maconha no bolso. O namorado foi aconselhado a nunca mais aparecer na casa e foi corrido para a rua pelo Mouro, sob protestos da filha.
           Mouro não dormia. Passava a noite rondando pelo jardim da casa ou dentro da própria casa. Mais de uma vez, quando levantava no meio da noite para fazer xixi, o dono da casa quase tropeçara no cachorro, cuja cor preta o tornava invisível no escuro. E a dona da casa se queixava dos sustos que levava, cada vez que o cachorro entrava, silenciosamente.
          – Esse cachorro está começando a atrapalhar a nossa vida – disse a mulher.
          – Você está maluca? – disse o marido. – O Mouro é formidável. Apareceu algum ladrão por aqui depois que ele chegou? Nenhum.
          – E o que o Mouro fez com o meu primo Artur, expulsando-o da nossa casa e correndo atrás dele pela rua?
          – É. Mas depois se soube que o Artur está envolvido num negócio de propina. Ele deve ter farejado alguma coisa.
          – Mas ele é que está mandando na nossa casa?
          – Não exagera.
          – Qualquer dia, ele cheira você e descobre aquele seu rolo com a Receita...
          – Você acha?






Charlie Chaplin - Vida de Cachorro (1918) - Legendado






O cão abstrato - Gilberto Amendola

Vou levar o meu cão abstrato para passear. E olhar nossa imagem refletida na vitrine de uma loja de calçados. Nela, vamos nos multiplicando e nos subtraindo. Já não estamos mais lá ou em qualquer outro lugar. Acho que ouvi um latido. 

A vida e suas largas avenidas. Multidões que descem as escadarias do Metrô. O motorista de aplicativo que se chamava Caronte cancelou minha corrida. O ônibus que me deixou com o braço estendido para sempre. Vou a pé – com meu cão abstrato.

A arte dos encontros é uma língua morta. Você não mora mais aqui. Se eu não sair do lugar, se eu bancar uma estátua, talvez te veja passar. E te veja com seus cabelos encaracolados de sonhos surrealistas. E te veja carregando essa utopia de beleza para cima e para baixo.

Você ia gostar de me ver agora. Ou melhor, é uma pergunta: Você ia gostar de me ver agora? 

Tudo é igreja, boteco e estacionamento. Um padrão que se repete. Tanto faz a porta que vou bater. O quê? Meu cão abstrato pensou que era um poste. Desculpe, meu senhor. Ele já não enxerga tão bem. Não vai ficar mancha nenhuma. Nunca fica. 

Agora tenho um problema: um homem confundido com um poste. O homem poste quer vingança, ameaça me bater e jura me matar. Que culpa tenho eu se ele é incapaz de perdoar meu cão abstrato com problemas urinários?

Ter um problema é estar vivo. Quem não tem problemas já está morto. Agradeço ao homem poste – que me responde com um soco no olho. Não reclamo. Acho que o olho roxo combinou comigo. Acho que me deu uma aura qualquer, uma marca, uma distinção. Não sou mais como vocês.

Sou um ‘sir’ como Paul McCartney, Mick Jagger e Anthony Hopkins.

Puxo meu cão abstrato. Vem, vem, vamos para casa. A gente nunca sabe o que pode nos acontecer na próxima esquina. Acho que ouvi um latido.




Élégie à Rimbaud

Assista ao filme, leia o roteiro, comente 1, publique, Documentário, Experimental, de Leo Pyrata, Duração: 7 min, Plays 617


Gênero: DocumentárioExperimental
Diretor: Leo Pyrata 


Toninho Horta - Diana (1979)


Cabeto Carli - A Cachorrinha

Mutantes - Vida de cachorro

Sergio Sampaio - Policia Bandido Cachorro Dentista



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