quarta-feira, 3 de maio de 2017

Celular / Internet





Graves Of The Innocent - Synthetic Soul Syndicate


André Dahmer



Duke


Caco Galhardo
Robert Crumb 

Você está viciado(a) quando - Marcelo Rubens Paiva

Acorda no meio da noite para fazer xixi e olha as mensagens.
 Vai ao banheiro com o celular na mão.
 Acaba e continua um bom tempo sentado(a) no toalete com celular na mão.
 Acorda de manhã e, antes de qualquer atividade doméstica, checa as mensagens.
 Troca fraldas do filho e checa as mensagens.
 Prepara a mamadeira checando as mensagens.
 Deixa a comida queimar, esquece de temperar, porque checou as mensagens.
 Recebe periodicamente multas por dirigir veículo “utilizando-se de celular” (artigo 252 inciso 6; quatro pontos na carteira).
 Durante um filme, checa pelo menos quatro vezes as mensagens que chegaram. Tem vergonha e checa com o celular dentro da bolsa ou mochila. Prefere as mensagens aos créditos.
 Tem grupos das duas famílias, materna e paterna, em constante polêmica.
 Alimenta as polêmicas.
 E ainda assim tem grupos familiares paralelos que falam mal dos outros e sustentam outras polêmicas.
 Tem grupos do trabalho, da chefia aos subordinados.
 Grupo do trabalho anterior.
 Grupo da faculdade.
 Grupo do curso de especialização.
 Grupo com a turma do inglês (ou francês ou espanhol ou italiano ou todos).
 Grupo do colégio.
 Grupo com amigos da adolescência e da infância.
 Grupos da escola do filho.
 Grupo da classe da escola do filho.
 Grupo das duas mães ou pais com quem você se identifica da classe do filho.
 O alarme para a chegada de novas mensagens está desligado, mas as notificações na tela, não.
 Percebe que não entende uma piada.
 Pergunta o que acabaram de lhe dizer, pois não prestou atenção (até na verdade pensando na réplica da mensagem que lera antes).
 Já foi xingado(a) por atravancar o trânsito.
 Já se perdeu, pois ficou olhando as mensagens
 Já deixou de andar num sinal verde, pois estava no celular.
 Já perde a estação de metrô, o ponto para saltar, o voo, a saída da estrada, o retorno, a ponte da Marginal, pois checava mensagens.
 Anda desatendo(a), mistura as pessoas, esquece de tomar banho, parece atordoado(a) por algo, sem apetite, não dorme direito.
 Sim, você está viciado(a) em Whastapp.
 Como tratar?
 Viaje a um local sem conexão e volte a prestar atenção na vida.
 E a se viciar nela.

André Dahmer








Genildo



Celular é uma droga – Marcelo Rubens Paiva


Antes, a pessoa tinha o trabalho e a vida, e, quando voltava para a vida, depois de uma jornada cronometrada, com ponto, turno, deixava o trabalho fora de casa, relaxava na poltrona da sala, com um copinho de uísque ou vinho numa mão, e o controle remoto ou um livro na outra.
Agora, considera-se que a vida de uma pessoa é o trabalho. A pessoa é um empreendimento. Sua vida, a carreira. Sua história, um currículo em redes sociais. Trabalha-se no trabalho, na garagem, no carro ou metrô, no avião, na plataforma, na calçada, andando até o elevador. Tenta trabalhar no elevador, mas não há conexão, trabalha no banheiro, jantando, com o celular na mão.
Checa mensagens acordado e quase dormindo. Quando tem insônia... Acessa bancos, consulta, paga contas, resolve pendências. Dorme com um travesseiro e o celular. Escova os dentes com uma mão e trabalha com a outra. Vida e trabalho são uma coisa só. O celular é uma extensão do corpo, um novo membro. São as torres de transmissão do empreendedor. Lazer virou trabalho. Viagem é trabalho.
A epidemia da multitasking (múltiplas tarefas) nos contaminou. Trabalho é nosso crush, nosso like, nosso pow. Casa-se com o trabalho. Passa-se férias com ele. Seremos enterrados com nossos smartphones. Porque se voltarmos do mundo do além e ressuscitarmos, dá para dar uma trabalhadinha.
No passado, a pessoa não via a hora de viajar para, com uma latinha de cerveja ao lado, ou um coco, colocar os pés na areia e não se chatear. Agora, aproveita o tempo livre da viagem para fazer um curso com uma estrela do TED ou se hospedar em retiros que o tornem uma pessoa melhor. Melhor?
Antes, esportes eram a oportunidade de desanuviar, encontrar amigos, rir, desopilar, descontar, chutar, arremessar, lançar. Agora, a pessoa faz atividades físicas como um ganho pessoal: academia, ioga, pilates. Andar de bike não tem o propósito de ir à esquina comprar jornal ou flores. É uma atividade física para aumentar a resistência ao trabalho, e também contribuir para o respeito ao meio ambiente.
Tempo não é dinheiro. Tempo é tudo. Economizá-lo, a missão da tecnologia de informação: o 3G virou 4G, que em breve será 5G; a cada nove meses, um processador dobra a velocidade; aplicativos economizam idas a bancos, o transporte, o “dating” (precisa-se encontrar um termo em português, que classifique um encontro não como um rolê despretensioso, mas um em que há interesses afetivos em jogo e que algo pode rolar entre duas pessoas). Até o check-in em hotéis e aeroportos é feito por celulares.
Mas será que um dia nos cansaremos deles?

Ronaldo Lemos, do MIT Media Lab, escreveu para a Ilustríssima: mercado de livros digitais está em declínio em quase todo o planeta (exceto na China). Em 2016, nos Estados Unidos, queda de 16% nas vendas de livros digitais e aumento de 3,3% de impressos. Na Inglaterra, a venda de e-books encolheu 4%, e o consumo de impressos subiu 7%.
Vivemos a era do slow food (buscar o prazer de selecionar os alimentos, cozinhar e comer sem pressa). Podemos entrar na era da slow media, ler concentradamente e usar a internet sem pressa. Entramos na era da screen fatigue (cansaço das telas)?
Lemos lembra a luta do designer americano Tristan Harris, que trabalhou no Google, e as dicas dadas, aliás numa viralizada fala no TED. Ele pede um comportamento ético da indústria dos celulares, como projetar smartphones que deem a possibilidade de manter o usuário desconectado por um tempo. E a criação de listas de notícias organizadas por credibilidade, não popularidade (cliques).
A nós, usuários, o que sugere é difícil, mas não impossível:
- Desligar todas as notificações do celular, exceto as que são geradas por pessoas reais.
- Bloquear alertas disparados automaticamente e não autorizados.
- Reprogramar a tela inicial do celular, deixando visíveis apenas aplicativos essenciais. Deixar a maioria guardada em pastas fora do campo visual.
- Não abrir apps por meio de um ícone, mas por texto, digitando o nome deles para acessá-los, o que levaria a uma reflexão sobre a necessidade de usá-los naquele momento.
- A dica mais conhecida: carregar o celular fora do quarto à noite. Comprar um despertador. E evitar olhar o aparelho logo após acordar.
Como um vício, ser marcado numa foto, ler a resposta de uma mensagem enviada e notar likes em posts aumentam a serotonina, a satisfação, e dá a recompensa esporádica semelhante à das drogas. Como por elas, muitos estão escravizados por seus aparelhos, para a satisfação e os rendimentos da indústria de corporações bilionárias e dos mais ricos do planeta (Facebook, Google, Apple, YouTube, Amazon).
A periodicidade imprevisível da recompensa é o grande segredo da compulsão. Postamos para termos curtidas. Sem elas, não temos recompensas, vem a frustração, e postamos mais e mais. Deixar de postar? Cercado pela tentação (e prazer) que as redes sociais geram?




Fernando Gonzales



Garfield - Jim Davis


PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS      ESTELA MAY



















Duke


A bolha - Marcelo Rubens Paiva



Ninguém mais conversa no metrô. Ninguém mais paquera. Ninguém mais olha o vazio, o mapa das linhas, os anúncios, as luzes passando em sentido contrário, a própria imagem refletida nas janelas, quem entra, quem sai, quem veste o que, quem está bem, quem está feliz, quem chora, quem dorme, quem está por um fio, quem se dirige a uma manifestação de protesto, ou de apoio, quem defende o que, gosta de qual banda, quem parte para um encontro secreto, ou acaba de ser beijada, por alguém que sempre quis, e que nunca tomou a iniciativa, quem acaba de se apaixonar, ou descobre que o amor acabou, quem espera gêmeos, está exultante e nem consegue mais dormir, quem acaba de conseguir um emprego, quem não desce em nenhuma estação, e quer apenas um ar condicionado no talo no verão impiedoso, ou fugir da chuva, ou dar um tempo, viver sem sentir a vida, percorrer túneis subterrâneos de uma grande metrópole, em que, apesar da multidão, se sente sozinho.
Ninguém troca ideias, opiniões divergentes, ninguém debate, é convencido de algo, muda de opinião. A bolha que nos cerca nos protege. É como um escudo contra o que nos agride. A cidade nos agride. O ódio nos agride. Todos nela nos agridem. Suas vozes incomodam.
Preferimos a música preferida da lista previamente selecionada que sai dos meus fones de ouvido conectados por um cabo ao meu universo pessoal, em que sou Deus, em que decido o que ler e ouvir, o que ver e curtir, o que assistir e ignorar, graças à opção “bloqueio”, à opção “excluir”, à opção “apagar perfil”, “colocar em modo avião”, “não receber notificações”.
Há uns anos, não pegava celular no metrô. Os passageiros conversavam, paqueravam, miravam o vazio, redescobriam estações no mapa das linhas, checavam os cabelos na imagem refletida, quem entrava, saía, vestia o que, era fã de Ramones, Pink Floyd, Metallica, Batman, Jack Daniel’s, quem estava bem, feliz, chorava, dormia, quem, pelo perfume, banho tomado, roupa bonita, estava a caminho de um encontro secreto, fora beijada, por alguém surpreendente, inexplicável, paixão que nasceu do fundo da alma, quem descobriu que não ama mais, descobriu que estava grávida e não consegue mais dormir, tensa, quem acabou de perder um emprego, a estação, o sentido de viver, porque se sente sozinho, apesar da multidão nas estações.
Trocavam-se ideias, opiniões, debatia-se, mudavam as convicções de alguém, apresentavam outros pontos de vista, experiências e erros da história que se repetem. A bolha é nosso mundo agora. E o que tem de tão urgente nos celulares, que não era na década anterior? O que é inadiável?
A bolha em si, e nela que se quer estar: protegido e isolado. O mundo é muito louco, tem muito louco por aí. E boa parte, quando chega à sua estação, continua nela, caminha olhando ou falando para seu universo pessoal. Haverá um dia em que as pessoas voltarão a interagir? O mundo corre perigo.
A revista de tecnologia Wired fez um alerta aos leitores: os filtros da sua bolha estão destruindo a democracia.
Pelos grandes pilares da rede social (Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp), você recebe notícias de quem quer que lhe dê notícias, não de quem lhe desagrada, discorda, coloca em dúvida, incomoda, atrapalha a lógica da ética de vida que você demorou para adquirir.
A bolha foi criada por você e pela matemática. As redes registram o que você gosta. Deixa aquilo que você não gosta em segundo plano e o bombardeia de informações apenas de quem ou o que você gosta. São os misteriosos algoritmos, a lógica da rede.
Pesquisadores, entusiastas e defensores da tecnologia da informação, como Amanda Hess, do New York Times, dão dicas para a bolha não enriquecer.
1. Uma extensão do Chrome chamada PolitEcho faz você surfar pelo seu Face e checar seus preconceitos, através dos “likes” dos amigos.
2. Um plug-in do Twitter, o FlipFeed, colocará em seu feed pessoas aleatórias, anônimas, com opiniões amplas.
3. O BuzzFeed testa uma nova plataforma, Fora da Bolha (Outside Your Bubble), e o Face, Saia da Bolha (Escape Your Bubble), que para de filtrar posts por afinidade ideológica.
4. Os podcasts políticos liberais Right Richter, Slate e o Crooked Media, tocado por gente do staff de Obama, abriram abas para notícias e opiniões de grupos conservadores divergentes.
Pesquisas confirmam que apoiadores de Trump vivem num mundo paralelo de informações-desinformações nascidas nas redes sociais, que não fazem sentido com a realidade. Confundem o discurso hipotético da propaganda com realidade.
O prefeito que faz, o governador de que precisamos, o presidente que melhorará a vida de todos, colocará o país em primeiro lugar... Mentira. O prefeito que não faz nada, basta alastrar que faz, o governador não é do que precisamos, e o presidente sozinho não melhorará a vida de ninguém (a não ser a dos amigos), muito menos colocará o país em primeiro lugar, criará conflitos danosos e desnecessários, vai impor barreiras, construirá muros, dividirá o país.

Fábio Moon - Gabriel Bá


André Dahmer




Olha como sou feliz... - Marcelo Rubens Paiva

Camila, que não usa maiúsculas e raramente acentua, postou no Twitter: “E eu que tava chorando, me olhei no espelho, me achei gostosa e tirei uma foto”. Fiquei uma semana intrigado em busca do significado do desabafo. 
Na foto, fazia pose e biquinho. Bico de selfie. Costuma postar trivialidades: “Estou com sono”; “queria estar com o menino q eu gosto tomando uma cervejinha na piscina nesse calor”; “to so existindo hoje”. Horas antes, tuitara: “A partir de hoje nao falo mais NADA da minha vida”. Continuou o dia falando de si.
Tem 2.500 seguidores. É são-paulina de Brasília. Seu codinome: “Princesa”. Não sei precisar a idade. Tem mais de 20 anos. Fiquei em dúvida se poderia citar o nome completo. Ou se seria melhor preservá-la. Mas o quê... 
Sua conta é aberta, suas fotos agora se tornam visíveis no mundo todo, seus pensamentos são compartilhados, ela aceita que sejam repartidos; a maioria deles, com palavrões. Fala muito em brigar e fazer as pazes com amigas, em brigar e fazer as pazes com namorados. 
Na frase intrigante, há quatro ações: chorar, olhar-se no espelho, considerar-se gostosa e tirar foto. Tirar uma foto fez bem? Ou se considerar gostosa? Parou de chorar? Considerou-se gostosa pois chorara? Ou mostrar aos 500 milhões de usuários do Twitter uma foto dela se olhando no espelho depois de chorar é que a fez ficar bem? 
No perfil, informa seu endereço do Instagram. É também aberto. Nele, 7.800 seguidores. Numa porcentagem grande de fotos, está de biquíni. Secura do Planalto Central. Quase sempre sozinha, seduzindo com um olhar direto para a câmera. Acha-se linda, com certeza. E é.
Sem ter o que fazer, investiguei-a. Em cinco minutos, descobri seu nome e sobrenome, e que é recepcionista de uma academia de TopFit do Distrito Federal, que cobra de R$ 129 (Plano Basic) a R$ 169 (Gold). Acabara de chegar ao Plano Youth, para jovens de 18 a 24 anos, a R$ 109. Camila os recepciona com um “may I help you”?
Charles é o “fundador” da modalidade, da academia, professor, e madruga: começa a atender às 6h30. Na fanpage do Face, tem todos os dados. Assim como na página de Camila, também aberta, que contém muitos detalhes do trabalho e vida pessoal. 
Ela está solteira. Trabalha desde 2013 na academia. Em 2005, aprendeu a nadar. Frequentou as matinês do Sev7Teen. Curte o restaurante Coco Bambu Brasília, de frutos do mar. Gostou do filme A Culpa É das Estrelas e dos programas de TV SobrenaturalSuperstar, entre outros. Não indica nenhum livro. Não há sinais de que os lê.
As fotos dela no Face são mais “comportadas” do que as do Insta. Mas também na grande maioria é ela sozinha, seduzindo as lentes. Descubro por ela que Charles virou Coronel Charles nas eleições de 2018, foi candidato a deputado federal pelo Pros, apoiou Bolsonaro, teve 11.114 votos, mas não foi eleito. Ela apoiou o chefinho.
Por que decidi stalkeá-la? Foi uma escolha aleatória, que me lembrou um conto do livro O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, em que um estudante da Rocinha passa a seguir por dias sem motivo aparente um executivo do Leblon, apenas para seguir ou amedrontar alguém; ou ver como vivia e entender os motivos de tanta desigualdade entre vizinhos.
Já ficou nítido que Camila mescla perigosamente momentos de euforia e depressão. Porque talvez nunca chegue à foto perfeita, ao momento perfeito, à calma de uma relação estável, ou nunca ganhará likes suficientes. A necessidade dos likes, da aprovação, é uma epidemia mundial, preocupante, e sinal de solidão e baixa autoestima. Não se vê fotos da família ou de rituais familiares. Virtualmente está cercada de gente, mas na real não tem ninguém.
Observei como, numa ingenuidade contemporânea, ela se expõe e entrega dados sobre si mesma. Não a hackeei criminosamente. Apenas com o mouse vi em meia hora o que qualquer um pode ver: sua intimidade. 
Me benzo por ter saído do Face, Instagram e ser vago nas informações que passo em cadastros online, às vezes mentiroso. Primeiro efeito: despencou a necessidade de me fotografar ou fotografar aquilo que vivo, como estou, onde estou, com quem e por quê. Apenas estou.
Esqueço que celular é também uma câmera. Por sinal, me vejo em eventos sem tirar uma foto sequer. Como banalizamos a fotografia... Como era bom quando no Brasil era caro. Tínhamos que juntar toda a família para a foto do Natal. 
Na meia hora em que a observei, meu filho de 3 anos via Peppa Pig ao lado. No universo da porquinha rosa, uma cidadezinha de campo inglesa, quase não se usa celular. As pessoas são boas, ajudam-se, todos trabalham e vivem dignamente, o trabalho é honrado, ninguém tem mais que outrem ou é explorado. Todos vivem em família e têm amigos. Olho meu filho e me pergunto o que será dele no futuro. 
Inventamos a internet para conectar pessoas, democratizar a informação, diminuir distâncias, facilitar a comunicação e os serviços. Steve Job pensou num celular que trouxesse o bem, a alegria, a união, que mudasse o mundo para melhor. O problema é que, operando-os, estamos nós, com nossos sete pecados.
Tenho dó de quem não viveu num mundo sem internet e celular, não viveu a experiência de não estar plugado numa rede sem limites, de mandar telegramas, cartas, ter tempo para contemplar o nada, de ter amigos que não sejam algoritmos, binários, fantasiosos. Tem volta?

André Dahmer
















Geração # - Marcelo Rubens Paiva

Meu filho Joaquim, de 6 anos, me perguntou passeando pelas ruas do bairro, num domingo ensolarado: “Pai, por que as pessoas se cansam de viver?”. Acendeu um alerta máximo no meu cérebro. Parei, abracei, beijei sua testa muitas vezes e perguntei de onde ele tirou aquilo. “Ué, você que me disse.”
Pesquei as conversas recentes armazenadas na memória sem a fluidez da infância. Memória gasta como um sapato velho. Até me lembrar. É, eu tinha dito, quando ele comentou, semanas antes, que queria viver mil anos, e falei que viver muito era chato, que seria melhor descansar, que morrer é parte do processo, que todos morrem, e é bom, as pessoas se cansam de viver muito, ficam muito doentes quando envelhecem. Até 100 anos dá. Mais que isso, será que vale a pena?
Por que, de uma hora pra outra, ele trouxe o assunto à tona. Os pais de hoje, depois do casamento demoníaco da internet com o telefone, que deu nas redes sociais, que deu na confusão entre real e digital, na sedução hipnótica das telas que cabem no bolso, estamos em alerta máximo. 
Ele afirma que quer um celular. Eu afirmo que só sobre o meu cadáver. Ele afirma que fulaninho e beltraninha têm. Eu afirmo que os pais Fulanão e Beltronona são dois imbecis, que não sabem o que é bom para os filhos, e trocaram a boa brincadeira, o livrinho infantil, pela opção fácil da babá digital smartphone.
Os pais de hoje vivem um estresse antecipado do como será o futuro da geração que nasceu millennial, depois de 1997, sob o signo das redes sociais, a Geração Z: 70% convivem com ansiedade e depressão, 55% com bullying virtual, 50% com vício de drogas, 45% com alcoolismo, 30% com gravidez na adolescência, enumerou a The Economist.
Casam-se mais tarde. Começam a vida sexual mais tarde. São menos ligados a comunidades religiosas. Ficam tempo de mais em redes sociais. A metade deles já largou emprego por conta de doença mental, o familiar Burnout. São conclusões de um conglomerado de institutos de pesquisa e organismos: Organização Mundial da Saúde, Blue Cross Blue Shield Health Index, Mind Share Partners, SAP e Qualtrics.
De acordo com BDA - Morneau Shepell, um em cada cinco millennials sofria de depressão nos EUA em 2015. A OMC alertou em 2016: o suicídio é a segunda principal causa de morte de jovens americanos entre os 15 e os 29 anos. No Brasil, o suicídio é a quarta maior causa de mortes entre jovens de 15 a 29 anos. 
Competição no trabalho, a busca incessante pelo like, ansiedade, pânico, “fear of missing out” (Fomo), ou seja, medo de estar por fora, dificuldade de se tornar “adulting” (de crescer), são frutos de uma sociedade carente e hiperconectada; precisam ser aceitos, curtidos, incríveis.
Nas escolas que dizem formar futuros líderes e empreendedores, alunos ganham tablets na matrícula. Nas da minha bolha, tablets e celulares não entram. Estamos perdidos, sem dados, sem rumo. Logicamente, que as empresas mais ricas do mundo, envolvidas na hiperconexão, não nos dão respostas às dúvidas que as novas tecnologias suscitam. 
Já ouvimos dizer que o vício pelo like, assim como as cores das telas, é como o de uma droga estimulante. Sabemos que bebida, cigarro, drogas na infância e adolescência devem ser banidas. Não sabemos nada sobre as quatro telas. Para piorar, estamos cercados por elas.
Não existem carreiras de cocaína ou um copo de uísque on the rocks em cada sala de espera de médico, hospitais, na mesinha da poltrona do avião, nos táxis, em bares e restaurantes, nos aeroportos, rodoviárias, trens e metrô. E em todos eles, é proibido fumar. Mas existem telas, são mágicas, sedutoras e liberadas. Na mão da maioria das pessoas sentada, um celular. 
Como dizer a uma criança que aquilo faz mal. Elas estão nos bolsos de cada um, nas mãos, mesas, bolsas. Meu filho adquiriu uma habilidade “pickpocketiana” de afanar meu celular carregando, guardado, ou aparelhos de primos, babás, amigos, para mergulhar fascinado naquele universo em que ele é proibido de entrar.
Sabe operar como poucos, baixar o que quiser, e onde está o segredo. E já pede de presente cartas Pokémon e um iPhone 11. Se ignoramos, pede dinheiro, sabe o preço do aparelho e onde tem promoções. Estamos fritos. E eles, então...
VIVER DÓI    -  FABIANE LANGONA

Réquiem para o telefone - Ruy Castro

Se você, como eu, ainda é usuário de um exótico telefone fixo, sabe do que estou falando. É raro alguém atender às nossas ligações. Com razão: chamadas de telefones fixos tornaram-se sinônimo de telemarketing. Eu próprio, quando recebo uma, só a custo consigo manter certo humor. Digo: "Desculpe, minha filha. Não posso falar com você agora. Vovó acaba de falecer aos 99 anos". E, quando a moça se desmancha em "Oh! Meus pêsames!", acrescento: "Obrigado. Ela morreu de parto". E levo uma desligada rápida.

Da mesma forma, sei que até os telefonemas de celular para celular passaram a ser ignorados. As pessoas hoje só se comunicam por WhatsApp. É o fim do telefone, depois de quase 150 anos de grandes serviços prestados. Em breve ninguém acreditará que, até cerca de 1990, ele era um dos bens mais valiosos do Brasil —famílias iam aos tribunais por uma linha ou um aparelho.

Um telefone correspondia a xis ações da companhia telefônica. Era obrigatório declará-lo no imposto de renda. Comprá-lo levava séculos —uma linha demorava tanto para sair que podia-se morrer de velhice esperando. Entrava-se em consórcios para adquiri-lo e as pessoas davam festas ao serem sorteadas. Os testamentos o incluíam entre os bens do inventariante, junto com o carro ou o apartamento. E, nos divórcios, era tão disputado que, às vezes, o casal desistia da separação —valia a pena continuar aturando o cônjuge para não perder o telefone.

Com cruel frequência, Paulo Francis escrevia em sua coluna na Folha nos anos 80 que, em Nova York, onde ele morava, um telefone era a coisa mais fácil do mundo. Ligava-se do orelhão para a telefônica e, em uma hora, vinha um sujeito de macacão com um aparelho, plugava-o na tomada e passar bem. Morríamos de inveja e nos perguntávamos como podíamos ser tão atrasados.

E, justamente agora que podemos ter isso, não queremos mais saber do telefone.

foto de Eduardo Knapp

Mudos, surdos e mortos - Ruy Castro

Uma das poucas coisas de que as pessoas ouviram falar sobre dom Pedro 2º é que, numa viagem aos EUA, ele conheceu um jovem inventor chamado Graham Bell e se empolgou com um aparelho que este acabara de inventar e tentava em vão mostrar às pessoas: o telefone. O fato é real e aconteceu na Exposição do Centenário da Independência Americana, na Filadélfia, em 1876, para a qual d. Pedro foi convidado. Por isso, pouco depois, o Rio foi a primeira cidade do mundo fora dos EUA a ter telefone. O aparelho ligava o Paço Imperial, na atual praça 15, ao Paço de São Cristóvão, atual Museu Nacional

Quando se pensa no papel do telefone durante o século 20 —no que ele representou na história das comunicações e de tudo que passou a depender dele—, é quase impossível avaliar o significado do gesto de d. Pedro. O reinado do telefone durou 120 anos, até que ele cedeu o lugar ao celular. O resto, todos sabem. Só não sabemos como será em cinco ou 10 anos

Num domingo recente, dei um pulo à feirinha dominical de antiguidades da praça do Jóquei, na Gávea, aqui no Rio. Sobre as bancadas, disputando espaço com aparelhos de rádio e ventiladores arcaicos, um batalhão de telefones pretos e vermelhos, de mesa ou de parede, de disco ou de botões, e outros formatos em que eram fabricados. Todos mudos, surdos e mortos. Estavam ali à espera de um colecionador ou nostálgico que os comprasse para usar como peça de decoração. Ao passar por eles, pensei em quantas vezes não foram tirados do gancho para se fechar um negócio, conversar fiado ou fazer uma jura de amor.

 Eu sei, parece piegas. Mas é só para dizer que os smartphones de última geração usados hoje, talvez comprados depois de horas na fila de uma loja da Apple desde a madrugada, também acabarão um dia nas bancadas da feira da Gávea. Ou no lixo.

De eterno e definitivo, nem as juras de amor trocadas através deles.


Libero

As redes sociais, a dopamina e a dependência – Drauzio Varella

O cérebro humano é uma máquina que a seleção natural moldou para o aprendizado. Acontecimentos rotineiros não nos emocionam, somos ávidos por experiências novas que nos surpreendam de forma agradável.

Na evolução, foi desenvolvida uma rede complexa de mediadores químicos para reconhecer os estímulos ligados às sensações de prazer, com a finalidade de distingui-los daqueles inócuos e dos que nos causam mal-estar. Para o cérebro, o que dá prazer deve fazer bem para o funcionamento do organismo.

Esse mecanismo foi tão importante para a sobrevivência da nossa espécie que arquitetamos uma rede extensa de circuitos de neurônios e de mediadores químicos encarregados de reconhecer e transmitir as sensações de bem-estar e de prazer. Eles explicam por que gostamos tanto de alimentos saborosos, de temperaturas amenas e de relações sexuais.

Conectada aos circuitos envolvidos no reconhecimento dessas sensações, há outra rede de neurônios, incumbida de disparar os estímulos comportamentais necessários para irmos em busca da repetição daquilo que nos trouxe prazer.

Nossas ações são reguladas pelo equilíbrio (ou pela falta dele) entre essas duas circuitarias. Na depressão, por exemplo, a dificuldade em reconhecer os estímulos associados à alegria e à felicidade conduz à falta de motivação para ir em busca deles. Em sentido contrário estão as motivações que nos levam a tomar banho, bem como as que explicam o retorno do desejo sexual depois da abstinência.

A seleção natural, entretanto, não contava com a capacidade humana de subverter esse mecanismo natural por meio da administração de drogas psicoativas ou de comportamentos repetitivos que provocam prazer intenso, inatingível no cotidiano.

Ao cheirar cocaína, fumar maconha ou cigarro ou tomar café, ocorre liberação de diversos mediadores químicos que atuam nas sinapses, entre os quais a dopamina, a "molécula motivacional" por excelência. A explosão de prazer causada por eles ativa a circuitaria encarregada da busca para repeti-los. Esse mecanismo explica por que o usuário de cocaína continua repetindo a dose mesmo quando entra em "paranoia". Uma vez ativada a circuitaria da busca, o comportamento se repete ainda que o prazer tenha desaparecido.

O que as mídias sociais têm a ver com as drogas psicoativas?

Diversos estudos demonstraram que a dopamina é um neurotransmissor sensível aos estímulos das mídias digitais. Quando consumimos em série vídeos no YouTube, TikTok, Instagram, podcasts, ocorre liberação de dopamina nos centros de recompensa, os mesmos ativados pela cocaína, maconha e o cafezinho. Um "like", um post, uma imagem no Instagram ou uma dancinha no TikTok provocam pequenos picos de dopamina nas sinapses.

É claro que esses picos são muito mais baixos do que aqueles provocados pelas drogas psicoativas, porém são projetados pelos técnicos das plataformas para ativar os circuitos de recompensa de forma continuada e persistente.

Num mecanismo semelhante ao da abstinência de cocaína, a liberação exagerada de dopamina é seguida por um período em que sua produção fica tão baixa que surge ansiedade e depressão. O usuário, então, corre atrás do celular, não para ficar feliz, mas para se livrar dos sintomas da abstinência. Por isso, caro leitor, você fica com aquela sensação de "vazio" depois de passar horas vendo imagens e mensagens postadas na tela.

As mídias sociais quebram o equilíbrio que existe entre prazer e recompensa, quando os picos de dopamina são obtidos por meios naturais, no decorrer do dia: as refeições, o encontro com amigos, o sorriso da criança, o livro.

As crianças e os adolescentes são as maiores vítimas desse comportamento problemático. Ficam de tal modo dependentes das redes sociais que são capazes de passar o dia inteiro diante da tela, em busca do prazer que já nem sentem na intensidade de antes. Seus circuitos de recompensa foram sequestrados por um hábito de aparência inocente

Do ponto de vista molecular, não é parecido com o que acontece na dependência de drogas ou no jogo?

O impacto deletério a curto prazo da tecnologia digital nas vidas de crianças e adolescentes não é pequeno: isolamento social, vida sedentária, obesidade, desinteresse pelos livros. E, no futuro? Não temos a menor ideia.



Um controlador de maridos - Humberto Werneck

Humilhado desde sempre pelos manuais de instrução, dos mais impenetráveis aos mais elementares, é com alívio que finalmente encontro um que não tripudia sobre os meus ineptos neurônios, capazes de acionar, quando muito, uma torradeira e um ventilador.
O que tenho sob os olhos é um manual para bem utilizar o telefone. Não o meu já idoso iPhone 5, cujos recursos ainda estou longe de dominar além do básico. O objeto, aqui, é uma geringonça centenária ou quase: os telefones que havia nas residências de nossos avós ou bisavós, daí para baixo, na década de 20, e que eram então, em matéria de tecnologia das comunicações, o dernier cri, ou melhor, o derradeiro tilintar. Com o risco de você me situar na geração do Niemeyer e da dona Canô, confesso que topei ainda, na longínqua infância, com aparelhos como aqueles, e não foi, ai de mim, em algum museu da telefonia. Cheguei a ver pessoas se esgoelando no bocal de alguns deles - haste plantada no corpo de um tubo negro que uma das mãos sustinha no ar, na vertical, enquanto a outra mantinha um tubo menor grudado à orelha. Estava-se longe ainda dos avanços que tornariam possível a coabitação de bocal e fone.
Sou testemunha, na verdade, da utilização de estrovenga ainda mais antediluviana, os formidandos aparelhos telefônicos que havia na fazenda de minha família. Consistia, aqueles trambolhos, em avantajadas caixas retangulares de madeira afixadas na parede, em cujo abdome, digamos assim, se alteava, qual falo em riste, uma haste com o bocal.
Num dos lados da caixa se pendurava o fone, semelhante ao do aparelho já descrito; no outro, ficava a manivela a ser girada para chamar a telefonista, mediadora incontornável de toda e qualquer comunicação telefônica. Você queria falar com a namorada? Nada feito sem a operadora, que apanhava o número e fazia a chamada. Só no final dos anos 20, começo dos 30, viriam - com exceção de uns poucos redutos do passado, como a nossa fazenda - os telefones automáticos, assunto para mais adiante.
Por ora, fiquemos neste manual impresso nas páginas de um desmilinguido catálogo da Rio de Janeiro & S. Paulo Telephone Company, contendo instruções hoje risíveis (lembra do Julio Cortázar ensinando a chorar ou a subir escada?), mas que, à época, eram indispensáveis para usuários no mesmo patamar cognitivo deste cronista.
Para recompor o clima, vale transcrever o passo a passo na ortografia então vigente. Começando pelo começo, recomendava-se consulta à “Lista de Assignantes” para “obter o numero do telephone com o qual se deseja falar”. Isso feito, orientava o manual, “dê-se uma volta à manivela, leve-se o phone ao ouvido e espere-se que a telephonista diga: ‘Numero, faz favor?’” Sim, “por favor”. Comunicação e boas maneiras!
No passo seguinte, deveria o usuário falar “diretamente no boccal do telephone, com os labios proximos ao mesmo”, se necessário recorrendo a gravuras elucidativas, impressas ao lado, da “maneira acertada” e da “maneira impropria” de telefonar. “Fale-se devagar e distinctamente, com tom de voz natural”, orienta o texto. Nada de pedir à operadora que ligue, por exemplo, para o 2627 (o telefone de meus avós Dora e Hugo no começo dos anos 30), e sim para o dois-meia dúzia-dois-sete, com o cuidado de pingar hifens entre as sílabas e solicitar que a atendente repita cada algarismo, num enunciado que o usuário deveria ir pontuando com a palavra “direito”. Depois, era encarar uma espera que, em se tratando de ligações interurbanas, mesmo para a cidade ali ao lado, poderia se estender por horas.
Pode-se imaginar o solavanco benigno que significou a chegada do telefone automático, novidade que pôs fim, nas ligações locais, à intermediação de uma telefonista. Em Belo Horizonte (ou, como disse aquela personagem de Rubem Braga, “Belorizontem”), a revolução desembarcou às 14 horas do dia 23 de julho de 1931, conforme registrou no Minas Gerais o atento cronista Barba Azul - um moço de 28 anos, Carlos Drummond de Andrade, que meses antes estreara em livro com Alguma Poesia.
A cidade, escreveu ele, “diverte-se com o telefone automático, achando a coisa mais engraçada do mundo escutar a voz que veio sozinha, sem que ninguém ligasse”. Uma febre: “Há um contentamento infantil nas pessoas que inauguraram ontem oficialmente o seu telefone particular, discando para todas as pessoas conhecidas”.
No espaço de poucos dias, Barba Azul voltou ao assunto duas vezes. Numa delas, para falar de um insuspeitado inconveniente do telefone automático, ferramenta à disposição de esposas para controlar os passos do marido. “O pobre homem não pode mais distrair-se e, em vez de ir para o trabalho cotidiano, ficar vendo as mulheres que passam, nesse mundo efêmero, pelas calçadas da Avenida”, reclamou o cronista - e propôs que se incluísse no regulamento da companhia um artigo determinando que o telefone só poderia ser utilizado para “fins úteis”, entre os quais por certo não figurava “o controle dos maridos”.
Barba Azul dedicou crônica também à novidade, instantaneamente tornada praga, dos trotes telefônicos, molecagem inviável no reinado das telefonistas. Uma gente mal-educada, denunciou, estava ligando “para a residência de cavalheiros respeitáveis, na ausência destes, para comunicar às suas respectivas esposas certos detalhes da vida dos mesmos”. Tem cabimento? “Proponho que se deixe de achar graça nos trotes telefônicos”, arrematou o cronista - logo ele, Carlos Drummond de Andrade, que, como se sabe, com todo aquele ar sisudo, iria pela vida afora, idade madura adentro, disputar com outro moleque, o amigo Fernando Sabino, o título de campeão na arte de passar trotes.

Alpino

Não compartilhe - Marcos Piangers

Meu amigo Beto estava no metrô de Tóquio em 2009 e viu uma cena bizarra: todas as pessoas do vagão, sem exceção, estavam olhando para seus aparelhos celulares. Era uma cena tão ridícula que o Beto tirou uma selfie. Na foto, a cara dele de estranhamento cômico rodeada de uns 15 japoneses viciados na tela do telefone. Em 2009, o Beto achava que aquilo era impensável de acontecer no Brasil. Beto, o ingênuo.

Em todos os lugares do mundo, as pessoas estão olhando para seus celulares. Viramos Tóquio. Temos sempre algo acontecendo na nossa tela de bolso. Gastamos mais tempo em aplicativos que nos deprimem do que em aplicativos que nos colocam pra cima. Trocamos viagens nossas por viagens de outras pessoas. Perdemos um pôr do sol real na nossa frente porque estávamos olhando um outro pôr do sol no Instagram.

Essa coisa nos viciou. Alguns amigos meus não sabem nem a cor dos olhos dos filhos. "Só sei que esse é o moreno, e aquele é o loirinho. Eles estão sempre olhando pro iPad, então só dá pra reconhecer pela cor do cabelo." É a primeira coisa que pegamos pela manhã. É a última coisa que largamos de noite. É pra onde estamos olhando enquanto a vida acontece. Ele nos consola com curtidas e comentários. Nos tira da solidão que criamos pra nós mesmos.

Essa é uma ferramenta fantástica que você tem na mão. Podemos escrever textos, fazer filmes, aprender uma nova língua usando apenas aplicativos. Mas, na maior parte do tempo, é isso: polegar empurrando a vida pra cima, timeline que nunca acaba. Dois cliques na foto. Próxima. Dois cliques na foto. Próxima.

Apague agora os aplicativos de jogos. Esconda os aplicativos e as redes sociais em uma pasta. Desabilite todas as notificações. Saia dos grupos de WhatsApp. Coloque em modo avião quando estiver com amigos e família.


Comece a aprender idiomas e fazer cursos online. Baixe um app de meditação. Deixe sempre no silencioso. Não curta este post, se estiver lendo na internet. Não compartilhe. Deixe o celular carregando em outro cômodo. Ou melhor, deixe acabar a bateria. Desligue isso. Aperte o botão ali do lado. Segure por alguns segundos. Pronto. Você está livre.



DAIQUIRI      CACO GALHARDO




Duke

Cigarro que fala  - Cláudia Laitano

Fui uma fumante pouco convicta durante alguns anos. Gostava de fumar em situações sociais, no tempo em que quase ninguém achava estranho se você acendia um cigarro em um lugar fechado, e de vez em quando no trabalho – nunca em casa. No mundo dos fumantes, eu era uma amadora.

Mas não faltavam fumantes pesos-pesados para sustentar a indústria à base de uma ou duas carteiras por dia: professores fumavam enquanto escreviam no quadro-negro, médicos fumavam enquanto alertavam o paciente sobre os malefícios do cigarro, mães fumavam com bebês no colo ou na barriga. Até os anos 80, fumava-se como se não houvesse amanhã – ou câncer de pulmão. E eu fumava porque todo mundo fumava.

Pra minha sorte, todas as vezes em que decidi parar de fumar – na gravidez, por exemplo –, largava o cigarro sem qualquer crise de abstinência, e portanto não foi nenhum esforço deixar meu protovício para trás. A certa altura, os cigarros simplesmente foram ficando cada vez mais raros – junto com os cachorros-quentes, as batatas fritas e as festas que acabavam às cinco da manhã. Não exatamente larguei o cigarro, foi ele que me trocou por uma mulher mais nova.

Não sinto a menor falta da nicotina, mas de vez em quando tenho uma certa nostalgia do cigarro como escudo para interações sociais desconfortáveis. Se você estava sozinho, deslocado, tentando chamar a atenção de alguém ou muito preocupado com a opinião que os outros estavam fazendo a seu respeito, o cigarro definitivamente não resolvia seu problema, mas distraía sua atenção e dava a ilusória sensação de que você havia desaparecido na fumaça por alguns instantes.

Esse efeito “não olhe para mim, estou concentrado no meu cigarro” desmanchou-se no ar – junto com os cinzeiros e os homens de Marlboro. Hoje, o fumante é um proscrito, e em alguns ambientes fumar chama mais atenção do que declamar um poema de Olavo Bilac com a mão no peito. Adeus, tabaco-camuflagem.

O substituto não químico do cigarro, porém, não demorou a aparecer. Em festas, velórios, paradas de ônibus, elevadores ou teatros, o celular tornou-se o grande companheiro dos minutos mortos ou ansiosos. Como acontecia com o cigarro, há pessoas com mais dificuldade do que outras para moderar o consumo – e há quem reclame da falta de modos dos dependentes pesados. Há usuários amadores, que mantêm o telefone por perto para o caso de uma ligação ou uma consulta rápida no Google, e há os usuários “duas carteiras por dia”, que conversam, checam e-mails, assistem a vídeos – tudo isso independentemente da paisagem, da ocasião ou da companhia.
                                                                                                                                         Houve um tempo em que não apenas os ogros fumavam no elevador – o que hoje soa tão aceitável quanto despejar lixo no quintal do vizinho. O que parecia normal foi sendo regulado, aos poucos, para facilitar a convivência cordial e civilizada entre as pessoas. Há sinais de que a “abdução” eletrônica também vai acabar sendo regulada no sentido de diminuir a distância e a desatenção com o que/quem está em volta. Talvez ignorar uma pessoa de carne e osso a sua frente para mergulhar em uma realidade alternativa seja lembrado, no futuro, como o equivalente social da baforada no nariz alheio. Ou não.




Galvão Bertazzi





Os perigos da tecnologia  - David Coimbra

Toda essa tecnologia. E certas coisas ainda acontecem. Quer ver? Celular. Ainda outro dia eu e meu amigo Degô estávamos diante de copos de chope dourados como a Aline Moraes e fui acomodar o celular no bolso da minha elegante camisa verde-sargento e o Degô:

– Cuidado! O celular assim perto do peito pode alterar o ritmo do coração! Pode dar enfarte!

Assustei-me. Bem que andava sentindo umas palpitações estranhas. Resolvi colocar no bolso das calças, mas lembrei que alguns juram que as ondas do celular fritam o cérebro.

Não que meu cérebro se situe nas proximidades do bolso da calça, mas pense: se as ondas do celular fritam o cérebro, podem fritar outras partes importantes e sensíveis do corpo humano. Tirei o celular daquelas cercanias e o deixei deitado na mesa, longe de mim.

Quando dirijo também mantenho o celular à distância e no silencioso. Porque, se toca e o atendo, posso bater o carro. Ou levar uma multa de um dos atentos azuizinhos acampanados atrás das árvores.

Se vou entrar em um posto de gasolina, faço questão de desligar o celular. Vi, acho que no You Tube, o filme de um cara que foi atender ao celular em frente a uma bomba de combustível e o celular gerou uma faísca que fez explodir toda a gasolina armazenada no posto, o cara, o frentista e a quadra inteira. Jesus Cristo!

Mas o celular me deixa nervoso mesmo, mesmo é em aviões. Há 200 pessoas lá dentro, todas com seus celulares. O piloto avisa com insistência que não podemos ligá-los. Mas e se algum desses fominhas por celular, tipo o Potter, o Professor Juninho ou a Mariana Bertolucci, e se um deles estiver no voo e resolver ligar aquele troço? Sabe como eles são... Eles não resistem a um celular. Aí as malditas ondas do celular vão embaralhar o computador de bordo e o avião vai cair. Comigo dentro! Que mantive o meu celular prudentemente desligado!

O Professor Juninho e a Mariana não estarão no voo para a África, agora segunda-feira, mas o Potter estará. Espero que tirem o celular do Potter no aeroporto.

Como é que eles deixam a gente andar com celular por aí? Celular é um troço perigosíssimo. É menos arriscado portar uma granada do que um celular.

Isso é a tecnologia. Você pensa que vai facilitar, não facilita; dificulta. Assim a tal bola da Copa. A Jabulani. Toda tecnológica e, segundo os jogadores, sai de revesgueio quando chutada. Que saudade das velhas bolas de couro número 5. Que saudade do telefone de disco, que não fazia mal a ninguém.

André Dahmer







Parece cocaína...- Luli Radfahrer

mas é só Facebook, poderia ter dito o Renato Russo. Muitos temores, continuaria ele, nascem do cansaço e da solidão.
É fácil criticar a aparente falta de educação de muitos usuários de mídias sociais que, desconectados do mundo à sua volta, passam os dias plugados. O problema, no entanto, pode ser mais complexo do que aparenta.
Há bastante mérito nas redes. Elas aproximam amigos distantes no tempo ou espaço e promovem belos reencontros. Mas esse uso representa uma parcela muito pequena do conteúdo que circula por elas. Ninguém fala tanto com velhos amigos ou primos distantes.
Para estimular a participação de seus usuários, diversos recursos psicológicos são usados para gerar prazer e criar gratificação instantânea em seus usuários. É sempre bom lembrar que o Facebook não é gratuito. Como a TV, seu faturamento depende da publicação de anúncios. Quanto maior o tempo empregado na rede, mais lucrativo é o usuário.
Para maximizar os lucros muitos criam um clima de cassino, de que é difícil de escapar. O apelo é tão forte que até gente saudável muitas vezes sente que passa muito mais tempo na rede do que gostaria. É comum a frustração de quem tenta cortar o uso ou dar só uma olhadela no que está acontecendo para perceber, um bom tempo depois, que ficou presa a joguinhos e banalidades.
Da mesma forma que acontece com outras atividades e substâncias recreativas, é preciso compreender os limites do consumo saudável. Em excesso, os estímulos das redes sociais promovem distorções na dinâmica de recompensa cerebral, criando uma dependência psíquica similar à de muitos entorpecentes.
São comuns, por exemplo, o aumento da tolerância ao estímulo, em que se torna necessário um uso cada vez maior ou mais intenso para gerar o mesmo prazer. Quando privados do acesso à rede, muitos apresentam graus variados de síndrome de abstinência, não vendo valor em mais nada e fazendo de tudo para voltar a ela.
Sonolentos, distraídos, exibicionistas, egocêntricos, muitos dos usuários mais ativos parecem verdadeiros autômatos. Mais acostumados a interagir, compartilhar e curtir on-line, é comum vê-los desconfortáveis quando falam com alguém pelo telefone ou –pior– ao vivo. Isolados, usam a rede para fugir do tédio ou das responsabilidades, abandonam as atividades de que gostavam e se sentem "vazios" sem a rede. Tudo o que querem é passar mais e mais tempo por lá, mesmo que isso envolva o prejuízo de relacionamentos e atividades. Quando questionados, se irritam e alegam intolerância e incompreensão, dizendo que são capazes de estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo.
Mas ao contrário das dependências químicas, é possível se livrar desse ciclo infinito de interações vazias e estabelecer um uso moderado da rede com um pouco de disciplina. Um primeiro passo pode ser o de se perguntar o que se ganha de cada interação.
Se a resposta for nula ou difícil, o melhor é trocar de atividade recreativa. Quem está cansado demais para ler um livro pode ver um vídeo ou ouvir música. Quem sente saudades dos amigos pode pegar o telefone e trocar uma ideia com eles. Quem precisa refrescar a cabeça pode esquecer o telefone na mesa e sair para dar uma volta no quarteirão.
Qualquer uma dessas atividades é muito mais saudável e construtiva do que ficar curvado sobre a telinha, escravo das curtidas, preso à timeline, ansioso por novas interações. Na pior das hipóteses podem servir para que se tenha uma coisa nova para dizer quando voltar para o Facebook.






Rafael Corrêa


Orlando Pedroso


Jaguar 






Moacir “Moa” Knorr Guterres





Celulares - Luis Fernando Verissimo

Eles fazem de tudo. Só falta falar


Cinco numa mesa de bar, comparando seus celulares. Um diz:

– O meu não só mostra quem está chamando como avisa se for um chato.

– O meu – diz outro – acessa a Internet, faz café, dá palpites para jogar na Sena e o tempo que faz no Himalaia.

O terceiro:

– O meu é gravador, relógio, câmera fotográfica e granada de mão, e ainda faz logaritmos.

O quarto:

– O meu codifica, decodifica e toca o hino nacional.

Os outros três se intercalam:

– O meu imita passarinho e dá o diretor, os roteiristas e o elenco completo de 17 mil filmes.

– O meu dá a escalação de todas as seleções do mundo desde que inventaram o futebol e o resumo de todas as óperas.

– O meu é despertador, defibrilador e termômetro, além de mostrar imagens de Marte.

– E o meu? E o meu? – diz o quinto, que até então permanecera em silêncio.

– O seu o que faz?

– O meu – diz o quinto – me ama.



Recruta Zero - Mort Walker





Fiu-fiu - Luis Fernando Verissimo

Lançaram agora um celular à prova d’água, que você pode usar no chuveiro. Ou em qualquer outro lugar embaixo d’água. No mar, por exemplo.
– Bem, não me espere para o jantar...
– Onde você está?
– Sabe a nossa pesca submarina? – O que houve?
– Pensei que fosse uma garoupa e era um tubarão. E ele está vindo na minha direção.
– Você ainda está embaixo d’água?!
– Estou. – E o seu arpão? – O tubarão engoliu!
– Ligue para a Guarda Costeira!
São cada vez mais raros os lugares em que você pode se ver livre de celulares, e agora nem as piscinas estão seguras.
Os celulares são práticos e se tornaram indispensáveis, eu sei, mas empobreceram a vida social. Existe coisa mais melancólica do que uma mesa com quatro pessoas, num restaurante, em que três estão dedilhando seus smartphones e uma está falando sozinha? Ou um casal em outra mesa, os dois mergulhados nos respectivos celulares sem nem se olharem, ou que dirá se falarem – a não ser que estejam trocando mensagens silenciosas entre si, o que é ainda mais triste?
Os celulares podem ser perigosos de várias maneiras, mesmo que não derretam o cérebro como andou se espalhando há algum tempo. Imagino uma velhinha que ganhou um celular dos netos sem que estes se dessem ao trabalho de explicar seu funcionamento para a vovó.
Não contaram, por exemplo, que o celular dado assovia quando recebe uma mensagem. É um assovio humano, um nítido fiu-fiu avisando que alguém ligou, e que pode soar a qualquer hora do dia ou da noite.
E imagino a vovó, que mora sozinha, dormindo e, de repente, acordando com o assovio. Um fiu-fiu no meio da noite! A vovó, se não morrer imediatamente do coração, pode ficar apavorada. Quem está lá? Um ladrão ou um fantasma assoviador? E o assovio tem algo de galante.
A vovó pode muito bem sair da cama, sem saber se está acordada ou sonhando, e caminhar na direção do fiu-fiu sedutor, como se tivessem vindo buscá-la. Alguém pensou nas vovós solitárias quando inventou o assovio?
O fato é que não há mais refúgio. Nem castelos anti-smartphones com um fosso em volta. Eles agora podem atravessar o fosso.












Vida antenada – João Ubaldo Ribeiro

Uma vez uma repórter me entrevistou para uma matéria, que não sei nem se saiu, sobre a esquisitíssima variedade de gente, à qual pertenço, que não tem celular. Acho que ela foi embora sem se conformar. Os meninos do futuro próximo, claro, receberão implantes de chips de celulares e terão seus cérebros conectados ao wi-fi municipal, serviço obrigatório para qualquer prefeitura. Diante desta perspectiva, é normal que, num mundo em que, cada vez mais, as pessoas se tornam apêndices de seus i-phones, tablets, óculos Google e similares, a moça estranhe um maluco que persiste em não ter celular. Pelo menos eu lhe devia fornecer alguma explicação ideológica ou psicológica, tais como pertencer a um aguerrido grupo de budistas ativistas e ter delírio de perseguição ou fobia por qualquer novidade eletrônica.
Que eu saiba, não é nada disso. Não tenho raiva nenhuma de aparelhos eletrônicos, trabalho no computador até com certa proficiência e fui um dos primeiros escritores brasileiros a usar um processador de texto, no tempo em que nem internet havia e um HD de um (sic) megabyte, chamado de “winchester”, era considerado uma extravagância de milionários americanos e talvez mentira de viajantes. De fato, nunca fui muito de falar ao telefone e pode ser que tenha uns dois traumas de infância. O telefone da família, quando moramos em Aracaju, ficava no corredor de nosso casarão, ocupando bastante espaço. O aparelho era uma grande caixa preta com manivela e, embaixo, duas pilhas dessas de lanterna, só que enormes. Eu achava que aquilo ia explodir e preferia evitar usar o telefone. Minha mãe, que era baiana (em Salvador, nessa época, já havia telefones automáticos de quatro números!), adorava.
— Alô! Meia-três-um! — cantarolava ela, atendendo a uma chamada e dando o nosso número.
— Ih, lá vai mamãe — pensava eu, aguardando a explosão.
É possível, mas, de uns tempos para cá, olhando em torno, me convenci de que a razão para eu não querer celular é que, até hoje, nunca precisei, mas tenho certeza de que, no dia em que tiver um, não vou conseguir passar sem ele dentro de poucos dias. Daí para ingressar sem retorno num mundo — este, sim, muito louco — a que me recuso a pertencer, o mundo dos viciados e dependentes dos celulares, é um passo a que não quero arriscar-me. Acho que a gente nem nota mais as maluquices que esse negócio gerou, desde a obsessão em conhecer cada um dos milhares de aplicativos oferecidos e em ver sempre que mais está sendo oferecido e que perspectivas se abrem nesse cipoal infinito, à consolidação do que parece se delinear no futuro, a Era da Promiscuidade. Acabou-se a intimidade, até o recato e o pudor são valores do passado, e o celular deixa isto muito visível, se não for um dos responsáveis principais.
No tempo do telefone fixo, procurava-se uma certa discrição, quando, mesmo em casa, se conversava sobre um assunto íntimo ou sigiloso. Mas o celular acabou com isso e hoje, em elevadores, salas de espera, filas, ônibus, corredores de avião ou onde mais se aglomere gente, partilhamos de segredos e confidências antes mantidos a sete chaves. Isso, no Brasil, é ainda agravado por conexões péssimas, que obrigam os interlocutores a gritar. Como na história (mudo os nomes, claro) do Maurício, amante de uma jovem senhora sentada quase a meu lado, na sala de espera do oculista. Maurício um patente sem-vergonha, que não somente falhara em sua promessa de largar a mulher, Aninha, para viver com Eunice (a jovem amante), como paquerara com sucesso a irmã mais nova de Eunice, a Clarice, aquela traíra de carinha inocente, o que tinha de lourinha, tinha de falsa, procurando o homem da irmã até no escritório. A reprovação da conduta solerte de Maurício e a solidariedade geral podiam ser sentidas quase palpavelmente, pelo menos em todo o público feminino da plateia. Entre os homens, creio ter percebido em alguns um traçozinho de inveja do Maurício. Daqui a pouco, esse tipo de coisa se estende a todo convívio social e a promiscuidade passa a ser normal, ou até mesmo esperada.
À mesa dos botecos, por vezes quase sem fôlego, alguns tripulam simultaneamente dois ou três celulares, ou um celular e um tablet. Um problemazinho encontrado reflete-se em suas feições, subitamente crispadas e ansiosas, quase em pânico. Franzem o rosto, mordem os lábios, movimentam freneticamente os dedos pela tela e, afinal, uma luz ilumina seu rosto, fim do tormento: ele está em linha, afinal, não fora do ar, como temia. Outro dia, num aeroporto, uma moça, por sinal muito bonitinha, sentou-se à minha frente e passou a falar no celular, sem levar o aparelho ao ouvido, mas conversando como se estivesse diante de uma pessoa. Falava, falava e, quando desligava, imediatamente fazia nova ligação. Nas poucas vezes em que não conseguiu completar alguma e teve que ficar sem falar por um minuto ou dois, dava para ver sua angústia, parecia que ia perder o fôlego ou se atirar lá embaixo, devia ser insuportável, coitadinha.
E tudo o que se faz agora é fotografado, gravado ou filmado. Não bastam as câmeras de segurança que daqui a pouco estarão em toda parte. Os celulares não perdoam nada e, mesmo à distância, podem documentar o que alguém pense que está fazendo sem que ninguém veja ou saiba. Por certas conversas que eu tenho ouvido, também já fazem parte do equipamento sexual auxiliar — ou mesmo propulsor, quem sabe — de alguns. Antigamente, fazer certas fotos ou, pior ainda, filmes, era difícil, tinha-se que usar uma Polaroid ou coisa assim. Hoje a alta definição está ao alcance de todos e esse documentarismo peralta entrou em voga, é uma curtição especial. Claro, vai tudo parar na internet, é isso mesmo, é o futuro. No futuro, só existirá a internet






O substituto da vida - Ruy Castro

Folha de SP - 02/01/2016

Quando meu instrumento de trabalho era a máquina de escrever, eu me sentava a ela, punha uma folha de papel no rolo, escrevia o que tinha de escrever, tirava o papel, lia o que escrevera, aplicava a caneta sobre os xxxxxxxx ou fazia eventuais emendas e, se fosse o caso, batia o texto a limpo. Relia-o para ver se era aquilo mesmo, fechava a máquina, entregava a matéria e ia à vida.
Se trabalhasse num jornal, isso incluiria discutir futebol com o pessoal da editoria de esporte, paquerar a diagramadora do caderno de turismo, ir à esquina comer um pastel ou dar uma fugida ao cinema à tarde –em 1968, escapei do "Correio da Manhã", na Lapa, para assistir à primeira sessão de "2001" no dia da estreia, em Copacabana, e voltei maravilhado à Redação para contar a José Lino Grünewald.
Se já trabalhasse em casa, ao terminar de escrever eu fechava a máquina e abria um livro, escutava um disco, dava um pulo rapidinho à praia, ia ao Centro da cidade varejar sebos ou fazia uma matinê com uma namorada. Só reabria a máquina no dia seguinte.
Hoje, diante do computador, termino de produzir um texto, vou à lista de mensagens para saber quem me escreveu, deleto mensagens inúteis, respondo às que precisam de resposta, eu próprio mando mensagens inúteis, entro em jornais e revistas online, interesso-me por várias matérias e vou abrindo-as uma a uma. Quando me dou conta, já é noite lá fora e não saí da frente da tela.
Com o smartphone seria pior ainda. Ele substituiu a caneta, o bloco, a agenda, o telefone, a banca de jornais, a máquina fotográfica, o álbum de fotos, a câmera de cinema, o DVD, o correio, a secretária eletrônica, o relógio de pulso, o despertador, o gravador, o rádio, a TV, o CD, a bússola, os mapas, a vida. É por isto que nem lhe chego perto –temo que ele me substitua também.

Fábio Moon - Gabriel Bá



Cellus

André Dahmer
Nani 

Rafael Corrêa



Linguagem da mão – Milton Hatoum


Uma amiga me disse que em alguns cursos da Universidade de Princeton o celular e o iPad foram proibidos porque os estudantes filmavam e fotografavam as aulas, ou simplesmente brincavam com joguinhos eletrônicos. A proibição do uso de aparelhos eletrônicos em sala de aula numa das maiores universidades dos Estados Unidos e do mundo não é nada desprezível. O celular na palma da mão desconcentra o estudante e abole uma prática antiga: a caligrafia.
Dos milenares hieróglifos egípcios gravados em pedra e palavras escritas em pergaminho à mais recente prescrição médica, a caligrafia tem uma longa história. Mas essa história - que marca uma forte relação da palavra com o gesto da mão - parece fenecer com o advento do minúsculo teclado e sua tela.
Lembro uma entrevista radiofônica com Roland Barthes, em que o grande crítico francês dizia que as correções das provas tipográficas dos romances de Balzac pareciam fogos de artifícios. É uma bela imagem do efeito estético da caligrafia no papel impresso, da relação do corpo com a escrita, as letras que vêm da mão, e não da máquina. Quando pude ver essas páginas numa exposição de manuscritos, fiquei impressionado com a metáfora precisa de Barthes, e admirado com a obsessão de Balzac em acrescentar, cortar e substituir palavras e frases, e alterar a pontuação, como se a respiração e o tempo da leitura fossem - como de fato são - importantes para o ritmo da escrita. O autor de Ilusões Perdidas não poupava esforço para alcançar o que desejava expressar, e esse empenho tão grande acabou por exauri-lo quando escrevia César Birotteau, seu último romance.
Mas há beleza também na caligrafia torta e hesitante de uma criança, numa carta de amor escrita a lápis ou à tinta, na mensagem pintada à mão no para-choque de um caminhão, nas paredes de banheiros públicos, no muro grafitado da cidade poluída, nada impoluta. Quem não terá lido e anotado frases de escritores anônimos, que expressam sentimentos e ideias na traseira de veículos ou nos muros de uma cidade? Frases como “Já chegamos no fundão do poço escuro” e “Aquele Padilha lá de Brasília rima com quê?”, ambas escritas à mão, parecem tão atuais…
A primeira frase, escrita na traseira de um caminhão, é uma variante popular de um verso de Dante; a segunda, um desabafo de um brasileiro que foi se aliviar num banheiro asfixiante de tanto fedor.
Num de seus poemas memoráveis (O Sobrevivente), Carlos Drummond de Andrade escreveu à mão e depois datilografou: “Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples. / Se você quer fumar um charuto aperte um botão”.
Se você quer prestar atenção a uma aula, não use uma máquina nem se distraia com ela. Isso é o que parece dizer a seus alunos a Universidade de Princeton e outras universidades e escolas.
Na mão que move a escrita há um gesto corporal atávico, um desejo da nossa ancestralidade, que a maquininha subtrai, ou até mesmo anula. Ainda escrevo alguns textos à mão, antes de digitá-los no computador. No trabalho diário de um jornalista, isso é quase impossível, mas na escrita de uma crônica, pego a caneta e o papel e exercito minha pobre caligrafia.

Talvez eu seja o antepenúltimo dinossauro. Mal escrevo essa palavra, vejo um dos minúsculos seres que se originaram de um dinossauro emplumado. É um pássaro que desconheço; pousou num galho do manacá florido, e seu canto misterioso nesta tarde fria e ensolarada me remete ao livro A Linguagem dos Pássaros, escrito no século 12 pelo grande poeta persa Farid Ud-din Attar. Nele, a caligrafia é sinônimo de “beleza da escrita, linguagem da mão e nobreza do sentimento”.










Má educação e celular – Walcyr Carrasco 

Uma conhecida convidou os quatro netos pré-adolescentes para lanchar. Queria passar um tempo com eles, como fazem as avós. Sentaram-se numa lanchonete. Pediram sanduíches e refrigerantes. Daí, os quatro sacaram os celulares. Ficaram todo o tempo trocando mensagens com amigos, rindo e se divertindo. Com cara de mamão murcho, a avó esperou alguma oportunidade de bater papo. Não houve. Agora, ela já prometeu:

– Desisti. Não saio mais com meus netos.

Cada vez mais as pessoas “abandonam” os outros para viver num mundo de relações via celular. Às vezes de maneira assustadora. Vou muito para o Rio de Janeiro, sem carro. No meu trajeto, costumo escolher a Avenida Niemeyer, cuja vista é linda. Mas é cheia de curvas. Durante o trajeto, preciso me acalmar e recitar o mantra “om... ommmm” quando os motoristas atendem seus celulares. Dá medo, com o abismo pela frente! A falta de educação é dos dois lados. Quem liga, se não é atendido, continua tocando sem parar. O motorista muitas vezes atende e diz que não dá para falar. A pessoa do outro lado nem liga e continua o assunto. Alguns atores que eu conheço estão detonando suas carreiras. Ficam no WhatsApp até o momento de gravar. Atuar exige concentração, “entrar” no personagem. Se a pessoa “conversa” por mensagens até o momento exato de interpretar, fará pior. Está com a cabeça em outro lugar.

A praga atingiu até o setor de serviços. Dia destes estava no caixa de uma livraria. A mocinha passava meus livros e revistas com displicência enquanto falava ao celular. De repente, se confundiu. Teve de passar tudo de novo. Desligou. Voltou ao trabalho, mas aí o celular tocou e... a fila atrás de mim só aumentava. O máximo que ouvi da parte dela foi:

– Desculpa.

Tocou de novo, atendeu, tentando colocar meus livros numa sacolinha com uma única mão.

Em certos almoços, mesmo de negócios, é impossível tratar do assunto que importa. O interlocutor escolhe o prato com a orelha no celular. Quando desliga, abre para verificar e-mails. Responde. Pacientemente espero. Iniciamos o papo que motivou o almoço. O celular toca novamente. Dá vontade de levantar da mesa e ir embora. Não posso, seria falta de educação. Mas não é pior ficar como espectador enquanto a pessoa resolve suas coisas pelo celular, sem dar continuidade na conversa?

Também adoro um celular. Tenho amigos no exterior e trocamos mensagens diariamente. Mas faço isso quando estou sozinho. Há também soluções rápidas, pessoais e profissionais onde ele ajuda e muito! Mas hummm.... do ponto de vista profissional, nem sei se é tão bom assim. Celular não tem hora. Invade sem pedir permissão. É uma decisão difícil não atender o telefonema de um chefe ou de alguém importante no trabalho. Ou seja, a gente trabalha 24 horas direto! Há também quem chame durante uma reunião de trabalho importante. E, como contei no caso do carro, continuam chamando mesmo sem ser atendidas, até tornar o papo profissional impossível. Finalmente, ouço.

– Dá licença, vou atender e encerrar logo esse assunto.

Faço cara de paisagem enquanto a pessoa discute algo que nada tem a ver comigo. Penso: seria melhor, muito melhor, não ter marcado reunião nenhuma. Mais fácil seria, sim, me impor através do celular, porque através dele entro na sala de alguém quando quero, sem marcar hora. O aparelhinho invade até situações íntimas. Se fosse só comigo, estaria traumatizado por me sentir pouco interessante. Mas sei de casos onde, entre um beijo e outro, um dos parceiros atende o celular. Para tudo, sai do clima. Quando termina a ligação, é preciso de um tempo para retomar. Mas aí, pode tocar novamente e... enfim, até nos momentos mais eróticos, o aparelhinho atrapalha.

Ainda sou daquele tempo de ter conversas francas e profundas, de olhar nos olhos. Hoje é quase impossível aprofundar-se nos olhos de alguém. Estão fixados na tela de seu modelo de última geração. Conheço algumas raras pessoas que se recusam (ainda!) a ter celular. Cada vez mais, se rendem. A vida ficou impossível sem ele. Eu descobri uma estratégia que sempre funciona, se quero realmente falar com alguém. Convido para jantar, por exemplo. Ela saca o celular. Pego o meu e envio uma mensagem para ela mesma, em frente a mim. Não falha. Seja quem for, acha divertidíssimo. E assim continuamos até o cafezinho. Sem palavras, mas trocando incríveis mensagens pelo celular. Todo mundo acha divertidíssimo.

Armandinho




Jean Galvão

Fernando Gonsales








Com quem conversamos? - Leandro Karnal

Quem nunca errou ao usar seu celular? Os puros absolutos podem jogar a primeira pedra nos pecadores do vale da morte da etiqueta digital. Luciana Caran e Thais Herédia lançaram o Manual dos Pecados Digitais com ilustrações de Maria Eugênia Longo. O texto é uma arma eficaz para que cada um de nós pare e pense a respeito dos exageros e grosserias da era digital.
O texto é curto e utilíssimo. Parece um alerta sobre uma velha parábola dos dois jovens peixes que, ao serem inquiridos por um mais velho sobre como estava a água, perguntam estupefatos: “O que é água”? A água é aquilo do qual não mais nos damos conta, de tão natural e onipresente. A água é o vício deformador que o mundo digital trouxe sem que as pessoas percebam. Perdemos todas as noções e limites no campo do uso do celular. 
Não irei descrever as muitas e boas reflexões do texto. As autoras analisam tanto as infrações éticas e desvios psicológicos causados pelo uso inadequado dos smartphones quanto algo que poucos estão conscientes: lavam as mãos e depois ficam manipulando na mesa do restaurante uma tela infectada. Único trecho do livro que revelarei: “Cada aparelhinho pode carregar até 23 mil fungos e bactérias, entre outras nojeiras. Uma única “sujeita”, a Staphylococcus aureus, aparece em quase metade dos smartphones no Brasil, segundo uma pesquisa da Unicamp. Imagine que as pessoas tocam os lábios e a boca até 25 vezes em 1 hora. Eca”. 
Em comportamentos errados não vale o argumento histórico ou sociológico, do estilo “sempre foi assim” ou “todo mundo faz assim”. O bom Aristóteles acredita na prática da virtude. O hábito é, segundo o filósofo, uma segunda natureza. Usos podem ser criados e eliminados. O celular é um objeto que lhe pertence. Deveria servir ao dono. Examine qualquer restaurante e retome a racionalidade e a humanidade: duas ou mais pessoas ao redor de uma mesa todas fixadas em uma tela e ignorando os que estão ali. É uma patologia, de verdade, um desvio, um vício terrível que esvazia o encontro. 
Não foi apenas o livro Manual dos Pecados Digitais que me trouxe à tona a reflexão sobre tais coisas. No final do ano, por imbecilidade absoluta minha, deixei o celular na poltrona do avião a caminho do Deserto do Atacama. Passei quase dez dias sem o aparelho. Senti falta, sim. Fiz fotos com meu tablet, porém, reconheço, li mais e contemplei mais a paisagem do que faria normalmente. Acima de tudo, percebi que o impulso de mandar fotos bonitas de lugares que conheci para muitas pessoas era algo a ser muito reduzido. Observe que você envia mensagens para pessoas que nunca reenviam nenhuma. Pense! Todos que recebem o fazem com alegria e desprendimento? Quem nunca responde estaria irritado ou até invejoso das suas experiências? Nos dois casos, valeria a pena enviar para tal pessoa? Quem são, de verdade, as pessoas mais importantes que realmente se alegram com você? É pouco provável que sejam muitas. 
No caso específico do celular, falta mãe na formação. Não é machismo: estou me referindo à figura materna, que pode ser exercida pela mãe, pelo pai, avós ou quaisquer responsáveis diretos na construção do aparelho psicológico de um indivíduo em seus anos formativos. Era essa “mãe” que insistia na duríssima tarefa de educar a criança: não fale de boca cheia, não use palito de dentes, diga obrigado... À custa de muitas repetições e reiterada insistência, muitas “mães” foram vitoriosas na sua resiliência incomparável. Depois, adultos, nosso superego interioriza essa voz “maternal”, estabelece os limites. O celular parece ter ficado fora dessa lista de virtudes a serem estimuladas, desse estímulo formativo, pois contaminou as “mães” e os filhos ao mesmo tempo. 
Ver mensagens a todo instante enquanto você está em um jantar com alguém é, sim, sempre, grosseria forte. Se você for um obstetra, isso será mais compreensível. Na maioria dos casos é pura e absoluta falta de educação. Fazer o que todos fazem é repetir o senso comum e nunca ser original pela gentileza. Em um mundo onde a busca de um diferencial é algo importante, imagine o impacto em um jantar de negócios ou afetivo de plena atenção na parte envolvida. 
De novo e mais uma vez: o mundo digital oferece muitos bons e úteis recursos para nossas vidas. Podemos aproveitar muitos. O resto é um vício, um engodo contemporâneo que provoca a falta de foco, um dos grandes entorpecentes da mente contemporânea. Celular virou um veneno de bolso, lento, deteriorando de forma lenta as relações, nublando a imagem de uma pessoa objetiva e até matando de verdade quando usado no trânsito. 
A pessoa com quem você está jantando não se importa? Minhas advertências são coisas de gente mais velha que ainda acha que comunicação deve ser olho no olho? Pode ser, mas resta minha pergunta curiosa. Se você não precisa estar com a pessoa que está sentada a sua frente, se fica com terceiros e quartos em mensagens e imagens e se dá ao aparelho a parte mais expressiva do seu tempo, por que sair? Por que estar com alguém que não está ali? Por que convidar alguém para torná-lo apenas testemunho silencioso da ação de polegares frenéticos?? Por que estar com quem você, de fato, não estará? A comunicação humana é complicada e o convívio um grande desafio. Entendo quem prefira a solidão ou o isolamento. Mas, como placebo, o celular ainda fica devendo muitas coisas. Ou simplesmente envelheci e o placebo seriam as pessoas reais? Pode ser. Já vivi bastante: minhas melhores lembranças afetivas nunca estiveram em um grupo de WhatsApp. É preciso ter esperança. 
Malvados - André Dahmer


















Adeus, Facebook - Gregorio Duvivier

Meu amor,
 escrevo pra dizer que acabou de vez. Pode ter certeza de que dói mais em mim do que em você. Afinal, foram tantas noites em claro, tantas tardes em que eu deveria estar trabalhando e passei do seu lado, tantas vídeos virais que descobrimos juntos. Era você que eu cumprimentava assim que abria os olhos.
Quando te conheci, estava vindo de um término complicado com o Orkut: uma relação que durou muito mais do que deveria. Aos poucos você foi me ganhando e quando vi estava pagando pra ter sua atenção. Doeu quando descobri que você vendia informações minhas e nunca me deu um centavo. Essa sua mania de guardar tudo: você sabe que isso não tá certo. Outro dia saí com o Snapchat, a gente se divertiu pra cacete, e no dia seguinte
ele não lembrava de nada. Que delícia.
 Hoje faz uma semana que a gente não se vê. Às vezes é estranho. As pessoas falam de você o tempo todo: na família, no trabalho, nas festinhas. Isso também mudou: antigamente você servia pra falar das festinhas. Hoje parece que as festinhas servem pra falar de você. Até minhas tias-avós estão obsessivas. Outra coisa: até hoje não entendi o que você tem contra mamilos femininos.
 Hoje percebo que o problema não sou eu, é você. É aquele mania de tocar vídeos que eu não pedi pra ver. É aquela sua mania de perguntar: "O que é que você está pensando?". Deixa eu pensar em paz, porra. Por sua causa, deixei de ler. Tentava abrir um livro e você não calava a boca: "Ei, olha pra cá! Tá rolando treta! Ta rolando nude!" Nenhuma obra da literatura pode competir com treta e com nude. Você sabe disso.
O término não foi bacana. Você me obrigou a dizer o motivo. "Tô perdendo tempo demais com você". E você: "Calma, a gente pode se ver menos, eu dou um jeito". E eu: "Você me faz uma pessoa mais triste". E você: "Eu vou melhorar. Desculpa. Fica. Se ficar, libero até mamilos femininos. Fica." Você não tem amor próprio, cara?
Quando viu que nada mais podia me convencer, você foi baixo. "Olha só esses amigos. Eles vão sentir sua falta." Não precisava insinuar que eles só são meus amigos por sua causa. Mesmo os amigos que eu conheci através de você sabem onde me achar: e já estão me achando. A gente não precisa mais de você.
Não vou pedir que você devolva as mil horas que você me tomou -e nunca deu. Só queria mesmo que você soubesse que sem você eu passo bem demais.
Sim, eu sei. Posso voltar pra você a hora que eu quiser. No hard feelings. Você não tem amor próprio, cara?




Benett







A gente não quer só comida, a gente quer postar e quer ganhar like – Gregorio Duvivier


Viva a internet. Antigamente, era preciso berrar, de preferência de cima de um montinho, aquilo que você queria tornar público. Se fosse um sermão, era preciso descolar uma montanha. Ainda assim, não se conseguia angariar muita gente. Jesus, por exemplo, foi o "influencer" mais popular da era pré-digital e só conseguiu juntar 11 seguidores em vida. Parece que tinha um décimo segundo, mas deu unfollow.
A internet operou uma revolução. Qualquer um consegue atingir o mundo inteiro. "Quantos talentos desconhecidos vão surgir!", pensou-se. "Quanta ciência! Quanta poesia!" Ledo engano.
"Desde que meu bebê nasceu não consegui tempo pra fazer cocô!", postou hoje de manhã a mãe de um recém nascido. "Sem tempo pra nada!" Embora não tenha conseguido tempo pra fazer cocô, vale notar que ela conseguiu postar essa frase no Facebook e, em seguida, responder aos comentários, o que deixa muito claro quais são as prioridades da minha geração.
Sim, faço parte dela, e minhas redes sociais não me deixam negar. Acabei de postar no Instagram um pedaço do meu sapato pisando sobre um azulejo com a legenda "o chão que eu piso". O que eu quero dizer com essa estupidez? Menor ideia. Mas acho que tem menos a ver com o que a gente quer dizer e mais com o que a gente quer sentir.
Alguma coisa acontece no meu coração cada vez que eu recebo um like. Há quem chame essa coisa de dopamina, o hormônio da recompensa. Antes do advento do like, a gente recebia raras recompensas. Era preciso tirar uma nota dez, fazer um golaço, ganhar uma promoção, enfim, era preciso fazer alguma coisa que prestasse. E eis que o demônio inventou o like –a dopamina ao alcance dos dedos. Basta um clique.
Todo mundo virou junkie. O like é a nova heroína. Olha pro seu lado. Um pai posta que ama passar tempo com o filho enquanto o bebê torra ao sol, desesperado. Um espectador posta que tá amando ver o show de rock que ele não vê, um insone posta que não tá conseguindo dormir sem perceber que não dá pra postar e dormir ao mesmo tempo. Não importa. Entre dormir e colher like, ela prefere o like. Tudo, Simba, tudo o que o sol toca, a comida, o drink, o cachorro, o filho, o chão, o teto, tudo passou a ser visto fonte indireta de dopamina.
Nesses momentos é bom lembrar da frase do cacique Seattle. "Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver secado, quando o último peixe for pescado, vocês vão entender que não dava pra comer like."

CACO GALHARDO







Duke


Cláudio Paiva

Will Tirando

Como descobrir se você passa vergonha nas redes sociais - Mariliz Pereira Jorge


Há seis anos postei no Facebook uma foto minha na balada, de uma época em que eu chegava em casa depois da Folha. Sei disso porque todos os dias o aplicativo me lembra de posts passados, de seis, sete, oito anos atrás, quando passei a ser mais assídua. Fotos, frases, links de música ou de notícia. Se postei, o Facebook me lembrará. O Timehope já fazia isso, mas o senhor Zuckemberg, malandramente, passou a oferecer o mesmo recurso de olho em usuários saudosos de momentos memoráveis.
Aquela lembrança me fez sorrir ao pensar em como era minha vida há seis anos. Eu tinha uma agenda social intensa, amava meu trabalho, tinha uns casinhos que não davam em nada, mas me divertiam muito, vestia 38, tinha os cabelos escuros, ganhava pouco, passava os finais de semana no Rio, corria meia maratonas. Era feliz e sabia, mas não tão claramente quanto vejo agora. A gente nunca acha que é tão realizada. A gente sempre quer ser mais magra, mais rica, mais amada, ganhar mais, trabalhar menos, ter o cabelo mais loiro.
Todos os dias de manhã, faço essa viagem no tempo. É minha sessão de psicanálise diária, a chance de fazer uma bela autocrítica, ter saudade, morrer de rir, lembrar de coisas que viveu, falou, fotografou e registrou lá para todo mundo ver e para ficar eternizado. Sem falar que é um ótimo método para a gente descobrir se passa vergonha nas redes sociais.
Já postei duzentas vezes "foca na sexta", com a foto de uma foca. "É preciso amar as pessoas como se fosse sexta-feira". Essa veio quando a gente começou a se odiar. E "abrindo os trabalhos", com um copo de chopp? E indireta pra "zinimiga"? "Tem gente que é ventilador e se acha ar-condicionado." A gente faz isso. Até hoje.
Dei de cara com várias fotos e posts da fase "se beber, não poste", no meu histórico. Em geral, muito louca, muito feliz, muito gostosa, com uma legenda incompreensível, só para mostrar para o peguete "olha só o que você está perdendo". Claro que só funcionava para dar uma ressaca moral fédadaputa.
Tem coisas ainda piores. Lá dos primórdios do Facebook, quando a gente não sabia direito como aquilo funcionava, era um festival de coisas nonsense. O aplicativo perguntava: o que você está pensando? E a gente respondia! "Me arrumando para ir pro trabalho", "com sono", "com fome", "com dor de barriga", "com raiva da dona Maria", "esperando a faxineira", "comprando comida para o dog". Who cares?
Então, chegamos às doces lembranças e aquelas que nem sempre queremos lembrar. Tem quem diga que as vidas nas redes sociais não são de verdade, que todo mundo está sempre feliz. Eu vejo de outra forma, fazemos ali uma edição dos nossos melhores momentos e de outros não tão bons.
Nesse balaio de gatos temos histórias de perdas, de mortes, de demissão, de frustrações. Mas também de vitórias, de alegrias, de momentos engraçados, de fases fabulosas, de pessoas inesquecíveis, de fatos que mudaram nossas vidas.
Ontem, o Facebook me lembrou que faz sete anos que me separei, e não foi nada bom. Estava tão amargurada e sem inspiração que escrevi: "não namore um cara que dá mais trabalho do que o seu cabelo". Eu sei, é horrível, mas só fui capaz disso naquele momento, e olhando para a minha vida hoje, vejo que aprendi a lição.

Malvados - André Dahmer






















O Vício da Internet  -   Tais Luso de Carvalho

Acho a Internet sensacional: permite a comunicação com pessoas, mandamos e-mails para simplificar as coisas, ampliamos o circulo de amizades, entramos em quase todos os países, somos lidos, tudo é democrático. Quantos nunca tiveram a oportunidade de ver seus textos publicados por serem autores novos e desconhecidos? As editoras só querem publicar autores que dão retorno, sabemos disso. Hoje, quem gosta de escrever tem oportunidade na web, assim como os artistas têm oportunidade de divulgarem seus trabalhos. Isto é ótimo.

Porém quero falar do vício, e que está sendo um desastre para muitos. Numa pesquisa na Inglaterra, um grande número dos entrevistados mostrou sinais de vício em telefones celulares, Blackberries e outros aparelhos em que podiam checar as mensagens de e-mails com frequência. Somos pessoas de hábitos e podemos nos viciar em muitas coisas. Assim como algumas pessoas são viciadas em drogas, em jogos e no tabaco, outras são viciadas em passar horas na internet.

Segundo os pesquisadores, as pessoas usam qualquer coisa, em demasia, para suprirem uma carência que têm na vida real. Assim nasce o vício, qualquer vício. E a internet não ficaria fora. Um levantamento realizado pela Universidade La Salle, nos Estados Unidos, estimou em 50 milhões o número de viciados em Internet naquele país; no Brasil não temos, ainda, uma pesquisa deste nível. De acordo com o Internet World Stats, 1,3 bilhão de pessoas usam Internet no mundo todo.

Os pesquisadores observaram que pessoas viciadas se levantavam várias vezes, à noite, para checarem seus emails e mensagens de texto. O vício em tecnologia pode levar a problemas de relacionamento, principalmente quando o viciado se afasta da família. As pessoas ficam muito ansiosas longe de seu celular e de outros aparelhos e, quando se dão conta, já é tarde.

O mais assustador neste vício, são pessoas que morrem por permanecerem por longo tempo na frente do computador. Isso se deve ao fato de haver certas doenças que se desenvolvem pela permanência em uma determinada posição; uma dessas doenças é a Trombose Venal Profunda, que pode evoluir para uma Embolia Pulmonar, e por fim levando o individuo à morte. Estudos realizados nos Estados Unidos revelam que de 6% a 10% dos aproximadamente 189 milhões de internautas americanos sofrem deste mal.

Exemplos surgem a todo momento: um advogado - bem sucedido - acabou com sua carreira e sua família devido ao mau uso da Internet; uma dona de casa acumulava montanhas de lixo dentro de casa, comia defronte do computador e adormecia nas salas de chats, enquanto outra nem banho tomava mais... E existem milhares de casos espalhados pelo mundo inteiro de casais se separando por usarem, sem cautela, os sites do Orkut, msn, salas de chats, intimidades na rede, etc. Não sabemos as intenções de quem está do outro lado; até podem ser boas, inocentes. Como também o contrário.

No Brasil a Internet é usada por 59 milhões de internautas. Nós, brasileiros, somos os que ficamos mais tempo online, segundo o Ibope/NetRatings, pesquisa incluindo 10 países, inclusive Japão e Estados Unidos. Passamos horas experimentando e adotando novas tecnologias. Adoramos nos socializar na web.

O difícil da coisa é ter o comando de nossa vontade. Somos por demais obstinados quando gostamos de algo. O que não é dosado, vira vício. E aí começa a luta: largar um pouco para não largar tudo; não podemos deixar de viver em função do virtual.

A máquina mais perfeita, a que tem características próprias, que é única, é a ‘máquina humana’. Somos o computador mais completo: além de inventarmos o outro, ainda somos ternos, amorosos, criativos, sensitivos e pensantes. E acho que nossa máquina merece mais cuidados. Nosso tempo é contado. E nossos erros não serão descontados.
Encontrar o equilíbrio é uma das coisas mais difíceis.







Tiago Recchia


Malvados - André Dahmer











Existe amor no FB  - Michel Laub


Num dos textos mais bonitos da língua portuguesa, o "Sermão do Mandato", padre Antonio Vieira comenta as ignorâncias que impedem o amor de florescer no vale de lágrimas onde vivemos: não conhecer a si mesmo, não entender o amor, não saber onde o amor vai dar, não enxergar a natureza do objeto amado.
Não sei se Jonathan Franzen leu o padre Vieira, mas num ensaio curto, na verdade o discurso de formatura que abre a coletânea "Como Ficar Sozinho" (Companhia das Letras), de certo modo aderiu a um esporte comum quando o assunto são as redes sociais: atualizar os quatro preceitos, definindo o que seriam as relações sentimentais verdadeiras.
Franzen tem uma posição clara, referindo-se ao Facebook: "Se uma pessoa (...) dedica sua existência a ser curtível e passa a encarnar um personagem bacana qualquer para atingir tal fim, isso sugere que perdeu a esperança de ser amado por aquilo que realmente é (...). A perspectiva da dor (...), da perda, da separação, da morte, é o que torna tão tentadora a ideia de evitar o amor e permanecer em segurança no mundo do curtir".
A tendência de quem lê esse tipo de artigo é simpatizar. Afinal, difícil passar dez minutos lendo posts de conhecidos sem se deparar com ignorância, narcisismo, arrivismo e desespero existencial travestido de alegria, sem falar naqueles vídeos de publicidade e humor. Mas dá para perguntar, também, se não há idealização em ver uma essência humana perdida a cada vez que acessamos o mundo virtual.
Melhor dizendo, não haveria uma crença exagerada na autonomia desse mundo? Como se gastar horas por dia em frente ao computador equivalesse a um "sonho anestesiado de autossuficiência", na definição de Franzen. "Passar pela vida e não sofrer é não viver", completa o escritor americano, e fico pensando se ele acredita mesmo que alguém escape de pagar contas, se explicar para o cônjuge furioso ou fazer tratamento de ciático apenas por causa de Mark Zuckerberg.
Talvez o engano se deva à pouca familiaridade com uma tecnologia que pode ser fim ou instrumento, dependendo de como é usada. Qualquer um que tenha trocado mensagens eletrônicas não profissionais sabe que, numa adaptação inevitável aos códigos de uma escrita que imita a fala, inclusive com suas modulações de sentido (ironia, ênfase, hipérbole) e expressão afetiva (doçura, raiva, choro), é possível que daí nasçam amizade, inveja, desprezo e até amor.
O que não significa, óbvio, a substituição da presença física. Nem a supervalorização dessa presença. Quando Franzen encerra o discurso com a expressão "seres reais", não sei a que ponto elevado da alma se refere. Mesmo no mundo pré-digital, um flerte começava na superfície --gostos, aparência física, maneira como se fala. Tudo isso é possível no Facebook, e quanta chateação é poupada quando uma pretendente nota que seu pretendido é analfabeto funcional. Ou quando espia suas fotos e percebe que jamais se sentirá atraída por ele.





Malvados - André Dahmer















"Papai, o que é a Internet?" - Luli Radfahrer

...pergunta a Duda durante o café da manhã. Surpreendido mas não impressionado pela enormidade da pergunta feita por sua filhota de seis anos, o pai engasga, pigarreia e responde sem dobrar o jornal, com o chavão que se acostumou a usar quando se refere à rede:
- "Internet é a rede mundial de computadores, filha."
Duda se cala por um instante e o pai sabe que daí não costuma vir coisa boa. Olha furtivo para a mãe que, estrategicamente, resolve dar uma saída. Só com a Duda na cozinha, o silêncio parece interminável. O pai tenta se concentrar nas notícias mas não consegue. Ansioso, espera o torpedo. Este não tarda:
- "O que é um computador?"
- "É uma máquina que faz cálculos, processa e transmite informação."
- "Como uma torradeira?"
Estava demorando. Nascida em 2020, ela não faz ideia do que significa a palavra "analógico". Se viu algum PC, notebook ou smartphone, não registrou sua presença. Tudo à sua volta computa e se comunica, não faz sentido uma máquina voltada exclusivamente para essa tarefa. O pai tenta consertar a situação, embora já sabendo que não encontrará saída para o debate.
- "Não, muito mais sofisticado. Computadores ficavam nos escritórios, e eram usados para se trabalhar."
Enquanto a Duda pensa, o pai percebe o absurdo da frase para a cabeça da pequena. A ideia de um escritório lhe parece de repente mofada e arcaica. Como explicar para ela que era normal há menos de uma década passar horas à frente de teclados e monitores, sentado em cadeiras e mesas desconfortáveis, desenvolvendo tendinites e lesões diversas de esforço repetitivo ao preencher páginas de texto, planilhas e apresentações gerenciais? Ou gastar horas no trânsito a caminho de um lugar estéril e político, só para lá perder mais tempo com papos inúteis e reuniões não muito melhores? Agoniado a pensar na resposta, o pai deixa cair café no seu jornal. Irritado, leva-o até a pia para lavar e torcer a tela. Nem bem levanta, ele ouve:
- "Isto aqui é um computador?", pergunta ela apontando para seu pulso.
E agora? É e não é. Aquela maquininha faz tanta coisa que é difícil imaginar a vida sem ela: tira a temperatura, mede a umidade da pele, verifica a glicemia, pressão, colesterol e mais de trinta outras medições a cada hora. Além disso ela fotografa, projeta vídeos, ensina, cria redes de comunicação, traduz conteúdos, localiza objetos, faz ginástica, vende produtos, liga brinquedos, controla eletrodomésticos e ainda faz companhia nas horas de tédio. Ela responde a comandos de voz, conectada aos verdadeiros computadores distribuídos em prédios sabe-se lá onde. Quando a pulseira veio de graça com o material escolar, o pai desconfiou. Mas aos poucos acabou por se acostumar com o aparelho, a ponto de se perguntar se pegaria mal para ele ter um bracelete desses. Na esperança de encerrar a conversa, ele concorda com a filha.
- "Isto aqui também? E isto? E isto?" Empolgada com a palavra nova que aprendeu, a Duda corre pela cozinha tocando em aparelhos que o pai, quando tinha a idade dela, costumava chamar de geladeira, fogão, pia... para tentar diminuir a confusão, ele traz a pequena para seu colo, explicando:
- "Na verdade essas máquinas não são computadores. Elas não tem nome, ou usam o nome dado por gente da minha geração. Suas antenas mandam sinais recolhidos por elas para uma grande máquina, que toma decisões por elas. Isso é que é um computador". Satisfeito com a explicação, o pai acredita que isso deva acalmar a pequena. Doce ilusão. Mal a colocou no chão, ouviu dela a pergunta:
- "O que é uma geração?"
- "Mas que raio de pergunta é essa? Uma geração é... bom, é um período de tempo, normalmente uns trinta anos, que separa crianças de adultos. Pessoas de uma geração costumam ter dificuldade para entender as outras gerações" responde o pai, com ajuda do dicionário instantâneo.
- "Quer dizer que o Pedro é de outra geração?" pergunta ela referindo-se ao velho primo com seus intangíveis quinze anos.
- "Não, o Pedro... quero dizer... bom... para mim, você e o Pedro são da mesma geração, mas eu entendo que para você ele pode parecer..." não deu tempo de terminar. O bracelete troca de cor e a parede da sala se transforma em escola. O pai aproveita a folga para sair.
Na rua, ele não consegue parar de pensar na conversa e de repente se sente nostálgico. Justo ele, um defensor da Economia da Informação e da Convergência desde a época em que essas palavras significavam algo. "Como era o termo que se usava?" "Paradigma", lembra-se, rindo. Não demora para lembrar de outras velharias como "Tempo Real", "Cauda Longa", "Website"... relíquias de uma época em que alguns davam-se ao luxo de viver fora das redes, sem telefones, lenços ou documentos. Ele, que nunca viu sentido nesse comportamento pária, identificou-se pela primeira vez com os excomungados digitais, percebendo que havia naquele comportamento selvagem e eremita um desconforto instintivo com o excesso de informação.
O pensamento até o levaria mais longe, se não fosse interrompido por um gentil tremor em sua canela: estava na hora de voltar a trabalhar.
   
Jean Galvão

André Dahmer










Vício - Marion Strecker

No meio dos feriados, em Florianópolis, depois de fazer uma ligação, por puro vício acabo abrindo a caixa de entrada de e-mails no celular. Vejo dezenas de e-mails enviados desde a véspera. Muitos são boletins jornalísticos de sites com nomes do tipo TechPulse 360. Coisas de nerd. Sem pensar muito, começo a selecionar aqueles que vou apagar sem ler. E, como sempre, vou deixar na caixa postal outros e-mails, para ler talvez um dia, talvez nunca.
Meu e-mail entrou em colapso. Às vezes perco mensagem importante soterrada numa pilha imensa de bobagens. O que seria solução virou também um problema que me consome muito tempo.
Poderia dizer o mesmo do Facebook, que só não abandono de vez porque virou uma imensa agenda de contatos. Hoje a única rede social que me dá prazer é o Instagram, que não requer palavras nem reciprocidade, assiduidade nem respostas. Eu me sinto livre no Instagram. Mas vejo em volta, com meus amigos, como pode ser uma compulsão.
Lembro subitamente que preciso escrever esta coluna. Penso no ano que passou, da temporada na Califórnia, embutida na indústria do Vale do Silício. Penso nos dias angustiantes que precederam o momento em que me dei conta de que estava totalmente viciada em internet. A produtividade em queda, a ansiedade em alta, a mania de pular de aparelho em aparelho, de aplicativo em aplicativo, de rede social em rede social, sem necessidade nenhuma, sem objetivo definido, vagando pelo mundo on-line como zumbi.
Tento ser honesta comigo mesma e me pergunto: superei o vício? Controlei a compulsão? A resposta é não.
Tomei algumas atitudes sensatas, como me privar de eletrônicos por algumas horas por dia e evitar levar a internet para o quarto de dormir. A internet se infiltrava no quarto disfarçada em despertador do celular ou em livro eletrônico no iPad. Barrei. Quer dizer, procuro barrar. Mas nem sempre barro. Quando estou sozinha é mais difícil.
Não tinha nenhuma compulsão antes da internet. Não estou substituindo um vício por outro. Juro.
Olho minha filha de 14 anos, e ela está muito mais viciada que eu no seu iPhone. Usa Facebook, Twitter, WhatsApp, Instagram, essas coisas. Os amigos são tudo para ela. Para mim também. Tento alertá-la de que está passando horas demais com o aparelho. Sugiro um livro. Às vezes ela aceita, outras não. Tenho certeza de que ela, como eu, perde um tempo imenso em papo furado nas praças virtuais do planeta.
OK, papo furado faz parte da vida. Por que não faria na internet? Minha preocupação não é o papo furado. Minha preocupação é a angústia, a ansiedade que a internet é capaz de produzir. Eu conheço esse estado bem demais. É como andar de bar em bar, procurando algo que não se vai encontrar. É intoxicante. Faz mal à saúde.
Escrevo o que escrevi e de novo me pergunto se estou sendo honesta. É a internet que produz essa ansiedade em mim ou sou eu que estou terceirizando minha ansiedade? Lembro-me da frase de Homer Simpson: "A culpa é minha, e eu coloco ela em quem eu quiser". Boa, não?


Andrício de Souza

Impressões digitais – Nílson Souza

A historinha contada em forma de diálogo é tão engraçada quanto perturbadora. O homem telefona para encomendar uma pizza e descobre que a pizzaria foi comprada pelo Google.

A partir daí, é o atendente que comanda a conversa, antecipando a preferência do cliente, sugerindo o melhor alimento para a sua saúde, lembrando-o de que não está tomando o seu remédio regularmente e mostrando que sabe tudo sobre ele, pois possui um banco de dados com todos os seus gostos e hábitos. É tamanha a intromissão em sua vida, que lá pelas tantas o sujeito explode:

– Estou farto da internet, de computadores, do século 21, da falta de privacidade, dos bancos de dados e deste país...

E cancela o pedido, avisando que no dia seguinte mesmo vai viajar para bem longe, talvez para uma ilha desabitada na Oceania. Depois de um silêncio constrangedor, o atendente avisa:

– Seu passaporte está vencido.

O Grande Irmão, profetizado por George Orwell, venceu a parada. Programas de computador cada vez mais sofisticados mapeiam não apenas o perfil de consumo das pessoas, mas também detalhes inimagináveis de sua personalidade e de seu comportamento.

Cadastros são comercializados a preço de ouro. Lojas e bancos sabem quanto você ganha, se você é bom pagador, se gosta de comer sagu, se viaja sozinho ou acompanhado. Antigamente só o padre sabia isso, porque perguntava. E não contava para ninguém. Agora todos sabem e todos revelam.

Temos um pouco de culpa, certamente, pois vamos deixando impressões digitais por onde passamos. Mas as armadilhas são muitas e irresistíveis. Você ganha um brinde aqui, concorre a um prêmio ali, aproveita uma oferta de ocasião, recebe um cartão de fidelidade, mas em troca tem que informar seu CPF, o nome do seu avô, o gênero de literatura preferido, a geleia que consome no café da manhã.

Aí não pode se surpreender quando estiver percorrendo uma zona comercial da cidade e receber um alerta pelo celular: “Aquela centrífuga que você procura está em liquidação na loja da frente”. Isso, porém, é o de menos. O risco maior é o da discriminação: ao saber que você costuma pesquisar preços antes de comprar, o lojista deduz que seu poder aquisitivo é baixo e dificulta o seu crédito ou oferece produtos de segunda linha.

O homem ama e respeita o homem enquanto não consegue julgá-lo, escreveu certa vez Thomas Mann. Na era da informática, estamos sendo avaliados e julgados o tempo inteiro. E, para sermos amados e respeitados, talvez tenhamos mesmo que viajar para as ilhas Fiji.


Bom, pelo menos o meu passaporte está em dia.


Vida e Obra de Teêncio Horto - André Dahmer


















Malvados - André Dahmer










A internet é onipresente como Deus e promete maravilhas como o Diabo - Cristovão Tezza

Vânia Medeiros/Vânia Medeiros/ Editoria de Arte/Folhapress

Há vários modos de dar algum sentido ou racionalidade ao amontoado de eventos mais ou menos desconexos que chamamos de "história".
Há quem pense que a história é uma ciência exata, ou pelo menos determinável ou previsível; e, quando algo não dá certo, inventa-se um conjunto de explicações de modo a adaptar a realidade ao que pensamos que ela é, ou queremos que ela seja.
É coisa demais para mim —nos limites comezinhos do dia a dia, pode-se no máximo considerar alguns fatos marcantes, a partir dos quais se desenha uma divisão de águas: no Brasil, a criação de Brasília, a renúncia de Jânio Quadros, a ditadura militar que se seguiu ao golpe de 1964 e ao sobregolpe de 1968, a passagem do Brasil rural para o Brasil urbano, a Constituição de 1988, o Plano Real e a criação de uma moeda estável, a eleição de Lula e o paraíso que se avizinhava, sob um estado contagiante de alucinação coletiva, ou ainda a primeira sentença condenatória da Lava Jato.
Para cada um desses marcos de referência —entre dezenas de outros possíveis— há uma legião de especialistas falando com propriedade e conhecimento, dos quais me esforço para ser um leitor atento.
Mas imagino que cada cidadão escolhe sua referência de "antes" e "depois" para consumo próprio. Tradicionalmente, o "antes" é um estado positivo ou potencialmente positivo, e o "depois", um desencadear infindável de desgraças, porque, miticamente, os grandes heróis são sempre os mortos.
Mas o sinal também pode ser inverso: o trágico antes cede espaço a um depois redentor, quando o conceito de utopia entra no quadro mental da condição humana. Num caso ou noutro, segue-se o instinto.
A questão é que não existe mais, no terreno da opinião, o "consumo próprio", aquela breve paz, os cinco minutos de silêncio, o contemplar búdico diante dos incríveis acontecimentos diários; não há mais, como antigamente (para ser sentimental), o franzir da testa, o prazer da boa dúvida, o balançar criterioso da cabeça, para enfim concluir: "Foi frango, sim. Dava pra pegar aquela bola".
Hoje os fatos já vêm de fábrica embrulhados na opinião (pensei em escrever "envelopados" para lhes dar um certo pedigree, mas na verdade são embrulhos mesmo), todos pedradas diretas na testa.
Dessa evidência corriqueira, extraio meu ponto de referência histórica do antes e do depois: a internet.
Entre nós, a data de 2000 seria uma boa medida da virada sem volta. A internet não é de esquerda nem de direita; como Deus, está em toda parte, com a indiferença da eternidade; e, como o Diabo, nos atenta a cada minuto prometendo maravilhas, de lindas russas que namoram até carteirinhas do Exército Islâmico.
A revolução não estava no catálogo universal de curiosidades e informações, que foi a imagem que me ocorreu quando cliquei no primeiro Netscape. Nessa perspectiva, não seria bem uma novidade.
Nos anos 1980, comprei uma enciclopédia chamada "Tudo", em dois volumes, que era uma maravilha, um pequeno "gúgol" das cavernas que resolvia meus problemas —aliás, problemas sempre do exato tamanho dos dois volumes.
Enquanto a internet parecia apenas substituir essa biblioteca universal, tudo parecia bem —um grande upgrade, mas de um mesmo instrumental, agora pousando impressionante na mesa do escritório. Esse neanderthal que mexia com aquilo ainda achava que o computador não passava de uma máquina de escrever sofisticada.
A mudança estrutural, que vem transformando praticamente todos os aspectos da vida cotidiana, como uma bomba-relógio programada —do modo como caminhamos ao modo como dormimos, das relações de trabalho à qualidade do amor— foi a universalização da tal "portabilidade", para falar um palavrão contemporâneo.
A terrível onipresença. O que significa uma perseguição monstruosa e permanente, o bafo do mundo na nossa nuca, a gritaria infernal de todos sobre tudo, a exigência de dedo erguido, o estado de indignação apoplética, os gritos da burralhada, a perpétua beira do abismo sobre o abismo.
De tal modo que, para escapar do horror, comecei a escrever poesias (o que é meio ridículo, a essa altura, mas que fazer). Uma delas termina assim:

"Enquanto isso, malmequer,
aperto meus olhos míopes
atrás de um foco qualquer." 

ADÃO ITURRUSGARAI










Troque seu celular por uma galinha gorda – Xico Sá

O glorioso inventor da ansiedade, Alexander Graham Bell (1847-1922), deve se arrepender até hoje da sua patente telefônica. (Como Santos Dumont, dândi brasileiro em Paris, que maldisse do seu próprio brinquedo ao vê-lo nos céus da guerra).
Nestes tempos em que celular virou brinco, eternamente colado às “oiças” de madames, de moçoilas, de executivos e de modernos em geral, uma reflexão recente de dona Maria do Socorro, brava sertaneja, mãe deste que vos berra, vem como pílula mais do que apropriada: “Conheci teu pai, namorei, casei, engravidei de todos vocês, criei minha família, cuidei de tudo direitinho, graças a Deus não morreu nenhum… E nunca precisei dar ou receber um telefonema, nem unzinho mesmo!”.

Mulher do sertão, que só pegou em um telefone depois dos 50 anos, anda revoltada com parentes e amigas que vivem grudados ao celular. “Tá todo mundo de pescoço torto, cabeça decaída para um lado, parecendo frei Damião, por causa dessa moda nova. Ora, voltem a pôr as cadeiras nas calçadas, na frente das casas, e vão conversar sem o diacho desses aparelhos.”
A máxima aceleração de ansiedade à qual dona Socorro submeteu os seus batimentos cardíacos foram os berros do carteiro.
A lamúria da falta do telefonema do dia seguinte, protesto do novo código do bom-tom das moças, também é situação nunca dantes vivida. Sem a invenção do velho Graham Bell, o dia seguinte nascia sob aurora mais sossegada.
Antigamente, tudo dependia mesmo da dramaturgia do encontro. A onipresença amorosa e/ou comercial instaurada com o celular não era coisa deste mundo. Uma carta, no máximo, poderia ser uma estratégia, garrafa atirada ao mar de tantas Penélopes.
Um recado pelo rádio também valia, mas para casos de sumiços de verdade -cheguei a ser sub do sub-redator de programa do gênero, comandado pelo locutor Gevan Siqueira, na rádio Vale do Cariri, em Juazeiro, com recados amorosos e novelinhas à moda de “Tia Júlia e o Escrevinhador”, de Vargas Llosa.
Deixemos de ser plantonistas do mundo. No amor, assim como nos negócios, não somos tão importantes a ponto de alimentar essa onipresença digital. Casanova amou centenas de mulheres sem precisar de um telefonema sequer.
No mundo dos negócios, muita gente também fez fortuna sem telefone, acreditando apenas no olho do dono como engorda caixa da bodega.
Quer jogar conversa fora, faça como a velha recomendação de um Jeca Tatu: “Mate uma galinha gorda no domingo e me convide para comer”.

Gus Morais




Telefone, um inimigo necessário - Anna Veronica Mautner



Na vida nossa de cada dia, muitos tornam o número de telefone acessível, nem sempre com disposição para atender as exigências que disso decorrem. Existe aí uma responsabilidade em relação ao "outro". Se eu dou meu número para alguém, estou anunciando que sou acessível.
No tempo em que existia lista telefônica, isso poderia ser discutível, pois os números ficavam públicos de certa forma, por lei. Mas, hoje, meu número de celular não está em lista oficial nenhuma, só é acessível se eu der. A partir daí, torno-me responsável por atendê-lo. O processo funciona em mão dupla. Quando ligo para alguém, imagino que vá me atender --senão, por que teria me dado seu número?
A relação com a telefonia é uma escolha pessoal. Há quem ama falar, há quem é lacônico. Seja como for, tornar-se acessível significa perder graus de liberdade e, ao mesmo tempo, ganhar em acessibilidade.
O telefone me torna pública, mas também pode preservar minha privacidade. Para me garantir e me defender, posso usar a secretária eletrônica ou o bina, aliás, inventado e patenteado por um brasileiro.
Tudo isso é muito recente. Há cinquenta anos, o telefone era uma raridade reservada para pessoas da classe A. A linha era comprada a preço de ouro. Muitas lojas não tinham mais do que um aparelho --muitas vezes com cadeado; outras, com cadeado só das 13h às 15h, quando ilegalmente recebiam o resultado do jogo do bicho --não disponível para fregueses.
E, então, um dia, privatizaram a companhia telefônica, e a cidade foi inundada por telefones. Logo depois chegaram os celulares, que invadiram definitivamente nossa vida.
Tudo isso transformou as relações interpessoais de maneira avassaladora. Não atender o celular pode ser visto quase como um estelionato. Você está privando o outro do acesso a você --que você prometeu quando deu o número.
O celular foi uma revolução tão grande quanto a difusão do telefone fixo. Se ligo para o fixo de alguém que não me atende, só sei que a pessoa não está lá. Mas, com o celular, temos que aprender a mentir melhor. Vamos desenvolvendo jeitinhos. Se fulano não me atende, ligo de um número que ele não conhece e descubro se não está lá ou se não quer me atender. Inventamos o bina e depois inventamos jeitinhos para driblá-lo.
A barreira da invisibilidade ainda não foi vencida. Se é meu amigo ou meu inimigo, não sou capaz de distinguir antes de atender e ouvir a voz. Só depois de atender, o enigma se desfaz.
Uma educação para o uso do telefone se faz cada dia mais necessária.








Visita ao Museu



O toque da marimba - Tati Bernardi


Só de lembrar, meu corpo inteiro arrepia. A angústia foi tamanha que me deu a velha conhecida compulsão por álcool gel, a mão está agora seca, ardida, trincada. Foi uma experiência tão fora da realidade que a casa inteira parecia em desordem, empoeirada, desalinhada. O teto chegou a ficar preto, só não desmaiei porque meu marido, ao ouvir o toque da marimba (também conhecido como o mais absurdo dos sons) correu para me acudir.
É isso mesmo? O celular está tocando? Não pode ser. Se eu olhar pela janela agora verei o quê? Alguém sendo bastante faceiro fora do Instagram? Uma longa, quase bem articulada e completamente inútil discussão em nome da “verdade absoluta” fora do Facebook? Um pombo trazendo um emoji?
Mas foi isso mesmo. Na manhã da última terça-feira, minha amiga Carolina resolveu me telefonar. Eu sei que você está se perguntando o que leva um ser humano, ainda mais um com este nome tão delicado, a cometer tamanho descaramento. Falei disso na terapia, debati o infortúnio em ao menos cinco grupos de WhatsApp. As conclusões são muitas e, portanto, nenhuma.
Talvez ela estivesse mergulhada em um tédio tão lamacento que a sujeira uma hora alcançaria sua reputação. Pode ter sido flashback de um ácido batizado da década passada. Tem gente apostando em vingança, falta de caráter, maldade no coração. Uma coisa é certa: serviu de alerta. Todos os amigos em comum bloquearam Carolina. Vai que ela resolve transformar seu surto psicótico em rotina.
Naquele dia, o nojo me impossibilitou almoçar. Pra conseguir lanchar à tarde, tive que antes limpar minha aura com muito chá de hortelã. Desculpem-me a riqueza de detalhes sórdidos, mas eu preciso desabafar: a voz de Carolina saía em tempo real do aparelho. E, pior: eu era obrigada a responder também em tempo real. Quem se lembra de quando éramos subjugados a esse ponto? Até fiquei quieta uma hora, pra ter certeza se era isso mesmo. E ela do outro lado: “alô? Alô!”. Quem se recorda do afrontoso “alô”?
Então inventam essa obra divina chamada “mensagem de áudio”. Essa maravilha que nos possibilita controlar o tempo da escuta e da fala. Essa joia que nos permite não apenas sermos sozinhos e egoístas mas sermos tudo isso rodeados de “amigos”. Esse milagre que nos autoriza a não escutar o outro ou escutá-lo apenas quando quisermos ou ainda 200 vezes até ter certeza se estamos irritados, enfadados ou com tesãozinho. E chega essa garota e nos atira na latrina de um tenebroso passado recente em que éramos obrigados a interagir sem edição?
Carolina, e aqui não podemos negar certa coragem (ou insanidade), ignorou por completo a maior conquista desse século e me telefonou. Quis “saber como andam as coisas”. É tanta falta de educação que eu, confesso, fiquei paralisada a ponto de responder “tudo bem, e você?”. Ela queria FALAR comigo. Por um aparelho chamado celular. Esse aparelho que tanta alegria nos traz quando utilizado para todas as milhares de coisas de que é capaz (quando não está altamente desqualificado por uma chamada telefônica). Usar o celular para telefonar é mostrar que você não entendeu nada sobre os últimos dez anos. Não entendeu nada sobre “a onda dos dedões com tendinite nas melhores clínicas fisioterapêuticas”. Não compartilha da obsessão da moda: se trancar no quarto para promover “a devida masturbação da própria imagem”. E, mais grave: não entendeu para que serve esse aparelho caríssimo que você salva antes dos seus joelhos quando cai na rua.
Ainda não existe lei que criminaliza o mais temível tipo de meliante. Carolina está por aí, livre, leve, solta e, socorro, provavelmente telefonando para as pessoas.










Metades gaguejantes - Denise Fraga
— Desculpe, resolve aí.
— Não, pode falar. Só tô passando uma mensagem.

— Não, termina aí e a gente fala.

Minha amiga ficou brava comigo. Queria que eu continuasse me comportando como se estivéssemos conversando. Ela falava uma palavra a cada cinco segundos, parecia um robô sem pilha, ria de um jeito falso para demonstrar interesse em minha história e queria que eu também fingisse conversar enquanto ela digitava uma mensagem para Deus sabe quem do outro lado da sua existência. Esperei. Ela terminou de escrever um pouco sem jeito e retomamos a conversa.

Achei boa a técnica. Resolvi aplicar. É milagroso. Uma frase:

— Resolve aí e depois a gente fala.

Alguns se ofendem. Acham mesmo que já adquiriram a tal capacidade de falar com duas pessoas ao mesmo tempo. Tenho vontade de filmá-los. Conseguimos, claro, falar simultaneamente com duas pessoas, mas dividindo o nosso tempo. E, muitas vezes, nossas frases. Socorro! O mundo está rápido demais e tem ficado em câmera lenta! Eu mesma me pego entrando no pântano das sílabas sem perceber. Depois da coragem de falar com minha amiga, resolvi começar a praticar o que não nos fora ensinado.
Sinto que nos faltou um manual de instruções. Ou, no mínimo, de educação. Tudo foi rápido demais e parece que não fizemos um pacto mínimo de regras sociais para usar a novidade. Mas podemos nos lembrar de nossas avós nos instruindo na sala de visitas: é falta de educação demonstrar desatenção.

— Desculpe. Só um minuto. Preciso responder uma mensagem.

Custa dizer? Pedíamos licença para atender o telefone. Por que metemos o dedo no teclado sem a menor cerimônia na frente de nossos interlocutores? Há que estar atento, pois se trata mais de hábito do que de vontade. O caudaloso rio virtual nos levando para outras paragens sem que percebamos o ridículo de nossa metade gaguejante aqui deixada. Ultrajando nossa gentileza.

Em sua recente passagem pelo Brasil, Mick Jagger disse numa entrevista que, do palco, sentiu que seu show parecia estar sendo visto pelos celulares.

Perdoai-nos, Mick, não sabemos o que fazemos. Mal veremos tais fotos e jamais esqueceremos tal performance. Vivemos tempos estranhos em que preferir te ver pela tela de nosso celular pode ser pura declaração de amor. Pena.






O Celular e Os Adolescentes - Drauzio Varella

Tecnologias novas assustam a sociedade. Foi assim com o rádio, a TV e agora com as telas dos celulares.

Candice Odgers, professora de psicologia na Universidade da Califórnia, publicou na revista científica Nature uma revisão das publicações sobre o impacto da tecnologia digital no comportamento dos adolescentes.

Nos últimos anos, tem ocorrido aumento da prevalência de transtornos mentais e de suicídios entre adolescentes, em vários países. Muitos estudiosos suspeitam que o mau uso da tecnologia digital esteja por trás desse fenômeno. Os estudos, no entanto, revelam resultados conflitantes. O maior deles, conduzido em 2017 com mais de 120 mil adolescentes ingleses, não encontrou associação entre bem-estar mental e o uso moderado da tecnologia digital. Naqueles que fazem uso excessivo foi possível demonstrar efeitos negativos, porém pequenos.

Uma metanálise de 36 trabalhos publicados entre 2002 e 2017 revelou que a comunicação digital potencializa demonstrações de afeto, compartilhamento de intimidades e facilita a marcação de encontros e de atividades conjuntas. Os dados sugerem que o impacto comportamental causado pelo tempo despendido online varia de acordo com o nível socioeconômico das crianças e dos adolescentes. Jovens americanos de 13 a 18 anos de famílias com rendimentos anuais médios de U$ 35 mil passam quatro horas diárias vendo TV ou vídeos na internet, o dobro do tempo de seus pares das famílias com renda anual média de U$ 100 mil.

Em 2014, uma pesquisa com 3,5 mil participantes de nove a 16 anos residentes em sete países europeus mostrou que os pais das famílias com renda mais alta acompanhavam mais de perto as atividades online de seus filhos.

Numa pesquisa realizada na Carolina do Norte, o uso da tecnologia digital entre adolescentes de famílias de baixa renda resultou em maior probabilidade de envolvimento em agressões físicas e confrontos nas escolas do que naqueles das famílias mais abastadas. Os que apresentam problemas comportamentais, como dificuldade de concentração nas aulas ou envolvimento em brigas, tendem a ter mais transtornos comportamentais nos dias em que passam mais horas online.

Como regra geral, adolescentes que enfrentam dificuldades maiores na vida cotidiana são justamente os que correrão mais risco de experimentar os efeitos negativos do universo digital.

Por outro lado, estados mentais que predispõem a quadros de depressão, ansiedade e a tendências suicidas poderão ser identificados precocemente através de algoritmos que levem em conta o número de horas de sono e de outras variáveis selecionadas no Facebook e no Twitter. Assim identificados, os mais vulneráveis poderão receber em tempo intervenções e apoio psicológico, como ficou demonstrado numa metanálise publicada em 2016.

Os efeitos da tecnologia digital são deletérios para alguns, mas não para a maioria. O desafio é entender o impacto nas crianças e adolescentes de níveis culturais e socioeconômicos diversos, para torná-la segura e explorar ao máximo seu potencial educativo.

LAERTE







Ricardo Coimbra

Daniel Lafayette 


O fim do alô - Nilson Souza

Quantas ligações telefônicas você já recebeu hoje? E quantas fez? A não ser que você trabalhe num call center, é provável que as respostas para essas perguntas possam ser dadas com os dedos de uma mão. A revolução tecnológica é, também, uma revolução comportamental. Este dinossauro analógico que vos digita já andava preocupado com o fechamento do chamado Parêntese de Gutenberg, que vem a ser o fim da era do impresso e a substituição de uma cultura secular baseada na escrita pelo acesso fácil ao Google.

O criador da tese, o professor dinamarquês Thomas Pettitt, sugere que a humanidade está retornando ao estágio pré-imprensa de transmissão "oral" de informação e conhecimento, uma vez que estamos falando pela ponta dos dedos. Estamos, realmente. Só que é uma fala cada vez mais silenciosa.

A tecnologia nos empurra para o silêncio.

A regra, agora, é evitar conversas. A cena emblemática deste novo momento é a do grupo de amigos sentados à mesma mesa, cada um com o seu celular, consultando e interagindo nas redes sociais. Há inúmeras outras imagens igualmente significativas: pais que não dão atenção aos filhos por estarem sempre conectados, filhos que preferem a telinha à companhia dos pais, namorados que passeiam juntos sem tirar os olhos dos celulares, motoristas que aproveitam o sinal vermelho para consultar mensagens e digitar, muitas vezes atrapalhando o trânsito. Tudo isso já é rotina nas nossas vidas. Estamos nos tornando seres solitários e silentes, ainda que cercados de amigos virtuais.

Telefones, computadores e tablets cada vez mais substituem o contato pessoal. O telefone, paradoxalmente, ainda mantém a função sonora, que permite ao usuário ouvir a voz do interlocutor e responder também no formato original. Mas falantes e ouvintes talvez já sejam minoria no universo de usuários do aparelho.

Os jovens, especialmente, preferem a comunicação digital. E muita gente já considera deselegância alguém ligar para o seu telefone sem mensagem prévia. Algumas pessoas nem sequer atendem ligações por voz. Nesse contexto, mesmo quem aprecia uma boa conversa já evita ligar, devido à sensação de que pode estar incomodando.

Pretextos não faltam para essa mudança comportamental. Tem o lado econômico: o zap é de graça. Tem também o aspecto psicológico: as pessoas se sentem mais seguras e menos expostas quando digitam do que quando falam, sem o risco de serem interrompidas pelo interlocutor. E há, inegavelmente, uma dependência crescente da telinha, pois os mais assíduos ficam com a sensação de estarem perdendo alguma coisa se estiverem desconectados.

Na verdade, estamos perdendo é a empatia - essa rara faculdade humana de nos colocarmos no lugar do outro, especialmente quando ouvimos sua voz e olhamos nos seus olhos.

Não sei se exagero, mas já começo a sentir saudades prévias do velho e sonoro alô - início de conversas prazerosas com amigos, sinal de prontidão para o diálogo transparente e senha inequívoca do desejo de ouvir a voz da pessoa amada.



Benett






Thiago Lucas



Mundo doente - Luis Fernando Verissimo

Todas as garrafas que lancei ao mar com mensagens ao desconhecido voltaram sem réplica, ou com o texto corrigido. Nenhum dos meus gurus tinha resposta para minhas indagações existenciais e um até confessou que era surdo e não ouvia as minhas perguntas, o que explica ele ter respondido “sim” quando eu perguntei se deveria seguir o Bhagavad Gita, o Kama Sutra,

O Capital ou uma combinação dos três. Todos os meus telefonemas dão em secretárias eletrônicas com a voz exatamente igual. Da última vez que implorei por um contato humano, alguma coisa viva – uma hesitação, um erro de concordância, um resfriado, até, em último caso, uma reação irritada – a voz disse: “Para reação irritada, digite 4”.
Decidi procurar consolo na internet, mas sabia o que me esperava. Cairia num site que me ensinaria a fazer bombas caseiras, outro de alguém que teria tara por Matildes, outro o de um movimento pela canonização do papa Francisco em vida, outro de um onanista compulsivo cheio de erros de digitação porque, presumivelmente, seus textos seriam escritos com uma mão só, outro de um homem que propunha a troca de fotografias do seu bigode ridículo com as de bigodes ridículos de todo o mundo, com a possibilidade de casamento, e até imaginei o site de alguém que pediria para comprar vários dos meus órgãos para comer.
Este eu nem pensaria em atender, sou muito apegado a todos os meus órgãos apesar do que alguns têm me feito passar, mas só por curiosidade perguntaria como ele prepararia, por exemplo, meu fígado e, num rasgo de sentimentalismo, sugeriria que o servisse acompanhado de um Sauterne de boa safra. E que desagravasse meu coração com batatas dauphinoise.
Todos, inclusive o cara que estaria a fim das minhas tripas à moda de Caen, só demonstrariam como eu entrara num fascinante mundo doente, o da humanidade reduzida às suas fomes e às suas esquisitices primevas, ao entrar na internet. Terroristas, fascistas, fetichistas e canibais são – ou espero que sejam – minorias entre os habitantes deste mundo, e se sexo é o assunto preferido da maioria é porque sexo, no fim, é a preocupação dominante da espécie, nada de novo.
Mas há algo de assustador nessa variedade de prospecções predatórias de gente atrás de afinidades. Sei lá se eu não tenho alguma obsessão secreta (pés de noviças?) só esperando um correspondente para se manifestar. Mas desisti de localizar meus similares (os revoltados com a revolta, os que já desistiram até de desistir) e concluí que a primeira condição para encontrar a minha turma é jamais frequentar a internet.


Finalmente - Luis Fernando Verissimo


O homem de Neandertal tinha uma caixa craniana maior do que a nossa e, presumivelmente, um cérebro mais desenvolvido. Mas não falava. Usava instrumentos de pedra, dominava o fogo, enterrava seus mortos e vivia em comunidades como as nossas, talvez um pouco menos selvagens. Mas não tinha uma linguagem. Só se comunicava com os outros com grunhidos e tapas no ouvido. Pela aparência, estava mais bem preparado para dominar o planeta do que nós. Além do crânio enorme, tinham ombros maiores, mais músculos e ossos mais fortes. Mas, embora tivesse todo o equipamento necessário, não falava.
*
Hoje, especula-se que era o cérebro que atrapalhava. A gestação da mulher de Neandertal durava mais tempo, o que significava que o cérebro já nascia pronto. E, em vez de ter a infância prolongada e protegida que literalmente faz a nossa cabeça, o guri de Neandertal recebia um tacape na saída do útero e já ia caçar. Sabe-se que o embrião humano reproduz, no ventre, toda a evolução da espécie e que há um momento na gestação em que nosso cérebro fica tão completo quanto o do feto de Neandertal. Mas aí começa um processo de depuração, de eliminação de cédulas e modificação de circuitos, que continua no período pós-natal, e é essa adaptação que nos permite falar. Ou seja, a linguagem é o produto de uma carência programada do cérebro e o poder da fala uma compensação pelos neurônios perdidos. O homem de Neandertal era evoluído demais. Tinha o cérebro tão acabado que não precisava da linguagem, mas sem a linguagem foi um fracasso social. Não durou nem 80 mil anos, e com aqueles ombros.
*
Aceitando-se a tese evolucionista, nós descendemos dos débeis mentais de Neandertal, dos que nasceram com o cérebro incompleto, dos fraquinhos que ficavam em casa só aprendendo besteira. Foi a linguagem que permitiu ao modelo seguinte dos pré-humanos se organizar, conceitualizar, trocar informações e mentir. Isto é, civilizar-se. Se você prefere a tese antievolucionista, ela diz que a Natureza sabe o que quer e seu objetivo era dar nome às coisas e uma retórica aos elementos, que antes da linguagem rugiam de frustração com a incapacidade de falar. Tudo na Natureza – os vulcões, os vendavais, os terremotos e os bichos – seria uma dificuldade de expressão.
*
Tentando e errando (o homem de Neandertal, alguns políticos), tudo o que a Natureza quer é que falem por ela, que sejam o poeta que ela, por mais que se esforce, não consegue ser. Mas, segundo outra tese, malvada, a internet e seu vocabulário eletrônico teriam sido inventados para, finalmente, dar uma voz aos neandertais.


https://minilua.com/como-internet-mudou-mundo-para-bem-para-mal/


Bar, amigo, xaveco e Facebook! 



Gente que fica no celular e deixa a pessoa amada no vácuo!



Look Up - Gary Turk

Amor Líquido | Goethe e Zygmunt Bauman



Ele não quis o celular - Ignácio de Loyola Brandão

Todos o conhecem pelo apelido, Dono. Quando se pergunta sobre o nome, ele diz que um dia alguém assim o chamou e assim continuou pela vida toda. Deve ter 50 anos. Quando você estende a mão, ele abre um sorriso, feliz por te ver. É cordial, parece que tudo está sempre bem. A menos que uma de suas plantinhas, como ele as chama, da horta da Sueli e do Ivo não esteja se desenvolvendo como ele pretende. Ou como devia. Fica ali um tempão a olhar para ela, tentando descobrir a razão. Pouca água? Ou muita? Agrotóxicos não existem em seu vocabulário. Realmente não foi uma muda bem tirada? Muda boa tem de ser conseguida com jeito e carinho. Dono sabe o temperamento de cada verdura, flor, fruta. 

Ele vive para elas. Delas. Todos o conhecem na região de Cangalha, Minas Gerais, ainda que saia pouco ali da Toca do Alto. A não ser no final de semana, quando sela o cavalo e segue para a casa da mãe no distrito vizinho, voltando no final do domingo. O cão Dylan, branco, imenso, o segue até a porteira. Dylan (sim, em homenagem ao compositor e cantor prêmio Nobel) e Dono são inseparáveis. 

Dono trata dos abacateiros, das cerejeiras, das amoras, tangerinas, limões variados, abóboras, alfaces, couves, almeirão, alho-poró, cenouras, mandiocas, abobrinhas, berinjelas, tudo o que uma boa terra dá. Em se plantando. Cada uma é cuidada de um jeito, colhida com cuidado, no momento certo.

Dono vive só. Relaciona-se com os empregados da fazenda e não se sabe com quem mais além da família, nos finais de semana. Dia desses ele pediu a Sueli se podia ver algo especial na tevê. Queria muito, muito mesmo. Surpresa e curiosa, ela disse que sim. Era a missa da Basílica de Aparecida no dia 12 de outubro. Dono assistiu comovido e, ao que me pareceu, com mais fé e emoção do que muito peregrino ou beata. Aquilo o tocou profundamente. Valeu o dia. Como nada conhecemos do brasileiro do interior, esse que está fora do círculo urbano que pensa ser o Brasil. Esses, que são os invisíveis.

Hoje, todos no campo, mas todos mesmo, têm seu celular, e a maioria dispensou o cavalo, substituindo-o pela motinha, como dizem. Dia desses imaginando que Dono talvez sentisse falta de um, para se comunicar melhor, tirá-lo daquela solidão, Sueli e Ivo o chamaram. “O que acha de te darmos um celular?” “Celular?” “Para se comunicar com os outros, mandar mensagens à mãe, ficar ligado.”

Dono ficou em silêncio. Demorou, achou a resposta. “Acho que não, obrigado! Vejo as pessoas grudadas nele o tempo inteiro. Tenho medo que vai me tirar a atenção das plantinhas...”


Sahbi Chmengui



A tarde em que tudo apagou – Ignácio de Loyola Brandão

Foto: Dado Ruvic/Reuters




Aí, um poder superior (qual?) disse: Haja apagão. E houve. E todos viram que o apagão era ruim. E o poder superior (qual?) dividiu o apagão entre WhatsApp e Facebook. E houve choro, convulsões e desespero. Todos perplexos, atemorizados, sacudiam seus aparelhos inertes. Sempre achamos que uma sacudidela resolve. Teria tudo acabado naquela segunda-feira? Morreu o WhatsApp? Como viver? Suportar? A própria pandemia pareceu uma gripezinha, como dizia o destemperado. As pessoas, estupefatas, murmuravam: isso é impossível. Tão absurdo como acabar com o desmatamento no Amazonas ou o ministro da Educação conseguir somar dois mais dois. 

As pessoas sacudiam os celulares, batiam na mesa. Bater é outra esperança. Ligavam e desligavam. Olhavam com carinho, como se aos aparelhos faltasse amor. Ou contemplavam com ódio – porque o ódio explode fácil dentro de cada um – como se o aparelho fosse o culpado, estivesse se vingando de ser condutor de tantas palavras fúteis, mensagens, memes, msm, tuítes, idiotias, rancores, desamores. Ligavam, desligavam. É sempre uma esperança. Andavam para lá e para cá, crendo que era um problema de internet e procuravam um cantinho onde pudessem conectar. Não estar conectado, ai meu Deus, que horror, solidão! Andavam sem rumo buscando onde estava o sinal. Todos conhecemos esta investigação cheia de ansiedade. O sinal, o sinal…

A segunda-feira, 4 de outubro de 2021, ficará na história como um novo 11 de Setembro? Como a bomba sobre Hiroshima? Como a separação do Brad Pitt e da Angelina Jolie? Como um grupo de cafonas comendo pizza numa calçada? Como a Paolla Oliveira mostrando a calcinha em uma live? 

O sinal, cadê o sinal? Não pegava em lugar nenhum. Alguns pediam o celular da mulher (que negava), do marido (que negava, apavorado), da filha, do genro, do neto, da ex-mulher, do ex-marido, do guarda da esquina. Nada. Ainda existem guardas da esquina ou denunciei minha idade? Minha neta Stella me diz: agora é vigilante, vô! Não há mais netos sem celular. Não há netos que não orientem os avós, eu inclusive. Todos se indagavam: o que fazer? O que vai ser de mim? O que vai ser de ti? O que vai ser do meu trabalho? De minha família? De minhas relações? A quem invocar? A quem telefonar? Quem sabe o que está acontecendo? Como saber? Porque quem costuma nos dizer o que acontece é exatamente o celular. Não adianta perguntar: Google, me diga... Nem Siri, me diga... Uns foram ao vizinho e o vizinho não sabia. Desceram à rua e foram à padaria, ao supermercado, à praça, às lojas. Todos tinham nas mãos seus aparelhos inúteis. As marcas mais procuradas, sabe-se lá de quantos milhares de megabits – ou o que seja – indiferentes. 

O desespero começou a se espalhar. O grande comunicador estava calado, ninguém ligava ninguém recebia. Sensação de impotência crescendo. O pânico invadindo cada casa, escritório, departamento, repartição, empresa, igreja, bar, motel, armazém, banco, farmácia, consultório, banheiro, privada. As pessoas emudeceram também, porque não sabem mais conversar frente a frente, a comunicação só se faz pelo aparelho. Peste? Praga? Castigo de Deus? Houve quem dissesse: Deus não existe. Caíram de pau em cima. Como não?, vociferavam. Não sabem que a pátria está acima de tudo e Deus acima da pátria? Não. Nada disso. É um problema mecânico, celular é um ser muito novo, tem seus ataques, chiliques, momentos de mau humor, depressão, insatisfação. Ninguém se lembrou de algo que está relegado ao olvido. Demais esta, hein! Olvido. O fone fixo, o direto, aquele que hoje serve aos telemarketings. Quanto a mim, estive tranquilo. Não uso WhatsApp. Não sei. Aviso aos amigos. Não me mandem WhatsApp. Nem olho. Tem quem me diz: você não sabe o que está perdendo. Sei, todo mundo louco na segunda-feira, dia 4, menos eu, Calmo, calmíssimo. Já olhei por toda parte, todas as gavetas, armários, bolsos. Não falta nada. Mas li que nas contas de um sujeito chamado Zuckerberg estão faltando seis bilhões. Alguém ficou com pena, se chateou, ficou sem dormir? 

 
















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