Vexame
Essa vai ser difícil de
contar, mas coragem:
Era segunda-feira, quatro da
tarde, eu estava desde cedo escrevendo e lendo e cozinhando e não aguentava
mais ficar em casa. Tirei uma nota de 50 reais da carteira, peguei os originais
de um romance russo que eu tinha que revisar pra semana seguinte e fui pro
Charm, um boteco inteiramente desprovido de charme na esquina da Augusta com a
Antônio Carlos. O plano era voltar em duas horas no máximo.
Pedi uma cerveja, a cerveja
me animou, parei de trabalhar e mandei mensagens pra alguns amigos que moram na
região. Um deles, também escritor, estava à toa e chegou rápido. Tomamos
cerveja, ele comeu um sanduíche, eu não comi nada porque tinha almoçado e
quando vi já estava bêbado, num outro boteco, bebendo cachaça e falando
bobagem.
Mas meu amigo tinha um jantar
com um editor às 20h. Era quase isso. Ele me convidou pra ir junto. Eu disse
nem. Ele teve uma ideia: eu iria pro bar de um amigo nosso, que fica próximo ao
restaurante em que ele encontraria o editor, e sentaria na mesa de algum
conhecido. O jantar duraria uma hora e meia, garantiu. Assim que terminasse,
ele correria do restaurante pro bar e a gente beberia até amanhecer.
Ele me emprestou uma grana,
pegamos um táxi, eu desci e ele seguiu em frente.
Na porta do bar, me dei conta
de que não conhecia ninguém lá dentro. Fiquei na calçada, bebendo em pé. Minhas
pernas estavam bambas. Eu estava exausto. E onde, vida lazarenta, tinha ido
parar o livro do Dostoiévski? Ainda não era, mas parecia o fundo do poço.
Foi aí que reparei nas
lanternas japonesas. Dois balõezinhos vermelhos flutuando do outro lado da rua,
quase em frente ao bar. Como que saídos do sonho. Como que chamando por mim. Eu
adorava aquele lugar. Era minúsculo, lindo e aconchegante, com peixes
fresquíssimos e um shushiman fantástico -um sushiman que, se fosse barbeiro, eu
deixaria sem medo que me barbeasse durante um terremoto.
A essa altura eu tinha menos
de 30 reais no bolso.
Atravessei a rua como quem
sobe do Inferno pro Paraíso, mas sem a permissão de Deus nem o auxílio do
Diabo. Sentei no canto do balcão e disse a mim mesmo: "O certo era você ir
embora agora, de táxi. Se não for, peça uma cerveja ou uma dupla de sushis e
encare uma caminhada até o metrô. Essas são as duas únicas opções, sério".
Quando o garçom se aproximou,
eu disse:
- Quero um combinado
especial, um temaki de polvo, uma cerveja grande e uma dose de saquê.
Depois pensei: "Essa
pode ser minha última refeição em liberdade. É melhor aproveitar". Comi
sem pressa e sem esperança: aquilo não tinha como acabar bem. Em todo caso, não
custava tentar. Estudei o ir e vir do garçom e, no momento em que ele entrou de
novo na cozinha, eu abaixei o boné, levantei devagar, dei boa-noite pro
segurança e pulei pra dentro de um táxi.
Já com a cabeça no
travesseiro, tentei me convencer de que não tinha motivos pra acordar culpado
no dia seguinte:
- Tá tudo bem. Acontece. Os
sushis estavam maravilhosos.
(Des)entendimentos
— Oi, boa noite. Eu gostaria
de falar com o dono do restaurante, por favor.
— Quem fala?
— Prefiro não me identificar.
Mas é importante. E do interesse dele.
— Alô?
— Olha, desculpa, eu não
quero me identificar, mas aconteceu o seguinte: ontem à noite eu fui aí no seu
restaurante, vi que tava sem a carteira e saí sem pagar.
— Como?
— Eu sou cliente de vocês.
Adoro o restaurante. Mas ontem eu tava numa festa aí perto. Minha mulher foi
embora antes de mim. Minha carteira tava na bolsa dela. Eu fiquei bêbado. Saí
da festa não lembro como. Comi um combinado aí... Umas cervejas... Na hora de pagar
que eu vi a merda. Eu tava bêbado demais pra tentar explicar pro senhor o que
tinha acontecido. Fiquei apavorado e fui embora sem pagar. Tô morrendo de
vergonha. Queria que o senhor me passasse o número da sua conta pra eu
depositar o que devo. Foi um combina...
— Pode repetir história?
Repeti.
— Nom precisa pagar. Dessa
vez sushi de graça. Se veio aqui em restaurante bêbado, é porque gosta de
restaurante. Se ligou pra contar, é porque boa pessoa.
— Acho que o senhor tá
enganado...
— Nom, nom. Aqui como casa de
cliente.
— Senhor, acredite, eu fiz
todo um cálculo pra eu conseguir fugir sem o garçom me pegar. Não sou boa
pessoa, não. Me passe os dados da sua conta, por favor.
— Nom tá entendendo? Hoje nom
paga. Próxima vez que nom tem carteira fala comigo. Aí nom precisa correr, né?
— Acho que vou sair mais
humilhado dessa conversa do que do seu restaurante.
— Como?
— O senhor é que é uma boa
pessoa.
— Conversa ruim: boa pessoa,
má pessoa... Má pessoa quem mata outra pessoa.
— Ah, meu Deus... Bom,
obrigado. Obrigado mesmo! Juro que vou voltar aí em breve.
— Traz carteira, hihihi.
— Pode deixar.
— Cliente bem-vindo.
— Muito obrigado. Uma boa
noite pro senhor! Bom trabalho.
— Arigatô!
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