A aposta - Luis Fernando Verissimo
Tinham jantado na casa de amigos e mais tarde, na cama,
Maria perguntou a José:
– Aquilo que você contou no jantar, é verdade?
– O que, da aposta? – É. Pra mim você nunca tinha
contado.
– Contei não? Contei sim! E, também, faz tanto tempo. –
Você não achou que eu deveria saber?
– Foi uma bobagem, Maroca. Daquelas coisas de mesa de bar
quando já está todo mundo meio alto...
– Mas você apostou mesmo que, a primeira mulher que
entrasse no bar, você casaria com ela?
– Apostei. E, felizmente, a primeira mulher que entrou
foi você, a mulher da minha vida, a mãe dos meus três filhos, minha querida
esposa há 35 anos, 35 anos de felicidade e...
– E se tivesse entrado outra? – Mas não entrou.
– Mas se tivesse? Pela aposta, poderia ser qualquer
mulher. Bonita, feia, branca, preta, amarela, manca, louca...
– Claro que não. Se não fosse uma mulher linda como você,
eu não manteria a aposta. Mas quis o destino que...
– Não, Zeca. O destino não. O acaso.
– Então tá: o acaso. Não é assim que acontecem todos os
casamentos? As pessoas se conhecem por acaso, se apaixonam e se casam. O acaso
é apenas um instrumento do destino. E o nosso destino era 35 anos de um
casamento perfeito.
– 35 anos por acaso. Porque um dia eu entrei num bar pra
tomar uma Coca-Cola. Está aí, devemos nossa vida a uma Coca-Cola, que, aliás,
você pagou. E a uma aposta. Uma aposta, Zeca.
– Já me arrependi de ter contado a história. Se não
contasse, você nunca ficaria sabendo.
– Mas agora eu sei. Só não sei como eu vou conseguir
viver, daqui pra frente, sabendo.
– Ora, Maria! Que diferença faz como nós nos encontramos?
Se não fosse a aposta, nos conheceríamos de outra maneira. De qualquer jeito,
nossa vida de casados seria exatamente igual.
– Não, Zeca. Estou me imaginando naquela calçada, há 35
anos. Com calor, com sede, me perguntando: entro ou não entro num bar pra tomar
uma Coca?
– Entra no bar, Maria.
– Entro ou não entro? Que vida eu teria se não entrasse
no bar? Em quem eu esbarraria, na esquina, por acaso? Talvez um milionário, com
quem me casaria, e hoje estaria vivendo num condomínio em Boca Raton? Talvez...
– Entra no bar, Maria!
A aposta (2) - Luis Fernando Verissimo
Depois de 35 anos de casados, Maria ouvira José contar,
numa roda de amigos, como os dois tinham se conhecido. Numa mesa de bar, depois
de muitos chopes, ele fizera uma aposta: se casaria com a primeira mulher que
entrasse no bar. Fosse quem fosse. Qualquer mulher, salvo muito velhinha – e
assim mesmo dependendo do seu estado de conservação – ou travesti. E quem
entrara no bar para tomar uma Coca-Cola, linda no seu vestido de verão, fora a
Maria.
José puxara assunto com Maria. Oferecera-se para pagar
sua Coca-Cola. Pedira seu telefone. E menos de seis meses depois os dois
estavam casados. E o casamento dera certo. Tinham três filhos ótimos.
Conviviam bem, sem grandes arroubos de paixão (fora uma
louca escapada para Cancún, sem as crianças e com lua cheia), mas bem. José
trabalhava com papel por atacado, Maria estudava Química, mas abandonara os
estudos para se casar. Tinham uma situação financeira estável, uma vidinha boa.
E José nunca contara a Maria sobre a aposta. Em 35 anos de vida conjugal, nunca
contara.
– Você não acha que eu tinha o direito de saber?
– Ora, Marusca. Depois de tanto tempo, que diferença faz?
– Como, que diferença faz? Nosso casamento se deve a uma
aposta. Ao acaso.
– Não. Ao destino. À sorte. Foi você que entrou por
aquela porta do bar, para minha sorte, e não outra mulher. Nosso destino era
nos encontrarmos, de um jeito ou de outro. A sorte empurrou você para dentro do
bar.
– Foi o acaso. Eu não conquistei você. Não foram meus
encantos, meus cabelos, meu perfume, sei lá. Meu único mérito foi entrar por
aquela porta.
– Eu me apaixonei por você em dois minutos!
– Por acaso!
E Maria pôs-se a divagar sobre como seria sua vida se não
tivesse entrado no bar. Quem garantia que ela não encontraria – no mesmo dia –
outro homem, um milionário que lhe daria conforto, luxo, emoções... Ou, ou...
Maria se entusiasmou com seu próprio devaneio:
– Ou, ou... Se eu tivesse continuado no meu curso de
Química. Quem garante que minhas pesquisas não teriam ajudado a descobrir a
cura do câncer? Entrar naquele bar para tomar uma Coca-Cola pode ter custado a
vida de milhões de pessoas. Se eu não tivesse entrado no bar e casado com você,
poderia muito bem, hoje, ter um Prêmio Nobel. Ou, ou...
José perdeu a paciência.
– Está bem, Maria. Foi o acaso. Tudo é acaso. A vida
humana é um acaso. Eu, você, nossos filhos, todo o mundo é por acaso. Só um
espermatozoide, entre os milhões expelidos pelo meu pai, chegou ao óvulo da
minha mãe. Só um, por acaso. E se entre os que não chegaram, os que perderam a
corrida, estivesse o que descobriria uma cura, nem digo do câncer, mas do
resfriado? E se em vez do espermatozoide que gerou o Júlio César tivesse
chegado ao óvulo da mãe dele outro goleiro, que impediria os 7 a 1? Hein? Hein?
Mais tarde, na cama, José beijou o pescoço da Maria e
disse:
– Marusca, lembra daquela semana em Cancún?
Maria o empurrou e disse:
– Eu não estou aqui, José. Eu não entrei naquele bar.
Breve cena no domingo do Balcão - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
Domingo, sete da noite, entrou no Balcão, viu que seu lugar predileto estava vazio. Para quem não conhece o bar, o Balcão tem uma forma (quase) de ferradura e as pessoas sentam-se dos dois lados, isto é, dentro e fora. De maneira que, se você está com alguém, senta-se de frente para ela (ou ele). Muitos anos atrás, sentava-se apenas do lado de fora, como qualquer bar normal. Porém, em um dia que estava tudo lotado, um cliente simplesmente carregou a banqueta para dentro e ficou de frente para a namorada. Rapidamente copiado, outros que esperavam lugar fizeram o mesmo. Ficaram de pé, não havia banquetas para todos. No dia seguinte, Chico Milan e Ticha, sua mulher, os donos, tinham providenciado banquetas para todos, nunca mais a cena mudou. Tiveram apenas de rearrumar a logística dos garçons.
Ele sentou-se. Seu lugar era o primeiro, no que seria o pé da ferradura. Junto à ponta, onde fica o estreito corredor para passagens dos garçons. Ficava sempre de costas para o caixa e para o quadro negro onde escrevem o que falta naquela noite. Raramente falta alguma coisa. Pediu caipirosca de lichia. Nunca tinha bebido, até o dia em que viu duas mulheres morenas, muitíssimo parecidas, sorrisos esplendorosos, como ele definiu, tomando com ar deliciado. Um garçom informou que eram mãe e filha. A jovem, cantora, a mãe, arquiteta. Mais pareciam irmãs. Ele se interessou pela mãe, quis saber mais, porém o garçom calou-se, cioso da privacidade de suas clientes.
Então, ele viu entrar uma mulher alta, jeito de modelo, um menear nervoso de cabeça. Ela olhou em torno e, mesmo com o Balcão semivazio, era inicio da noite de domingo, sentou-se diante dele. Podia ter sentado onde quisesse, mas veio para perto. Indagou:
- Está esperando alguém?
- Não.
- Então não incomodo?
- Por que haveria de?
- Como você disse?
- Por que haveria de?
- Engraçado esse teu modo de falar.
A caipirosca dele chegou, ela quis saber do que era. Lichia, ele respondeu, lacônico. A jovem era interessante, bonita, lembrava a atriz Scarlett Johansson. Ela pediu uma caipirosca igual.
- Você é casado?
- Não preciso responder a essa pergunta. Minha vida é minha vida.
- Você mexe com quê?
- Como?
- Mexe com quê? O que faz?
- Você é mineira?
- Sou, como adivinhou?
- Por causa da pergunta. Mexe com quê. Mineiro que fala assim. Vendo seringas.
- Seringa de injeção?
- Sim.
- Que profissão mais engraçada. Tenho horror a injeções, quando preciso tomar alguma, desmaio. Desmaio mesmo. Caio dura. Dá para viver disso?
- Me viro bem.
Ela tomou um gole, dois, em silêncio, parecia acabrunhada.
- Você está bem?
- De baixo astral, vim aqui para encher a cara. Meu noivo me largou. Desapareceu faz seis dias, não telefonou, não deu notícias, não mandou e-mail nem telegrama.
- Tinham brigado?
- Usei calcinha vermelha, ele odiou, disse que ia comprar...
- Cigarro, e não voltou.
- Não, ia buscar um beirute, estávamos com fome. Sumiu.
- Foi à lanchonete onde ele costumava comprar? Perguntou?
- Disseram que ele apanhou o beirute, dois guaranás e contou que ia comer com a namorada.
- Que é você?
- Ele terá outra?
A lágrima correu pelo rosto dela, ele quis ajudar, buscou um lenço no bolso, não tinha. Houve época em que os homens andavam com lenços de tecidos finos, podiam oferecer, podiam enxugar as lágrimas das mulheres, era de bom tom. Odiou-se ao apanhar um guardanapo de papel e ousou passá-lo sobre a pele dela. Sentiu imenso carinho sentindo o desamparo dela. A jovem chorou convulsivamente. Levantou-se:
- Me desculpe, preciso ir. Preciso ir.
- Para onde vai? Quer que vá junto?
- Não! Vou passar em casa, ver se ele chegou. Se não chegou, irei à lanchonete de novo. Tenho passado por todos os lugares onde há um bom beirute, estou com fome. Fome e dor de cotovelo são horríveis.
- Come aqui, é bom, muito bom.
- Tenho medo dele ter voltado e não me achar em casa. Você me paga a caipirosca?
- Claro...
Saiu correndo, chorando, Ticha e Chico, que chegavam, ficaram olhando. Marcelo, no caixa, fez um ar de quem não entendeu, achou que os dois tinham brigado. Porém o Marcelo já viu tantas naquele bar que não se surpreende mais com nada.
A metade do copo - Gregorio Duvivier
A viagem foi
insuportável. Viajar de avião é uma sucessão de filas: fila do check-in, fila
do embarque, fila do desembarque, fila da imigração, fila do táxi. Hoje em dia,
pra piorar, você pega um ônibus da sala de embarque até o avião.
Eles não entendem que
se você viaja de avião é exatamente porque você não queria pegar um ônibus? A
comida do avião, nem precisa dizer, era odienta. Nova York estava um gelo. As
ruas são cheias de brasileiro e kombis de cachorro-quente. Parece Osasco. Só
que nevando.
Os taxistas são todos
paquistaneses ou afegãos e falam inglês pior que você. Passam a viagem falando
no celular -em paquistanês ou afegão. E, no final, você tem que dar gorjeta.
No bar é a mesma
coisa. A cerveja é quente, amarga, sem colarinho e custa uns 20 reais.
Fora a gorjeta.
Voltamos de metrô, que tem um cheiro de cachorro com notas de rato, urina e ovo
podre. A única coisa boa é que a viagem foi com a minha esposa. Ela se diverte
com qualquer coisa.
*
A viagem foi uma
delícia. Pra começar, viajamos de avião -podia ser de navio, que seria uma
opção muito mais demorada.
Como a gente tá
acostumado a andar de busão, o pessoal do aeroporto levou a gente num ônibus
até o avião, pra transição entre os meios de transporte ser mais amigável.
No avião, linda
surpresa: a TAM ainda serve comida! E vinho e sobremesa. Foi um festim.
Chegamos em Nova
York. E estava nevando! Foi muito bom pra gente que queria fugir do calor de
São Paulo. E quando a gente sentia falta de casa, era só ir ao Times Square. Só
tinha brasileiros. E kombis de comida!
Parece a rua lá de
casa. Só que nevando! Pegar táxi é uma experiência antropológica. Cada táxi que
você entra é uma imersão em uma cultura distante. A trilha sonora não poderia
ser melhor: o taxista dirige, invariavelmente, falando ao celular em línguas
que você nunca ouviu antes.
Fomos a um bar
delicioso, que teve a ideia brilhante de servir a cerveja um pouco mais quente
pra contrabalançar o frio que estava lá fora. E sem o colarinho, que é um
desperdício de cerveja. E a cerveja tem gosto, ao contrário das brasucas.
Valeu cada centavo.
Na volta, pegamos um metrô. Isso é surreal: eles têm metrô! E funciona até
tarde. E passa na cidade toda. E o cheirinho me lembrou do Jorge, nosso bassê.
Quase chorei de
saudade. Não sei se o meu marido gostou. Acho que ele preferia ter ido sozinho.
Saideira da cerveja ou do batom? - Fabricio Carpinekar
Não sei quem mente mais: o homem dizendo que está
voltando ou a mulher avisando que está saindo? A saideira da cerveja ou a do
batom?
O homem é uma criança com os horários. Sua dificuldade de
relacionamento é antes com a verdade. Não teria nenhum problema em permanecer
na mesa conversando e bebendo com os amigos. Sua mulher não demonstrou nenhuma
insatisfação ao longe. A questão é que ele inventa de ser melhor do que
realmente é, antecipar um bom comportamento e manda mensagens falando que já
está a caminho de casa quando está a caminho de uma nova loira no copo.
Incrimina a si mesmo de graça.
Talvez seja um recalque infantil, ele se vê culpado por
permanecer na rua e confunde a esposa com sua mãezinha no passado.
Depois da primeira mentira, não há como reaver a pureza.
Ele vai atualizando o seu fictício retorno ao lar, com um delay de uma hora.
– Estou me despedindo dos amigos.
– Estou no carro. – Estou no meio do caminho. – Estou
quase chegando.
– Estou subindo. – Estou na porta.
Nessa enrolação sem fim, pode mandar uma mensagem
avisando que está na cama também, porque ela tratou de ir embora de tanto
esperar.
Homem, quando exagera com detalhes, indica que vem
aprontando. Nunca manda um WhatsApp para nada e de repente faz boletim minuto a
minuto? É óbvio que cometeu alguma bobagem. Jamais dá satisfação
espontaneamente, para começar a se explicar de uma hora para outra, é que
perdeu o domínio dos fatos.
E não adianta alegar engarrafamento (é madrugada!) ou
lamentar que foi pego numa blitz (com notícia nas redes sociais). Mais fácil se
ele tivesse uma bolsa para lamentar que não ouviu o celular.
Da mesma forma, a mulher se arrumando é uma boataria. Ela
não precisava anunciar o tempo exato de sua preparação, porém morde a língua e
congela o cronômetro: só 10 minutinhos.
Em 10 minutinhos, ela ainda toma banho. São 10 minutinhos
intermináveis. Ela passa correndo nua de toalha na cabeça para dar uma falsa
noção de pressa. Toda mulher faz isso quando está atrasada. Cruza a frente da
televisão enquanto o homem espera.
Ela descreve suas ações com uma única frase “agora é
rapidinho, só falta...”
Só falta secar os cabelos. Só falta escolher o vestido.
Só falta alisar os cabelos. Só falta se maquiar.
Só falta achar o maldito sapato que combina com aquele
vestido, senão ela terá que começar tudo de novo.
Você levanta diante das várias insinuações de que
finalmente vai sair, segura a maçaneta, abre a porta, cumprimenta o vizinho da
porta da frente e volta para dentro. Mulher é uma permanente ameaça de bomba.
Obriga o homem a evacuar o prédio sempre com seus alarmes falsos.
Não sou capaz de definir quem mente mais. O que sei da
vida é que a mulher deveria se arrumar enquanto o homem volta do bar.
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