sexta-feira, 5 de maio de 2017

BAR











Como fazer algo para sempre - David Coimbra

Tinha um bar, ali no Floresta, que diziam que era um bar do Lupicínio.
Não sei se era mesmo dele, nem lembro bem onde ficava, já passei por tantos bares na vida.
O certo é que era numa daquelas ruas bonitas e desvalorizadas da região.
Se Porto Alegre fosse uma cidade com melhor planejamento urbanístico, o Floresta se tornaria um dos lugares mais aprazíveis do sul do mundo. Aquele belo casario, aquelas ruas arborizadas, o pequeno comércio do entorno, tudo poderia ser mais bucólico.
Foi lá que surgiu a Sociedade Floresta Aurora, clube que conta parte da história do Brasil.
A Floresta Aurora foi fundada por escravos antes da Abolição. O objetivo inicial era auxiliar as famílias de cativos e alforriados quando algum parente morria, mas a sociedade ganhou força e logo se transformou em referência para a comunidade negra. Lá aconteciam os “bailes dos morenos”, como se dizia.
A Floresta Aurora era o contraponto afro das sociedades germânicas que se multiplicaram pela cidade no fim do século 19 e no começo do 20. Isso de se reunir em clubes era coisa de alemão. A Sogipa, o Juvenil e o próprio Grêmio foram criados por inspiração de descendentes de alemães.
O Floresta também era um bairro germânico, e a casa em que funcionava o tal bar havia sido moradia de uma família de alemães. Mas, como já disse, não recordo da localização exata.
O que a minha memória traz gravado daquele bar foi algo que lá se passou comigo e com dois de meus amigos.
Era uma noite em que tínhamos muito pouco dinheiro.
Está certo: isso não era novidade, nós nunca tínhamos muito dinheiro. Mas naquela noite em especial tínhamos ainda menos do que o normal.
No bolso direito das minhas calças US Top havia uma nota solitária, e eu precisava de troco para tomar o Linha 20 de volta para casa. Os outros dois amigos juntaram os seus caraminguás, umas notas amarfanhadas que na época chamávamos de PTBs. Contamos e concluímos que dava só para um único prato de feijão mexido e duas Malzbier, que era mais barata.
Dizia-se, então, que Malzbier era boa para mulheres em fase de amamentação. Dava leite. De onde será que tiraram aquilo? Alguém acredita que uma cerveja preta pode dar leite?
Em todo caso, sempre gostei de Malzbier, só que não dá para tomar mais do que uma: doce demais.
Nós sentíamos grande fome naquela noite, e alguma sede. Pedimos o prato solitário de feijão mexido e as duas Malzbier. O garçom estranhou:
– Só um feijão?
Suspirei:
– É... Não estamos com muita fome...
Ele sorriu e foi para a cozinha.
Enquanto esperávamos que voltasse, debatemos rapidamente se não seria melhor ter comprado uns dois cachorros-quentes com nosso dinheiro. Mas foi uma dúvida fugaz. Queríamos ouvir os músicos do bar cantando Lupicínio.
“Nunca, nem que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar, nem mesmo assim, as pazes contigo eu farei.”
Não sei se o garçom ouviu aquela conversa. O que sei é que, quando ele chegou, fez aterrissar na mesa não um, mas três pratos de feijão mexido.
Olhei para ele:
– Nós pedimos só um... Em resposta, ele ergueu da bandeja outra travessa e botou na minha frente:
– Pedi uma saladinha de alface e tomate pra vocês. E saiu, sem esperar por agradecimento.
Ficamos olhando para nossos pratos. Um animado morro de feijão mexido fumegante, encimado por dois ovos fritos luminosos.
Ainda hoje posso sentir o que senti: o prazer de misturar tudo da forma como minha mãe sempre criticou, quando estávamos à mesa: – Parece um estivador!
Eu era um estivador, sim, senhor. Piquei o tomate bem picadinho, e a alface também, e espetei com a ponta do garfo a gema do ovo, deixando que o creme amarelo escorresse pelo negro do feijão. E então reuni parte da mescla no garfo e... ah... que delícia aquele primeiro bocado.
Eram talvez duas horas da madrugada, estávamos tão somente com o dinheiro das passagens garantido, mas nos sentíamos bem. Ao microfone, alguém cantava que a saudade dissesse àquela moça, por favor, como fora sincero o seu amor. E sobre a mesa tínhamos uma cervejinha preta, um feijão mexido com ovo frito e uma boa conversa de amigos do peito. Num canto, o garçom nos observava detrás de um sorriso. Estava satisfeito porque nos fizera felizes naquela noite.
Já disse e repeti: não me recordo de muita coisa do bar. Mas recordo da generosidade daquele homem. Um gesto de bondade numa noite perdida. E continua comigo. Comigo continuará para sempre.




Zizi Possi - Nunca





Adriana Calcanhotto - Nunca








Acerto de contas numa mesa de bar - Manuela Cantuária

 ilustração: Silvis



Um grupo de amigos em uma mesa de bar, o garçom traz a conta.

Tchelo: Como vocês querem fazer? Vamos dividir igual?

Rodrigo: Mais prático. Quanto deu?

Amanda: Então, gente, eu não bebi cerveja.

Suzana: Tá, a gente tira sua parte, o que você comeu mesmo?

Amanda: O meu foi o gurjão, mas o Rodrigo vai rachar comigo. 

Rodrigo: Por que se eu mal toquei no gurjão? 

Amanda: Mas eu abortei um filho seu e você nunca pagou a sua parte.

Rodrigo: Faz o seguinte, Amanda é minha convidada. Aqui aceita vale-refeição?

Tchelo: Então também vou contribuir, porque fui eu que apresentei os dois, inclusive disse pra Amanda que você era ótimo.

Amanda: Nossa, nem lembrava disso, não precisa.

Tchelo: Faço questão.

Suzana: Então deixa que eu pago o do Tchelo, que eu tô devendo de quando ele assumiu a culpa por aquele atropelamento e pegou dois anos de cadeia.

Tchelo: Imagina, foi no semiaberto.

Suzana: Mas eu pago aqui logo e fica elas por elas, pode ser?

Rodrigo: Alguém pediu uma soda?

Amanda: E se, pra simplificar, eu pagar a parte da Suzana, já que ela vai pagar a parte do Tchelo, que vai pagar parte da minha parte? Aí a gente já mata o lance do Babyssauro.

Suzana: Menina, você arrancou a cabeça do meu Babyssauro na primeira série, verdade. Mas aí tem que converter pra dólar, porque esse brinquedo foi comprado nos Estados Unidos em 1997. Deixa eu calcular a correção monetária. 

Rodrigo: Suzana não tá esquecendo de nada, não?

Suzana: Verdade, pedi uma dose de vodka, mas é nacional.

Rodrigo: E…

Suzana: Putz, pode crer, eu torturei o Rodrigo em uma vida passada, ainda taquei fogo na casa dele com toda a família dentro quando eu era do exército da Joana D'Arc, uma coisa chatíssima. Então vamos lá, vou começar tudo de novo. Eu pago a vodka, o gurjão, a tortura medieval. Aí você paga duas cervejas e meia. Mas peraí, teve o aborto, quanto que foi o aborto?

Rodrigo:Essa conta veio errada. Ninguém pediu soda.

Tchelo: Não fala nada, aproveita que o garçom esqueceu de cobrar a porcentagem dele.

Rodrigo: Mas tá aqui os dez por cento, eu conferi.

Tchelo: É, mas e a dívida histórica? Nessa mesa metade é descendente de europeu, daí tem todo aquele ouro de Minas Gerais, pau-brasil a rodo, deixa quieto.

Suzana: Alguém troca uma nota de duzentos?


Rodrigo Yudi Honda é pintor, desenhista, formado em Arquitetura e Urbanismo pela USP

Bob Dylan




A falta que faz o bom bar - David  Coimbra



O Tio Sam fechou. Tio Sam é o bar do Leblon que era frequentado pelo João Ubaldo Ribeiro. Escrevi ontem sobre a feijoadinha que era servida aos sábados no Tio Sam e hoje me contaram que o bar não existe mais. Fiquei chocado. Na verdade, acho até que já faz algum tempo que me disseram que o Tio Sam havia fechado, só que tinha me esquecido. Assim, fiquei chocado duas vezes pelo mesmo motivo.

O Tio Sam bem merecia o choque duplo. A feijoadinha e a caipirinha deles eram supimpas, e ainda havia o colorido da presença do João Ubaldo. A última vez em que o vi lá, ele vestia bermudas e chinelos de dedo. Conversava molemente com os amigos, dava risadas, bebericava um chope.

Tinha lido em algum lugar que o João Ubaldo não bebia mais, por motivos de saúde, mas é claro que não acreditei. E, de fato, João Ubaldo seguia bebendo sem culpa. Ou talvez com alguma culpa, sei lá. Por volta das cinco da tarde, ele foi embora. Saiu caminhando devagar, em direção às entranhas do Leblon. Morava ali perto.

Sinto nostalgia de bares e restaurantes que morreram. Os melhores eram os comandados por gente da noite, que não liga preconceito, tem estrelas na alma e a lua dentro do seu peito. O Lilliput, que também citei ontem, tinha um trio deste jaez: o Gordo Damiani, o Cuca Lima e o Atílio Romor. Uma vez, depois das quatro da madrugada, o meu amigo Ricardo Carle, no clímax de uma discussão com o Gordo Damiani, atirou-lhe uma cadeira como derradeiro argumento. A cadeira passou voando por cima das cabeças de um casal que namorava numa mesa encostada à parede e errou o Damiani, que, para acalmar o Ricardo, pediu mais uma rodada de chopes por conta da casa. O casal, sensatamente, foi embora.

Ao lado do Lilliput, rebrilhava o Jazz Café, do grande Dirceu Russi. Foi lá que, certa noite, o Ricardo Carle pediu um prato de alguma coisa com cogumelos. Depois que ele deu a segunda garfada, reparei que havia algo estranho na expressão de seu rosto.

- Tudo bem, cara? - perguntei.

- Tudo. Por quê?

- De repente, tu me pareceu diferente?

- Tu anda bebendo demais?

Ri, mas, cinco minutos depois, entendi o que estava acontecendo: o Ricardo era alérgico a cogumelos. Os lábios dele incharam como se estivessem sendo bombeados. Pareciam duas bananas-nanicas.

- Que horror! - gritou a Mariana Bertolucci, que estava junto, tirando da bolsa um espelhinho no qual o Ricardo se mirou. Depois de se contemplar por uns 10 segundos, ele rosnou:

- Maldito cogumelo!

E pediu outro chope.

Veja só: contei duas histórias de bares que se foram e nas duas o personagem foi o Ricardo Carle, que também se foi. Saudade do velho Ricardo. Bons bares são assim: há pedaços de lembranças pregados nas paredes deles. Porque um bar é um lugar do bem. Você vai a um bar para conversar com amigos ou para encontrar amores, em um bar você ri, conta e ouve histórias, confessa o inconfessável ou diz mentiras sinceras. Num bar, você procura outras pessoas, aproxima-se delas. O que há de mais humano do que isso?


Certos bares deveriam ser tombados pelo patrimônio histórico, porque são monumentos à amizade e à convivência. Quantos amores se formaram em uma mesa de bar? E quantos se desfizeram também? Uma saudação a todos os bons bares que não existem mais. Melhor: um brinde a eles. Saúde!




Will Tirando






MegaRex - Bar do Zé Loco

Bar - Ivan Ângelo


A moça chegou com sapatinho baixo, saia curta, cabelos lisos castanhos arrumados em rabo-de-cavalo, sorriu dentes branquinhos muito pequenos, como de primeira dentição, e falou o senhor me deixa telefonar? de maneira inescapável.

O homem da caixa registradora estava olhando o movimento do bar, tomando conta de maneira meio preguiçosa, sem fixar muito os olhos no que o rapaz do balcão já havia servido aos dois fregueses silenciosos, demorando-os mais no bêbado que balançava-se à porta do botequim ameaçando entrar e afinal parando-os no recheio da blusinha preta sem mangas que estava à sua frente, o que o fez despertar completamente com um e a senhora o que é?

A moça constatou contrariada que havia desperdiçado a primeira carga de charme e mostrou novamente seus pequeninos dentes, agora fazendo a precisadinha urgente, dizendo eu posso telefonar? com ar de quem entrega ao outro todas as esperanças.

O homem falou pois não e levantou a mão meio gorda do teclado da caixa registradora, abaixou-a olhando para o bêbado que subia o degrau da porta, retirou de uma prateleira debaixo da registradora um telefone preto onde ainda estava gravado no meio do disco o selo da antiga Companhia Telefônica Brasileira e empurrou-o para a moça dizendo não demore por favor que já vamos fechar.

A moça tirou o fone do gancho e murmurou baixinho putz, sopesou ostensivamente o aparelho e disse bajuladora pesadinho hein?

O homem sorriu atingido pela seta da lisonja dizendo éééé antigo.

A moça levou o fone ao ouvido e discou 277281 com um dedo bem tratado de unha lilás.

O homem da caixa tirou os olhos do dedo, pegou um lápis enganchado na orelha direita e anotou a milhar explicando é pra o bicho, não se importando se a moça ouvia ou não e devolveu o lápis à orelha enquanto olhava o bêbado que navegava agora à beira do balcão.

A moça falou quer fazer o favor de chamar o Otacílio e ficou esperando.

Um homem chegou ao lado dela cheirando a cigarro, falou para o caixa me dá um miníster, olhou intensamente os olhos dela e imediatamente os seios.

A moça enrubesceu e se tocou rápida procurando o botão aberto que nem havia e protegeu-se expirando o ar com o diafragma e avançando os ombros para disfarçar o volume do peito.

A caixa registradora fez tlin, um carro freou rangendo pneus e uma voz forte gritou filha da puta com um u muito longo.

O homem da caixa deu o troco ao homem que comprara cigarros e falou faz de conta que não ouviu nada menina isso aqui é assim mesmo.

O homem que comprara cigarros afastou-se e foi ver da porta o que estava acontecendo na rua.

A moça voltou-se simpática para o homem da caixa mas parou atenta aos sons do fone, mudou de atenta a decepcionada e falou depois de instantes diz que é a Julinha.

O homem que comprara cigarros parou na porta, abriu o maço de cigarros e acendeu um.

O homem da caixa falou ô José esse aí tem de pagar primeiro e o rapaz do balcão parou de servir a cachaça para o bêbado e falou qualquer coisa com ele enquanto o homem da caixa procurava explicar-se dizendo depois não paga e ainda espanta freguês.

A moça sorriu condescendente.

O homem fumava à porta e olhava as pernas dela.

A moça pôs uma perna na frente da outra defendendo-se cinqüenta por cento e falou de repente alegre oi! demorou hein? E procurando um pouco de privacidade virou-se dizendo ficou com raiva de mim?

O homem da caixa fingia-se distraído mas ouvia o que ela dizia.

Pensei. Não me ligou.

O bêbado navegou contornando arrecifes e chegou ao caixa com uma nota de quinhentos na mão.

Mas não é isso, não é nada disso.

O homem da caixa disse pode servir José.

Não sei... fiquei com medo, só isso.

O bêbado começou o cruzeiro de volta.

Não, não. Não é de você. Acho que é assim mesmo, não é?

A caixa registradora fez tlin marcando quinhentos cruzeiros.

Poxa, Otacílio, pensa. O tanto de coisa que vem na cabeça da gente numa hora dessas. Vocês acham tudo fácil.

A cara do homem da caixa estava um pouco mais desperta e maliciosa.

Claro que é difícil. É só querer ver o lado da gente, pô.

O rapaz do balcão tirou o mesmo copo meio servido e a mesma garrafa e completou a dose do bêbado.

Tá legal. Eu também acho: vamos esquecer o que aconteceu ontem. Falou.

O bêbado olhou atentamente para o copo como se meditasse mas na verdade apenas esperando o momento certo de conjugar o movimento do navio com o de levar o copo à boca e quando o conseguiu bebeu tudo de uma vez com uma careta e um arrepio.

A moça ouviu com ar travesso o que Otacílio dizia e sorriu excitada seus dentes branquinhos.

O homem da caixa olhou para o homem da porta e a cumplicidade masculina brotou nos olhares.

Não, sábado não dá. Aí já passou. Ora, como. Passou do dia, Ota, não dá. Não dá pra explicar aqui. Você não entende? Tem dia que dá e tem dia que não dá, pô.

O homem da caixa piscou para o homem que fumava na porta como quem diz você que tava certo.

Uai, só daqui a uns quinze dias. Lógico que eu me informei.

A moça viu o olhar do homem da porta e virou-lhe as costas.

Hoje!? Tá louco?

O homem que fumava ficou olhando-a por trás.

Papai não vai deixar. Só se... Só se eu falar com a mamãe e ela falar com ele.

Alguém chegou e falou cobra duas cervejas e me dá um drops desse aqui ó hortelã.

Ora, que que eu vou falar. Não sei, pô. Eu dou um jeito. Pode deixar que eu me viro.

A caixa fez tlin e o homem foi embora sem que ela o visse.

Não, eu vou. De qualquer jeito eu vou. Agora eu que tou querendo.

A moça olhou para o homem da caixa e fugiu depressa daquela cara agora debochada.

Então me espera. Eu vou aí. Chau.

A moça desligou e ficou uns instantes com o olhar baixo tomando coragem e depois falou para o homem posso ligar só mais unzinho?

O homem da caixa falou pode alongando o o muito liberal e olhando fixamente de cima a sugestão do decote.

A moça procurou um ponto neutro para olhar e achou o rapaz que lavava copos atrás do balcão, enquanto esperava o sinal do telefone, depois discou 474729 e ficou olhando o ambiente.

Uma armadilha azul fluorescente de eletrocutar moscas aguardava vítimas.

O rapaz do balcão olhava-a furtivamente e murmurou gostosa, de dentes trincados.

O bêbado esperava o melhor momento de descer do degrau para a rua com um pé no chão e outro no ar, como alguém inseguro que se prepara para descer de um bonde andando.

O homem da porta juntou os cinco dedos da mão direita e levou-os à boca num beijinho transmitindo ao homem da caixa sua opinião sobre ela.

O homem da caixa respondeu segurando a pontinha da orelha direita como quem diz é uma delícia.

A moça murmurou será que saíram? explicando-se para ninguém.

Os dois homens silenciosos que bebiam cerveja encostados no balcão não estavam mais lá.

A moça ficou de lado e o homem da caixa fez um galeio para ver um pouco mais de peitinho pelo vão lateral da blusinha sem mangas.

A moça emitiu um ah de alívio, puxou o fio até onde dava e meio abaixou-se de costas para dizer mamãe? é Júlia com uma voz abafada por braços e mãos e concentrada no que ia dizer.

O homem da porta, o rapaz do balcão e o homem da caixa se olharam rapidamente.

Olha, eu jantei aqui na cidade com a Marilda. Ora, mamãe, a senhora conhece a Marilda, até já dormiu aí em casa. É, é essa. Olha: agora a gente vai ao cinema, viu? Que tarde, mamãe, tem uma sessão às dez e meia. Se ficar muito tarde eu vou dormir na casa dela. É só porque é mais perto, mamãe, senão a gente ia praí. Não tem. A senhora sabe que não tem. A senhora fala com papai pra mim? Não, eu não vou falar. Tá bom. Eu ligo depois do cinema. Só pra confirmar, hein, porque o mais certo é a gente ir pra lá. Um beijo. Bota a gatinha pra dentro, viu? Chau.

A moça ergueu-se, desligou o telefone e perguntou quanto é.

O homem da caixa não estava mais lá e falou pra você não é nada gostosa, atrás dela.

A moça se voltou rápida e viu que todas as portas do bar estavam fechadas.

Os três homens, narinas dilatadas, formavam um meio círculo em torno dela.

Adão ITURRUSGARAI

    




Bar ruim é lindo, bicho -  Antonio Prata

Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio ruins.
Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de 150 anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de 150 anos, mas tudo bem).
No bar ruim que ando freqüentando nas últimas semanas o proletariado é o Betão, garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas acreditando resolver aí 500 anos de história.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos" do garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de literatura.
"Ô Betão, traz mais uma pra gente", eu digo, com os cotovelos apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte do Brasil.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte do Brasil, por isso vamos a bares ruins,que tem mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gateau e não tem frango à passarinho ou carne de sol com macaxeira que são os pratos tradicionais de nossa cozinha.
Se bem que nós, meio intelectuais, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gateau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.
A gente gosta do Brasil, mas muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil.
Assim como não é qualquer bar ruim.
Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, se tiver porção de carne de sol, a gente bate uma punheta ali mesmo.
Quando um de nós, meio intelectuais, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum outro meio intelectual, meio de esquerda freqüenta, não nos contemos: ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim.
Porque a gente acha que o bar ruim é autêntico e o bar bom não é, como eu já disse.
O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas.
Até que uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e nesse ponto a gente já se sente incomodado e quando chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual, nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e universitários, a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó.
Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV.
Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevete e chinelo Rider.
Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico.
E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.
Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos: os que entendem a gente e os que não entendem.
Os que entendem percebem qual é a nossa, mantém o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam em 50% o preço de tudo.
Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato.
Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando reggae.
Aí eles se fodem, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão brasileira, tão raiz.
Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda, no Brasil!
Ainda mais porque a cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres estão todos de chinelo Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gateau pelos quatro cantos do globo.
Para desespero dos meio intelectuais, meio de esquerda, como eu que, por questões ideológicas, preferem frango a passarinho e carne de sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca mas é como se diz lá no nordeste e nós, meio intelectuais, meio de esquerda, achamos que o nordeste é muito mais autêntico que o sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é mais assim Câmara Cascudo, saca?).
- Ô Betão, vê um cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?








Fernando Gonsales




Clarice Falcão - Se esse bar fechar



Um bar no Leblon - Luis Fernando Verissimo

Com tanta gente com medo de vir para o Rio, onde tem zika, assaltos e corruptos saindo, apropriadamente, pelo ladrão, é bom lembrar os visitantes ilustres que já estiveram por aqui e saíram ilesos. E imaginar que tivessem ficado, seduzidos pelo nosso sortilégio tropical, pela caipirinha ou por qualquer outra razão.
Imagine se os ficados se reunissem regularmente num bar do Leblon, desprezando suas diferenças de idade e das épocas em que estiveram no Brasil. Aquele ali com as longas barbas brancas, por exemplo, é o decano do grupo. Seu nome é Charles Darwin e ele chegou ao Rio de Janeiro num navio chamado Beagle.
Apaixonou-se pelas praias, pelas florestas e pelas mulatas, abandonou sua expedição científica e ficou. Quando querem provocá-lo, os outros integrantes da roda pedem “Conta aquela da evolução”. É uma teoria meio maluca do velho sobre a seleção natural na evolução das espécies. Se tivesse voltado para a Inglaterra e publicado sua teoria, ela teria causado uma revolução no pensamento humano. Mas sair do Rio de Janeiro, nem pensar.
Essa que está chegando, caminhando com dificuldade, é Sarah Bernhardt. Era uma atriz famosa quando veio se apresentar no Brasil. Aqui, teve um acidente no palco, machucou a perna, a perna foi mal tratada no hospital e o resultado é que anda com uma perna mecânica. Ficou no Rio e acabou como assistente de figurinista da Globo, onde todos a chamam de “Madame Sarrá”.
Essa figura que acaba de sentar-se entre Darwin e Sarah é interessantíssima. Romeno ou coisa parecida. Seu nome é Saul Steinberg. Desembarcou no Recife, foi para o Rio e, apesar de ter, como lhe diziam, “um traço meio esquisito”, conseguiu emprego numa agência de publicidade e vendeu uns cartuns para a Cruzeiro. Quando a revista fechou, o Millôr ainda tentou ajudá-lo, mas Steinberg preferiu deixar, brasileiramente, para lá e arranjar um cargo público. O negócio dele é um chopinho e um bom papo.
E há também os “professores”, Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss. Os dois estão sempre de bermudas e sandálias. Braudel lecionou por um tempo na USP e escreveu alguns livros mal recebidos pela crítica acadêmica brasileira. Desanimou e foi para o Rio, onde leva uma vida tranquila, joga seu voleizinho de praia e não perde reunião do grupo.
Lévi-Strauss veio ao Brasil fazer um curso de antropologia, casou-se com uma índia (“Que tetons”, diz ele até hoje, com saudade) e, depois de viúvo, instalou-se num pequeno apartamento em Copacabana, onde se dedica a sua paixão secreta, ver novelas na TV. Sempre é o último a chegar, sob vaias dos outros, depois de ver as novelas das seis, das nove e das onze.
E quem é esse que chega, irritado como sempre? É Orson Welles! Sim, o diretor de Cidadão Kane. Ele nunca mais saiu do Rio, depois que veio ao Brasil fazer um filme que nunca completou, na década de 1940. E nunca mais fez um filme, apesar de estar em luta constante para conseguir financiamento. Ocupa-se em anarquizar os filmes dos outros. Mas hoje parece estar de bom humor. Senta e faz um sinal para o garçom:
– Ó, gente boa, um chope e aquela linguicinha!

Caco Galhardo



Pancho

Matanza - O Último Bar




O cavalo no bar - Luis Fernando Verissimo


Cena: um asilo de velhos. Quatro velhinhos sentados num círculo. Os quatro dormindo, apoiados nas suas bengalas.
VELHINHO 1 (Acordando) – O que é que o barman diz para um cavalo que entra no bar?
VELHINHO 2 (Acordando) – O quê?
VELHINHO 1 – Um cavalo entra num bar. O que é que diz o barman?
VELHINHO 2 – Por que um cavalo entraria num bar?
VELHINHO 1 – Não interessa. É uma piada. Entra o cavalo no bar...
VELHINHO 3 (Acordando, para o Velhinho 4, que é surdo) – O que foi?
VELHINHO 4 (Acordando) – Algo sobre cavaco lombar.
VELHINHO 3 – Cavaco lombar? Acho que já tive isso.
VELHINHO 1 – Um cavalo entra num bar. Não interessa por que. O barman diz o quê?
VELHINHO 2 – Quem?
VELHINHO 1 – O barman.
VELHINHO 4 – O Batman?
VELHINHO 1 – O barman. O barman. O cara que serve no bar.
VELHINHO 2 – Boa, boa. Também tem aquela do padre, do pastor protestante e do rabino que entram num elevador. O que é que diz o cabineiro?
VELHINHO 3 – Quem?
VELHINHO 4 – Acho que é mineiro.
VELHINHO 2 – O cabineiro. O ascensorista.
VELHINHO 1 – Isso não existe mais. Hoje num elevador só tem botão. E eu ainda não terminei de contar a minha piada!
VELHINHO 2 – Ah, não tinha terminado? Então conta, conta.
VELHINHO 1 – Um cavalo entra num elevador. NÃO! Um cavalo entra num bar. O barman lhe diz uma coisa. O que é?
VELHINHO 2 – O barman pergunta ao cavalo onde está o seu dono e o cavalo diz: “Deixei ele amarrado lá fora”.
VELHINHO 1 – NÃO!
VELHINHO 2 – O barman diz: “Esta é a primeira vez que entra um cavalo neste bar”, e o cavalo diz: “E com esses preços, será a última”.
VELHINHO 1 – NÃO!
VELHINHO 2 – Você não quer saber o que o ascensorista diz para o padre, o pastor protestante e o rabino que entraram no seu elevador?
VELHINHO 1 – NÃO!
VELHINHO 2 – Diz: “Sabem que isto daria uma anedota?”
VELHINHO 1 – Está bem. Boa. Mas vamos lá: o que o barman pergunta para o cavalo que entra no bar?
VELHINHO 2 – Não sei.
VELHINHO 1 – Por que essa cara comprida?
VELHINHO 2 – Como é?
VELHINHO 1 – O cavalo. Cara comprida.
Silêncio. Depois:
VELHINHO 3 – Onde é que entra o Batman?





Ykenga





Breve cena no domingo do Balcão - Ignácio de Loyola Brandão

Domingo, sete da noite, entrou no Balcão, viu que seu lugar predileto estava vazio. Para quem não conhece o bar, o Balcão tem uma forma (quase) de ferradura e as pessoas sentam-se dos dois lados, isto é, dentro e fora. De maneira que, se você está com alguém, senta-se de frente para ela (ou ele). Muitos anos atrás, sentava-se apenas do lado de fora, como qualquer bar normal. Porém, em um dia que estava tudo lotado, um cliente simplesmente carregou a banqueta para dentro e ficou de frente para a namorada. Rapidamente copiado, outros que esperavam lugar fizeram o mesmo. Ficaram de pé, não havia banquetas para todos. No dia seguinte, Chico Milan e Ticha, sua mulher, os donos, tinham providenciado banquetas para todos, nunca mais a cena mudou. Tiveram apenas de rearrumar a logística dos garçons.
Ele sentou-se. Seu lugar era o primeiro, no que seria o pé da ferradura. Junto à ponta, onde fica o estreito corredor para passagens dos garçons. Ficava sempre de costas para o caixa e para o quadro negro onde escrevem o que falta naquela noite. Raramente falta alguma coisa. Pediu caipirosca de lichia. Nunca tinha bebido, até o dia em que viu duas mulheres morenas, muitíssimo parecidas, sorrisos esplendorosos, como ele definiu, tomando com ar deliciado. Um garçom informou que eram mãe e filha. A jovem, cantora, a mãe, arquiteta. Mais pareciam irmãs. Ele se interessou pela mãe, quis saber mais, porém o garçom calou-se, cioso da privacidade de suas clientes.
Então, ele viu entrar uma mulher alta, jeito de modelo, um menear nervoso de cabeça. Ela olhou em torno e, mesmo com o Balcão semivazio, era inicio da noite de domingo, sentou-se diante dele. Podia ter sentado onde quisesse, mas veio para perto. Indagou:
- Está esperando alguém?
- Não.
- Então não incomodo?
- Por que haveria de?
- Como você disse?
- Por que haveria de?
- Engraçado esse teu modo de falar.
A caipirosca dele chegou, ela quis saber do que era. Lichia, ele respondeu, lacônico. A jovem era interessante, bonita, lembrava a atriz Scarlett Johansson. Ela pediu uma caipirosca igual.
- Você é casado?
- Não preciso responder a essa pergunta. Minha vida é minha vida.
- Você mexe com quê?
- Como?
- Mexe com quê? O que faz?
- Você é mineira?
- Sou, como adivinhou?
- Por causa da pergunta. Mexe com quê. Mineiro que fala assim. Vendo seringas.
- Seringa de injeção?
- Sim.
- Que profissão mais engraçada. Tenho horror a injeções, quando preciso tomar alguma, desmaio. Desmaio mesmo. Caio dura. Dá para viver disso?
- Me viro bem.
Ela tomou um gole, dois, em silêncio, parecia acabrunhada.
- Você está bem?
- De baixo astral, vim aqui para encher a cara. Meu noivo me largou. Desapareceu faz seis dias, não telefonou, não deu notícias, não mandou e-mail nem telegrama.
- Tinham brigado?
- Usei calcinha vermelha, ele odiou, disse que ia comprar...
- Cigarro, e não voltou.
- Não, ia buscar um beirute, estávamos com fome. Sumiu.
- Foi à lanchonete onde ele costumava comprar? Perguntou?
- Disseram que ele apanhou o beirute, dois guaranás e contou que ia comer com a namorada.
- Que é você?
- Ele terá outra?
A lágrima correu pelo rosto dela, ele quis ajudar, buscou um lenço no bolso, não tinha. Houve época em que os homens andavam com lenços de tecidos finos, podiam oferecer, podiam enxugar as lágrimas das mulheres, era de bom tom. Odiou-se ao apanhar um guardanapo de papel e ousou passá-lo sobre a pele dela. Sentiu imenso carinho sentindo o desamparo dela. A jovem chorou convulsivamente. Levantou-se:
- Me desculpe, preciso ir. Preciso ir.
- Para onde vai? Quer que vá junto?
- Não! Vou passar em casa, ver se ele chegou. Se não chegou, irei à lanchonete de novo. Tenho passado por todos os lugares onde há um bom beirute, estou com fome. Fome e dor de cotovelo são horríveis.
- Come aqui, é bom, muito bom.
- Tenho medo dele ter voltado e não me achar em casa. Você me paga a caipirosca?
- Claro...
Saiu correndo, chorando, Ticha e Chico, que chegavam, ficaram olhando. Marcelo, no caixa, fez um ar de quem não entendeu, achou que os dois tinham brigado. Porém o Marcelo já viu tantas naquele bar que não se surpreende mais com nada.


PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS - ESTELA MAY


BIFALAND, A CIDADE MALDITA      ALLAN SIEBER





A Saideira – Luís Pimentel

 

          Como sempre fazia aos domingos, na hora do almoço, Edith desceu as escadarias do morro para resgatar Edivaldo na tendinha. Naquele dia, ela cumpriu o ritual um pouco mais cedo, porque chovia muito, a água ameaçava invadir o barraco, e ela precisava do marido para ajudá-la na contenção.

          Edivaldo disse que estava cedo, que só tinha bebido umas poucas, que Edith tivesse um pouco de paciência e esperasse ele tomar, pelo menos, a saideira.  Edith gritou, discutiu, exigiu, blasfemou e arrastou o seu homem morro acima, no momento exato em que a pedra enorme cedia à força das águas e descia pelo caminho inverso.

         Edivaldo conseguiu escorregar para um lado mas Edith não teve tempo. Ele retornou à tendinha com o corpo da mulher nos braços, pediu mais uma e choramingou, muito sentido:

          - Está vendo, meu amor? Teria sido evitado se esperássemos a pedra passar tomando a saideira.

 

Horóscopo – Luís Pimentel

 

          Viu na coluna Horóscopo que os nascidos sob o signo de Leão deveriam, naquele dia, “evitar ser ofuscado pelo próprio orgulho, sabendo reconhecer as verdadeiras palmas de aprovação”.

         Ficou embatucado, mais ainda, depois de conferir que o seu elemento era o fogo: signo complementar, câncer; e regente, o sol.

         “Vai ser um dia difícil”, pensou.

          Aí, lembrou-se que o seu signo era Escorpião, que não tinha nada o que ver com aquilo tudo. Fechou o jornal e atravessou a rua, decidido e orgulhoso, na direção do bar mais próximo.

 

Malucos são os outros – Luís Pimentel

         O homem estava sentado no chão, no canto à esquerda da porta do bar. Outro homem estava sentado em uma cadeira, com encosto para as costas e braço lateral para apoiar a mão, no canto à direita. No centro do cenário, cotovelos no balcão, um terceiro homem bebia cerveja e fumava cigarros.

          O home sentado no chão estava muito sujo, barba e cabelos desgrenhados e cheios de fuligem. Fedia muito. Tinha moscas à sua volta, ou mosquitos. Mesmo assim, mantinha a mão estendida, pedindo dinheiro.  Não pingava um tostão sequer na mão do infeliz. O homem que usava a cadeira anotava jogo do bicho, daí o encosto para as costas e o braço de madeira, para poiar a mão enquanto escrevia os números que os apostadores ditavam. O homem que bebia e fumava só bebia e fumava, vez em quando balançando a  cabeça afirmativamente, concordando com alguma coisa que o dono do bar dizia.

          Lá pras tantas, o homem que escrevia o jogo de bicho olhou para o home do balcão e para o comerciante. E disse:

          - Vocês não acham que esse mendigo filho da puta está fedendo muito? E que isto espanta a nossa freguesia?

          - Eu acho – disse o homem que bebia e fumava.

          E imediatamente puxou um revólver da cintura. Mirou bem e atirou no mendigo, matando-o na horinha. Depois pagou a conta e saiu, assoviando uma canção que ninguém ali conhecia.

          Até hoje o apontador de jogo e o comerciante se perguntam, intrigados, que era aquele maluco violento que u dia tomou cerveja e fumou cigarros no balcão do bar.



Genildo



Santiago



Do bar ao cemitério - Roberto DaMatta

Eu a vi com o rosto de mármore, e os olhos para sempre fechados. Peguei no seu braço: estava como um pedaço de gelo. Sabia da morte e a conhecia, mas como ocorre na vida e no amor, fiquei surpreso com sua impositiva realidade.
Mario Batlha, meu querido amigo me pronunciou essas palavras neste Natal, no bar do Soares aqui em Niterói, no nosso encontro anual de velhos amigos – velhos pois todos temos mais de 89 anos.
Quando entramos no bar, os jovens atendentes sorriem, pois todo jovem gosta de ouvir histórias contadas por velhos. Elas revelam como somos tolos e antigos. E é preciso sentir-se esperto e moderno neste Brasil onde o sujeito que chama o outro de tosco não sabe o quão tosco ele é.
Vamos ao bar em busca da juventude que a amizade e o álcool – o espírito – fornecem. Bar tem a ver com alegria, piada, aventura e bebidas. É um espaço aberto e ambíguo, pois abriga e revela, permite sair e entrar sem pedir licença. É público no ambiente, mas suas mesas são como casas oferecendo a seus ocupantes uma certa privacidade.
Foi ali que meu querido amigo Mario Batalha me olhou com olhos marejados de lágrimas e eu o olhei de volta com meus olhos molhados e turvos de velho.
Perdi a esposa que o Dr. Alzheimer roubou de mim faz uma década, complementou ele numa explicação patética como ocorre em todo sofrimento.
Fomos ao enterro de Sueli, a infortunada esposa de Mario. Lé estava ele com suas roupas antigas, magro como um tuberculoso, triste como um profeta. Olhava para todos com a surpresa dos que descobrem que o mundo é feito de sofrimento e, naquele momento, ele o vivia integralmente. No centro daquele triste mundo, jazia sua mulher cercada de flores numa imobilidade de estátua. Era a presença da morte na antessala do cemitério, pois a casa dos mortos é um dormitório do qual os religiosos dizem que se desperta para o outro mundo.
Pessoas chegavam e saíam, repetia Mario com um sorriso sem graça no rosto. Eram amigos queridos e alguns parentes. Todos estavam tocados pela magia da morta, minha mulher que foi generosa e tranquila. Todos diziam que tivesse “força”, a palavra de conforto da época de Star Wars quando, de fato, ali nada tinha de naves espaciais. Muito pelo contrário, continuou Mario Batalha tragando seu uísque, ali ia-se para o fundo de uma cova, para dentro da terra de onde um o primeiro homem saiu. Um barro fosco e malcheiroso do qual nasceu Deus sabe como, um espírito voltado para cima. Um olhar para as estrelas e, eventualmente, para o sol que cega.
Calma Mario, disse com compaixão e afaguei suas mãos magras de velho. Tudo passa...
Todos os outros amigos e até o Boca Mole e seu marido concordaram. Estavam de bom humor e faziam intrigas alegres e bem-humoradas em honra ao amargor de Mario. Fulano dissse X de sicrano que, por sua vez, comentou Y de beltrano...
A conversa ia do bar ao cemitério. De um lado o álcool, que é um espírito que despertava; do outro, o espírito liberto da carne pronta a apodrecer e fazia chorar em impulsos sofridos, como um orgasmo maldito.
Eu olhava tudo como de fora, mas os laços de amizade me envolviam. Eu amo meu amigo Mario Batalha, um cara zangado, mas que jamais foi capaz de dizer um não. Um sujeito cuja generosidade é maior do que o Pão de Açúcar visto de Icaraí, e por isso sofria.

Dez anos de doença. Dez anos de sentimentos de culpa. Dez anos de lágrimas represadas. Subitamente, Mario Batalha tirou seu revólver 38 da cinta de oficial de infantaria da reserva devidamente aposentado e começou a atirar para cima, calmo, no Bar do Soares causando pânico, dando-lhe um ar jovem e ativo de puteiro animado. Fregueses ocasionais corriam, mas nós ficamos e bebemos ao surto do Mario. Era uma legítima manifestação de sua dor. Coisa singular e espalhafatosa, sem dúvida, mas não feriu ninguém, exceto algumas lâmpadas e garrafas que se quebram ou mudaram de prateleira. Tal como a esposa que fora linda e jazia inerme no seu caixão, prestes a ser enterrada no que me pareceu um enorme buraco.














Praia de mineiro - Humberto Werneck

Algum dia, se não me falecerem engenho & e arte, ou se antes disso não falecer eu próprio, haverei de publicar um livro que há anos tenho em ruminação, só faltando escrever, cujo título será Praia de Mineiro.
Não, não estou falando de Guarapari, Marataízes ou qualquer outro município litorâneo do Espírito Santo, que nos verões de minha longínqua infância eram tomados - hoje, não sei - por hordas de montanheses sedentos de água salgada. O que não quer dizer que nós, nativos de um Estado mediterrâneo, não temos mar; de forma alguma: o lugar está lá, falta apenas a água. Enquanto ela não vem, o jeito é dar um tempo em praias capixabas.
Foi numa delas, a de Guarapari, então vilarejo, que vi o mar pela primeira vez, aos 6 anos de idade. Assim que nossos pais deixaram a bagagem no Hotel e Bar Azul e nos soltaram no areal, o primogênito Rodrigo, futuro engenheiro, correu à rebentação, testou a água e só assim sentiu-se em condições de informar que ela era mesmo o que diziam: salgada. Já o segundo filho, dado a devaneios, fincou os olhos no horizonte, esperançoso de enxergar a tão falada Europa. Os pés afundavam na areia, mas a imaginação andava nas nuvens. O moleque, ao que parece, já se guiava pela divisa que décadas mais tarde ouviria do amigo Paulo Leite e tomaria para si como programa de vida: um pé na terra e outro na jaca!
É bem outra, porém, a praia de mineiro inspiradora do livro que, pronto na cabeça, baixará ao papel, espero, num futuro não muito distante. Trata-se de uma instituição de outra natureza, e isto haverá de ficar claro já no subtítulo da obra: “O botequim na vida de Belo Horizonte”. Quem foi ali adolescente na Idade Média, como este cronista, bem sabe que, excetuado o boteco, não havia outro lugar para onde fugir quando, no escarpado seio da Tradicional Família Mineira, o bicho pegava.
Fosse o garoto criado no Rio e bastaria atravessar a avenida Atlântica, a Vieira Souto, a Delfim Moreira. Em São Paulo, pegar a Anchieta rumo ao litoral. Para quem se criou em Belo Horizonte, a coisa era outra. Sempre foi. Em tempos ainda mais distantes, as décadas de 20 ou 30, quando as estradas rumo ao litoral eram ruins ou simplesmente inexistiam, o recurso mais à mão era uma escapulida até a Lagoa Santa, distante 35 km. Pelo menos foi o que registrou, com ironia inconfundível, o cronista Antônio Crispim, pseudônimo sob o qual se disfarçava Carlos Drummond de Andrade, num escrito de 1930: “A doce lagoa é o nosso balneário mediterrâneo, assim uma espécie de substitutivo urgente de Copacabana e outras praias que Deus presenteou ao Rio para reviver ali o tempo das nereidas e dos tritões”.
Criada dez anos mais tarde, ainda sem adornos niemeyerianos, a represa da Pampulha não serviu de sucedâneo. Em 1977, a fissura por uma praia era tanta que uma galera jovem contratou um caminhão de areia, despejou-a numa esquina do bairro do Prado e nela espetou guarda-sóis, até que, no terceiro fim de semana, a Polícia acabasse com a farra, devolvendo a moçada ao bar.
Embutida no botequim, a conotação de refúgio talvez possa em parte explicar por que Belo Horizonte foi considerada a capital brasileira com mais bares per capita - marca que, desconfio, ainda não lhe foi arrebatada neste 12 de dezembro em que comemora 120 anos de existência.
Minha geração foi jovem numa cidade farta em botecos. Pouquíssimos, porém, a céu aberto, e menos ainda esparramados nas calçadas, como nos dias de hoje. Mesmo lá dentro, o que predominava no cardápio comportamental era o comedimento. Nesse terreno, não se andara tanto assim em relação à Belo Horizonte de Drummond e Pedro Nava, a dos anos 20, com pouco mais de 50 mil habitantes. No legendário Bar do Ponto, a chamada “meca boateira” da cidade, convinha disfarçar a cachacinha numa xícara de café. O cabaré da espanhola Olimpia Vazques, é também Nava quem conta, abrigava vesperais para cidadãos de bem que, de volta ao lar, iriam comandar, graves e morigerados, o jantar da família mineira.
Erguida sobre os destroços do povoado de Curral del Rei, a aniversariante desta terça-feira era um conglomerado de botecos antes mesmo de ser inaugurada, em 12 de dezembro de 1897. Durante a construção, iniciada em 1894, tais bitacas davam trabalho a Antônio Lopes de Oliveira, o primeiro delegado de polícia da futura capital.
No comando de um contingente que não chegava a 10 soldados, o implacável capitão Lopes logrou manter sob controle a patuleia que, à noite, burburinhava nos botequins daquele vasto canteiro de obras. Uma foto, que revejo agora, atesta que sua aparência era mesmo de impor respeito: bigodeira pontiaguda qual antenas perquiridoras, orelhas grandes e ventas abertas de cão farejador. Morreu famoso e major, em 1923.
Alguns anos atrás, passeando por Belo Horizonte, fiquei impressionado com a fartura de bares, boates e afins enfileirados numa rua de bairro de classe média que conheci pacata e familiar, na qual, aliás, adolesciam o futuro Frei Betto e, em tempo de pedaladas exclusivamente ciclísticas, Dilma Rousseff. Embora fosse um meio de semana, dali jorrava, madrugada alta, uma zoeira capaz de inviabilizar o sono em toda a região. Teria dado um trabalhão, aquela rua, ao ferrabrás que lhe dá nome, o temido Major Lopes.





Os caras do balcão do bar - Gilberto Amendola

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar sonharam ser mais do que os caras do balcão do bar. Encolheram suas barrigas como se um sargento passasse a tropa em revista e pediram uma bebida menos barata, em um copo mais limpo.

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar sonharam um salão melhor, uma luz mais clara, uma música menos tola. Quiseram saber dançar ou, pelo menos, enganar melhor e no ritmo certo.

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar interromperam a rodada do futebol e sonharam entender o fim daquele filme francês que ninguém naquele bar havia entendido. Quiseram saber outra língua e ter histórias de viagem pra compartilhar.

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar sentiram a aspereza do próprio rosto ferir a pele de alguém que eles nunca haveriam de beijar. Viram suas calças largas e sem corte lambendo o chão sujo do lugar.

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar sentiram o peso de anos de sexo protocolar, de violência disfarçada de amor, segurança e autoconfiança.

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar sentiram uma espécie de calafrio, um medo daquilo que nunca puderam conhecer. Teve um que precisou se escorar para não perder o equilíbrio. Teve um que enfiou a cara numa revista boba para disfarçar os espasmos do rosto. Teve um que, se tivesse algum jeito, pode apostar, teria preferido nascer de novo.

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar quiseram tomar veneno.

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar entenderam que a vida é uma cela minúscula, uma solitária onde o sol só aparece muito de vez em quando, por sorte ou teimosia.

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar procuraram um grão de delicadeza no deserto das próprias esperanças. 

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar acreditaram na sorte, no destino, nos avisos escondidos dentro de velhos sonhos banais.

Quando ela entrou, os caras do balcão do bar lembraram que amanhã ainda seria um dia de semana. Eles olharam para seus relógios de pulso, pediram a conta e pagaram em silêncio.

Não reclamaram.

Eram fantasmas.

Não que estivessem mortos, mas aquilo também não era algo que possa ser chamado de vida.

Quando ela entrou, a presença dela ocupou todos os lugares do bar. 

Recruta Zero - Mort Walker



Frank & Ernest - Bob Thaves 

Hagar - Dik Browne



Quadras cariocas - Fabrício Corsaletti

Para Mariana Rocha
1
bar Urca: beber no muro
vendo o sol cair no mar
Rimbaud, que destino duro
preguiça só de pensar...
2
fomos ao Nova Capela
destrinchamos um cabrito
perfeito como um poema -
viva Paulo Henriques Britto!
3
garçom, está muito frio
São Pedro, se liga, meu!
sinusite, espere um pouco
em Sampa sou todo seu
4
fim de noite, bar Rebouças
quem ainda aguenta, bebe
sob o sovaco do Cristo
dois guerreiros, Tissi e Jeb
5
bem no finzinho do Leme
uma montanha selvagem
anterior a Colombo
faz da cidade miragem
6
balcões de ferro fundido
ao modo de New Orleans
(Vila Galé) samambaias
piscina, livro, ai de mim
7
no Fundão, festa pra Dylan
ali todo mundo entende
canção também é poesia
because the times have changed
8
travestis organizados
"SAPATÃO: REVOLUÇÃO"
no Beco do Rato, ao menos
Freixo ganhou a eleição
9
com Graça e Eucanaã
fico sempre mais disposto
falamos mesmo da mãe
do Yohji Yamamoto?
10
não suporto futebol
não suporto nenhum jogo
mas confesso que acho linda
a estrela do Botafogo
11
brisa, me faça um favor
finja que é nossa bandeira
enquanto de carro vamos
pro bairro de Laranjeiras
12
Beco do Rato de novo
agora com Miguel Jost
(e o fantasma de Bandeira
flutuando à luz de um poste)
13
cerveja no Bar do Gomes
uísque no Iate Clube
cachaça na Adega Pérola
água só se for no Uber
14
nuvens no tampo da mesa
nuvens na tampa do céu
de repente eu era ela
e ela, eu acho que era eu




Garçon - Rodrigo José


Nani







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