Conselho aos jovens médicos
O conselho vale também para os médicos menos jovens, os
estudantes de medicina e os secundaristas que pensam em se tornar médicos. Na
verdade, o conselho se estende a todos os que são ou serão pacientes, mesmo que
não tenham a ambição de ser ou vir a ser médicos.
Já tinha assistido ao filme "A Garota
Desconhecida", dos irmãos Dardenne, durante a Mostra Internacional de
Cinema de São Paulo. Fui de novo no sábado passado e gostei tanto quanto da
primeira vez. Não percam –e se apressem: em São Paulo, por exemplo, o filme
está em apenas dois cinemas.
Admito, sou duplamente parcial: pelos irmãos Dardenne,
que praticam um naturalismo sem violinos (na verdade, sem trilha musical
alguma), representando um mundo no qual me sinto absolutamente em casa (o mesmo
valia para filmes anteriores deles, por exemplo "Dois Dias, Uma
Noite" ou "O Garoto de Bicicleta"); e sou parcial pela
protagonista da "A Garota Desconhecida", que gostaria de encontrar na
vida real –cuidado, falo da protagonista, não da atriz (ótima Adèle Haenel,
aliás), a não ser que ela seja igual à protagonista.
Reconheço várias razões pelas quais amo a jovem médica
Jenny Davin: porque não usa maquiagem e seca o cabelo com uma toalha; porque
vive de jeans e dois moletons meio surrados; porque come o que tiver ou o que
sobrar. O que é, ela não se importa consigo mesma? Não, é que ela tem mais o
que fazer.
Continuo: porque ela só usa luvas descartáveis quando
precisa proteger a queimadura infeccionada de um paciente, e não para auscultar
nem mesmo para trocar o curativo no pé de um idoso diabético; porque fala pouco
e sabe escutar; porque acorda de madrugada para atender a campainha sem nem
sequer uma expressão de revolta; porque ela não tem preocupação de status;
porque, enfim, ela traça sua vida (e sua carreira) a partir do que lhe parece
ser sua responsabilidade.
E, cuidado: a responsabilidade que ela sente não tem nada
a ver com a empatia ou a compaixão por "coitados" e deserdados. Ao
contrário, Davin sabe (e diz ao seu estagiário) que os sentimentos só
atrapalham a arte do diagnóstico. A responsabilidade que ela sente é quase um
efeito lógico evidente (que não precisa de justificativa) da demanda que ela
ouve.
Talvez (nossa) responsabilidade seja mesmo engajada
automaticamente quando alguém pede ajuda. Isso não valeria só para os
profissionais da saúde. E certamente vai além da resposta curta e fácil ao
pedido de esmola.
Alguém se aproxima e fala comigo no farol? Tento escutar.
Em geral, a mentira de quem pede me libera da responsabilidade. Precisa do
dinheiro para uma passagem para Itu, onde a mãe etc., e eu não acredito? Posso
fechar o vidro.
Agora, se você acredita na história que está ouvindo,
estacione, desça do carro e aja mesmo. Há uma recompensa, já neste mundo:
aceitar a responsabilidade da gente é quase sempre interessante.
Tento viver como Jenny Davin. Não é difícil, porque, em
geral, gosto das pessoas, ainda mais quando têm vidas muito diferentes da
minha. Mesmo assim, nem sempre consigo, mas Carlo Antonini, protagonista dos
meus romances e do seriado "Psi" (HBO, chega agora à sua terceira
temporada), vive por essa regra.
Agora, além da própria Jenny, há outras coisas, na
Bélgica onde ela vive, que poderiam nos inspirar. Por que nosso sistema público
de saúde não contempla um generalista de referência, que centralizaria o
histórico médico de seus pacientes?
Quem teve a ideia de abolir as visitas domiciliares,
mesmo noturnas, e de deixar, portanto, os pacientes correrem para entrar na
fila de espera de um pronto-socorro (muito mais caro), em todos os casos de
supostas "urgências"? Quem tirou desse médico (que sumiu) a
autoridade para exigir, com um simples telefonema, que qualquer administração
pública dispense a presença de um paciente que não pode se deslocar?
Jenny é o que a Europa tem de melhor, hoje. Não o
assistencialismo, mas a presença efetiva de uma comunidade minimamente atenta
–sem ideologismos, sem manhas sentimentais, por valores que nem é preciso
mencionar.
A Bélgica é cinza. Mas, para dar dignidade à vida da
gente, não é preciso de sol –nem de conforto ou de privilégio.
Nota: "A Garota Desconhecida" talvez seja o
melhor filme que já vi sobre o que é ser médico –muito além de "Grey's
Anatomy", "ER" e "House" combinados.
Cada um ama seus bichos preferidos
Na coluna da semana passada, comentei o filme "A
Garota Desconhecida", dos irmãos Dardenne.
E declarei meu amor pela protagonista, a jovem médica
Jenny Davin, "porque (ela) não usa maquiagem e seca o cabelo com uma
toalha; porque vive de jeans e dois moletons meio surrados; porque come o que
tiver ou o que sobrar; (...); porque ela só usa luvas descartáveis quando
precisa proteger a queimadura infeccionada de um paciente, e não para auscultar
nem mesmo para trocar o curativo no pé de um idoso diabético; (...) porque ela
não tem preocupação de status; porque, enfim, ela traça sua vida (e sua
carreira) a partir do que lhe parece ser sua responsabilidade".
Acrescentei que a responsabilidade que Jenny sente não
tem nada a ver com compaixão por coitados e deserdados. Ao contrário, ela sabe
que os sentimentos atrapalhariam seus diagnósticos.
Pois bem, vários leitores e leitoras (sem ter
necessariamente visto o filme) me perguntaram se eu gostava mesmo de pessoa
desleixada, desgraciosa e vestida com o que encontra no chão ou no armário na
luz incerta da primeira manhã.
Antevendo essas simpáticas provocações, eu já tinha
observado: não é que Jenny não se importe consigo mesma, é que ela tem mais o
que fazer. E eu gosto das pessoas que têm mais o que fazer. Vou explicar.
Uma sabedoria popular divide os parceiros possíveis em
duas grandes categorias: cachorros e gatos. A mesma sabedoria diz que, entre os
apaixonados, há os que amam os cachorros e há os que amam os gatos.
Não há uma correspondência perfeita entre os animais
domésticos que preferimos e nossas escolhas amorosas, mas tanto faz. O que
importa é que, numa relação amorosa, alguns (e algumas) procuram um outro que,
quando eles voltam para casa, 1) chegue abanando e pulando, 2) traga correndo
sua bolinha pedindo para brincar, 3) tenha uma irresistível carência que o leve
a lamber a cara de seu amor (ou formas equivalentes de carinho).
Por outro lado, alguns (e algumas) preferem um outro que,
quando eles chegam em casa, fique deitado no sofá, apenas lambendo seu próprio
pelo, como se ele mesmo fosse o único centro de seus interesses. Brincar com
esse outro é só quando ele está a fim, e o carinho dura o tempo que ele quiser.
Os amados tipo cachorro seriam generosos e dedicados,
mas, em contrapartida, dependentes do nosso afeto a ponto de se tornarem
chatos.
Os amados tipo gato seriam autocentrados, sobretudo
apaixonados por si mesmos, e também chatos pela constante espera de serem
adorados e admirados.
Cada um reconhecerá (em parte, claro) seu companheiro ou
companheira. É possível que o tipo gato seja mais frequentemente feminino, e o
cachorro, masculino. Mas há numerosas exceções, e cansei de ouvir a queixa de
mulheres cujo homem, na hora do sexo, olhava para o espelho ao lado da cama
para ver seus próprios músculos tensionados.
Em que parte da tipologia de cães e gatos se enquadraria
Jenny Davin, mulher de meus sonhos? Nenhuma.
É que há mais um (vastíssimo) tipo animal que não está
incluído nessa tipologia aproximativa. São os animais que não são domesticáveis
–alguns, aliás, zero domesticáveis (da tarântula ao dragão de Komodo), alguns
muito pouco (da onça ao gorila, passando pelo cavalo etc.).
O outro por quem me apaixono pertence a esse tipo: ele se
relaciona comigo, pode ser carinhoso e companheiro (e gosto disso), mas, no
fundo, como Jenny, ele tem mais o que fazer (e disso eu gosto mais ainda).
Em outras palavras, o que amo no outro é a selvajaria
irredutível de seu desejo. Selvajaria aqui não significa que o desejo seja
rústico ou grosseiro, mas apenas que o desejo do outro pelo qual me apaixono
nunca é plenamente domesticado –se ele for domado, será só por um tempo, e se
assilvestrará de volta, a qualquer momento.
Às vezes, a vida de família (por exemplo, a exigência de
ser pai e mãe antes de ser homem e mulher) domestica e extingue o desejo sexual
dos dois. Às vezes (e isso é pior ainda), as supostas exigências do casal
acabam também com o amor dos dois, quando um deles ou os dois se esquecem de
seu desejo silvestre para se tornarem cães ou gatos.
É intolerável (e paradoxal) descobrir que eu mesmo posso
ser a razão da domesticação do desejo do outro –ou seja, que por minha causa o
outro pode renunciar ao que eu mais amava nele.
Nenhum comentário:
Postar um comentário