domingo, 7 de maio de 2017

Contardo Calligaris – Conselho aos jovens médicos/ Cada um ama seus bichos preferidos


Conselho aos jovens médicos

O conselho vale também para os médicos menos jovens, os estudantes de medicina e os secundaristas que pensam em se tornar médicos. Na verdade, o conselho se estende a todos os que são ou serão pacientes, mesmo que não tenham a ambição de ser ou vir a ser médicos.
Já tinha assistido ao filme "A Garota Desconhecida", dos irmãos Dardenne, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Fui de novo no sábado passado e gostei tanto quanto da primeira vez. Não percam –e se apressem: em São Paulo, por exemplo, o filme está em apenas dois cinemas.
Admito, sou duplamente parcial: pelos irmãos Dardenne, que praticam um naturalismo sem violinos (na verdade, sem trilha musical alguma), representando um mundo no qual me sinto absolutamente em casa (o mesmo valia para filmes anteriores deles, por exemplo "Dois Dias, Uma Noite" ou "O Garoto de Bicicleta"); e sou parcial pela protagonista da "A Garota Desconhecida", que gostaria de encontrar na vida real –cuidado, falo da protagonista, não da atriz (ótima Adèle Haenel, aliás), a não ser que ela seja igual à protagonista.
Reconheço várias razões pelas quais amo a jovem médica Jenny Davin: porque não usa maquiagem e seca o cabelo com uma toalha; porque vive de jeans e dois moletons meio surrados; porque come o que tiver ou o que sobrar. O que é, ela não se importa consigo mesma? Não, é que ela tem mais o que fazer.
Continuo: porque ela só usa luvas descartáveis quando precisa proteger a queimadura infeccionada de um paciente, e não para auscultar nem mesmo para trocar o curativo no pé de um idoso diabético; porque fala pouco e sabe escutar; porque acorda de madrugada para atender a campainha sem nem sequer uma expressão de revolta; porque ela não tem preocupação de status; porque, enfim, ela traça sua vida (e sua carreira) a partir do que lhe parece ser sua responsabilidade.
E, cuidado: a responsabilidade que ela sente não tem nada a ver com a empatia ou a compaixão por "coitados" e deserdados. Ao contrário, Davin sabe (e diz ao seu estagiário) que os sentimentos só atrapalham a arte do diagnóstico. A responsabilidade que ela sente é quase um efeito lógico evidente (que não precisa de justificativa) da demanda que ela ouve.
Talvez (nossa) responsabilidade seja mesmo engajada automaticamente quando alguém pede ajuda. Isso não valeria só para os profissionais da saúde. E certamente vai além da resposta curta e fácil ao pedido de esmola.
Alguém se aproxima e fala comigo no farol? Tento escutar. Em geral, a mentira de quem pede me libera da responsabilidade. Precisa do dinheiro para uma passagem para Itu, onde a mãe etc., e eu não acredito? Posso fechar o vidro.
Agora, se você acredita na história que está ouvindo, estacione, desça do carro e aja mesmo. Há uma recompensa, já neste mundo: aceitar a responsabilidade da gente é quase sempre interessante.
Tento viver como Jenny Davin. Não é difícil, porque, em geral, gosto das pessoas, ainda mais quando têm vidas muito diferentes da minha. Mesmo assim, nem sempre consigo, mas Carlo Antonini, protagonista dos meus romances e do seriado "Psi" (HBO, chega agora à sua terceira temporada), vive por essa regra.
Agora, além da própria Jenny, há outras coisas, na Bélgica onde ela vive, que poderiam nos inspirar. Por que nosso sistema público de saúde não contempla um generalista de referência, que centralizaria o histórico médico de seus pacientes?
Quem teve a ideia de abolir as visitas domiciliares, mesmo noturnas, e de deixar, portanto, os pacientes correrem para entrar na fila de espera de um pronto-socorro (muito mais caro), em todos os casos de supostas "urgências"? Quem tirou desse médico (que sumiu) a autoridade para exigir, com um simples telefonema, que qualquer administração pública dispense a presença de um paciente que não pode se deslocar?
Jenny é o que a Europa tem de melhor, hoje. Não o assistencialismo, mas a presença efetiva de uma comunidade minimamente atenta –sem ideologismos, sem manhas sentimentais, por valores que nem é preciso mencionar.
A Bélgica é cinza. Mas, para dar dignidade à vida da gente, não é preciso de sol –nem de conforto ou de privilégio.
Nota: "A Garota Desconhecida" talvez seja o melhor filme que já vi sobre o que é ser médico –muito além de "Grey's Anatomy", "ER" e "House" combinados.






Cada um ama seus bichos preferidos

Na coluna da semana passada, comentei o filme "A Garota Desconhecida", dos irmãos Dardenne.

E declarei meu amor pela protagonista, a jovem médica Jenny Davin, "porque (ela) não usa maquiagem e seca o cabelo com uma toalha; porque vive de jeans e dois moletons meio surrados; porque come o que tiver ou o que sobrar; (...); porque ela só usa luvas descartáveis quando precisa proteger a queimadura infeccionada de um paciente, e não para auscultar nem mesmo para trocar o curativo no pé de um idoso diabético; (...) porque ela não tem preocupação de status; porque, enfim, ela traça sua vida (e sua carreira) a partir do que lhe parece ser sua responsabilidade".
Acrescentei que a responsabilidade que Jenny sente não tem nada a ver com compaixão por coitados e deserdados. Ao contrário, ela sabe que os sentimentos atrapalhariam seus diagnósticos.
Pois bem, vários leitores e leitoras (sem ter necessariamente visto o filme) me perguntaram se eu gostava mesmo de pessoa desleixada, desgraciosa e vestida com o que encontra no chão ou no armário na luz incerta da primeira manhã.
Antevendo essas simpáticas provocações, eu já tinha observado: não é que Jenny não se importe consigo mesma, é que ela tem mais o que fazer. E eu gosto das pessoas que têm mais o que fazer. Vou explicar.
Uma sabedoria popular divide os parceiros possíveis em duas grandes categorias: cachorros e gatos. A mesma sabedoria diz que, entre os apaixonados, há os que amam os cachorros e há os que amam os gatos.
Não há uma correspondência perfeita entre os animais domésticos que preferimos e nossas escolhas amorosas, mas tanto faz. O que importa é que, numa relação amorosa, alguns (e algumas) procuram um outro que, quando eles voltam para casa, 1) chegue abanando e pulando, 2) traga correndo sua bolinha pedindo para brincar, 3) tenha uma irresistível carência que o leve a lamber a cara de seu amor (ou formas equivalentes de carinho).
Por outro lado, alguns (e algumas) preferem um outro que, quando eles chegam em casa, fique deitado no sofá, apenas lambendo seu próprio pelo, como se ele mesmo fosse o único centro de seus interesses. Brincar com esse outro é só quando ele está a fim, e o carinho dura o tempo que ele quiser.
Os amados tipo cachorro seriam generosos e dedicados, mas, em contrapartida, dependentes do nosso afeto a ponto de se tornarem chatos.

Os amados tipo gato seriam autocentrados, sobretudo apaixonados por si mesmos, e também chatos pela constante espera de serem adorados e admirados.
Cada um reconhecerá (em parte, claro) seu companheiro ou companheira. É possível que o tipo gato seja mais frequentemente feminino, e o cachorro, masculino. Mas há numerosas exceções, e cansei de ouvir a queixa de mulheres cujo homem, na hora do sexo, olhava para o espelho ao lado da cama para ver seus próprios músculos tensionados.
Em que parte da tipologia de cães e gatos se enquadraria Jenny Davin, mulher de meus sonhos? Nenhuma.
É que há mais um (vastíssimo) tipo animal que não está incluído nessa tipologia aproximativa. São os animais que não são domesticáveis –alguns, aliás, zero domesticáveis (da tarântula ao dragão de Komodo), alguns muito pouco (da onça ao gorila, passando pelo cavalo etc.).
O outro por quem me apaixono pertence a esse tipo: ele se relaciona comigo, pode ser carinhoso e companheiro (e gosto disso), mas, no fundo, como Jenny, ele tem mais o que fazer (e disso eu gosto mais ainda).
Em outras palavras, o que amo no outro é a selvajaria irredutível de seu desejo. Selvajaria aqui não significa que o desejo seja rústico ou grosseiro, mas apenas que o desejo do outro pelo qual me apaixono nunca é plenamente domesticado –se ele for domado, será só por um tempo, e se assilvestrará de volta, a qualquer momento.
Às vezes, a vida de família (por exemplo, a exigência de ser pai e mãe antes de ser homem e mulher) domestica e extingue o desejo sexual dos dois. Às vezes (e isso é pior ainda), as supostas exigências do casal acabam também com o amor dos dois, quando um deles ou os dois se esquecem de seu desejo silvestre para se tornarem cães ou gatos.

É intolerável (e paradoxal) descobrir que eu mesmo posso ser a razão da domesticação do desejo do outro –ou seja, que por minha causa o outro pode renunciar ao que eu mais amava nele.

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