terça-feira, 7 de agosto de 2018

Carinho e oportunidade podem gerar mistura indigesta - Denise Fraga




Não entendi direito o que a moça do café queria. Tinha me pedido uma foto, a filha pequena do lado. Eu já estava abraçando a menina para o clique, quando ela falou:
— Na verdade, eu queria que você tirasse uma foto com o meu café.
Eu não estava tomando café. Eu estava passando em frente quando ela me pediu a foto e, quando eu posei ao lado da filha, ela surpreendentemente me estendeu uma xícara, vazia, onde estava escrito a marca do seu café. Fiquei com vontade de chorar.
Estou em turnê pelo país. Tenho excursionado com teatro nos últimos anos e é nítida a violenta transformação de comportamento pela qual passamos. Um artista se apresentando numa cidade que recebe poucas peças de teatro pode ser uma oportunidade a ser aproveitada. Mas agora, mais do que a peça, o que não se pode perder é a foto. E, com ela, os possíveis seguidores, suas curtidas e visualizações. Nunca me incomodei em tirar fotos. Entendo que se queira registrar o momento, é uma demonstração de carinho e não é todo dia que se encontra alguém que se vê na televisão. Acontece que o evento das redes sociais inaugura dia após dia novos valores em nossas vidas.
A moça viu a atriz passar. O tempo em velocidade alucinante transformou a alegria do encontro em ansiedade por não perder a oportunidade de negócio. Em outros tempos, a moça poderia até perceber que o nome daquilo era propaganda e que fazia parte do ofício da atriz receber um cachê para anunciar produtos. Mas o ciclone dos dias misturou tudo. Demonstrações de carinho são curtidas, atenção é visualização, amigo é seguidor e tudo isso junto pode significar dinheiro em caixa. Dinheiro, aquele que sempre ganha de tudo, aquele que sempre cega.
A moça sorria e não percebia a indelicadeza. A xícara vazia em sua mão me fez rapidamente contar quantas fotos suspeitas eu tinha tirado nos últimos dias: a senhora que me presenteou com cupcakes na saída do teatro, o rapaz que trouxe seu livro autografado, a moça do colar de garrafa pet. Depois do abraço, meu sorriso amarelando nas poses pedidas com o presente na mão. Não nego que há carinho.Aliás, o problema é justamente a indigesta mistura de carinho com oportunidade. Se desfazem, se melam, se anulam.
As redes sociais tornaram a vida íntima midiática. Toda pequena atitude registrada pode reverberar. Mas precisamos nos cuidar porque a foto ao lado de um certo amigo pode ter mais curtidas que aquela ao lado de outro e nos arriscaremos a criar um ranking esquisito, a vincular nosso afeto a números, deixando que nosso desejo e felicidade sejam derretidos junto com nossa já deformada delicadeza.
Olhei nos olhos da moça e achei que era hora de agir. Segurei em seus ombros com todo o carinho possível, a xícara entre nós:
— Se você quer tirar uma foto comigo eu fico feliz, porque acho que você gosta de mim. Se você quer que eu tire uma foto com sua xícara de café na mão, eu fico triste porque passo a desconfiar que você não goste tanto de mim assim, entende?
Ela entendeu. Tiramos a foto sem a xícara. Depois, ela usou-a para me servir o café. Não me deixou pagar. O café era uma delícia. Não me lembro o nome. Que bom. Porque se o escrevesse aqui, já poria em risco esta crônica.

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