Eu e ele
No vertiginoso mundo dos computadores, o meu, que devo ter há uns quatro ou cinco anos, já pode ser definido como uma carroça. Nosso convívio não tem sido muito confortável. Ele produz um texto limpo, e é só o que lhe peço. Desde que literalmente metíamos a mão no barro e depois gravávamos nossos símbolos primitivos com cunhas em tabletes até as laudas arrancadas da máquina de escrever para serem revisadas com esferográfica não havia maneira de escrever que não deixasse vestígio nos dedos.
Nem o abnegado monge copiando escrituras na sua cela asséptica estava livre do tinteiro virado. Agora não. Damos ordens ao computador, que faz o trabalho sujo por nós. Deixamos de ser trabalhadores braçais e viramos gerentes de texto. Ficamos pós-industriais. Com os dedos limpos.
Mas com um custo. Nosso trabalho ficou menos respeitável. O que ganhamos em asseio perdemos em autoridade. A um computador não se olha de cima, como se olhava uma máquina de escrever. Ele nos olha na cara. Tela no olho. A máquina de escrever fazia o que você queria, mesmo que fosse a tapa. Já o computador impõe certas regras. Se erramos, ele nos avisa. Não diz “burro!”, mas está implícito na sua correção.
Ele é mais inteligente do que você. Sabe mais coisas, e está subentendido que você jamais aproveitará metade do que ele sabe. Que ele só desenvolverá todo o seu potencial quando estiver sendo programado por um igual. Isto é, outro computador. A máquina de escrever podia ter recursos que você também nunca usaria (abandonei a minha sem saber para o que servia “tabulador”, por exemplo), mas não tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só aguenta os humanos por falta de coisa melhor no momento.
Eu e o computador jamais seríamos íntimos. Nosso relacionamento é puramente profissional. Mesmo porque, acho que ele não se rebaixaria ao ponto de ser meu amigo. E seu ar de reprovação cresce. Agora mesmo, pedi para ele enviar esta crônica para o jornal e ele perguntou “tem certeza?”.
O Suicida e O Computador
Depois de fazer o laço da forca e
colocar uma cadeira embaixo, o escritor sentou-se atrás da sua mesa de
trabalho, ligou o computador e digitou:
“No fundo, no fundo, os escritores passam o tempo todo redigindo a
sua nota de suicida. Os que se suicidam mesmo são os que a terminam mais cedo.”
.
Levantou-se, subiu na cadeira sob a forca e colocou a forca no pescoço.
Depois retirou a forca do pescoço, desceu da cadeira, voltou ao computador e
apagou o segundo “no fundo”. Ficava mais enxuto. Mais categórico. Releu a nota
e achou que estava curta. Pensou um pouco, depois acrescentou:
.
“Há os que se suicidam antes de escapar da terrível agonia de
encontrar um final para a nota. O suicídio substitui o final. O suicídio é o
final.”
Levantou-se, subiu na cadeira, colocou
a forca no pescoço e ficou pensando. Lembrou-se de uma frase de Borges.
Encaixa, pensou, retirando a corda do pescoço, descendo da cadeira e voltando
ao computador. Digitou:
“Borges disse que o escritor publica
seus livros para livrar-se deles, senão passaria o resto da vida
reescrevendo-os. O suicídio substitui a publicação. O suicídio é a publicação.
No caso, o livro livra-se do escritor.”
Levantou-se, subiu na cadeira, mas
desceu da cadeira antes de colocar a forca no pescoço. Lembrara-se de outra
coisa. Voltou ao computador e, entre o penúltimo e o último parágrafo, inseriu:
“Há escritores que escrevem um
grande livro, ou uma grande nota de suicida, e depois nunca mais conseguem
escrever outro. Atribuem a um bloqueio, ao medo do fracasso. Não é nada disso.
É que escreveram a nota, mas esqueceram-se de se suicidar. Passam o resto da
vida sabendo que faltou alguma coisa na sua obra e não sabendo o que é. Faltou
o suicídio.”
Levantou-se, ficou olhando a tela do computador, depois sentou-se de
novo. Digitou:
.
“No fundo, no fundo, a agonia é saber quando se terminou. Há os que
não sabem quando chegaram ao final da sua nota de suicida. Geralmente, são
escritores de uma obra extensa. A crítica elogia sua prolixidade, a sua
experimentação com formas diversas. Não sabe que ele não consegue é terminar a
nota.”
.
Desta vez não se levantou. Ficou olhando para a tela, pensando. Depois
acrescentou:
.
“É claro que o computador agravou a agonia. Talvez uma nota de
suicida definitiva só possa ser manuscrita ou datilografada à moda antiga,
quando o medo de borrar o papel com correções e deixar uma impressão de
desleixo para a posteridade leva o autor a ser preciso e sucinto. Tese: é
impossível escrever uma nota de suicida num computador.”
.
Era isso? Ele releu o que tinha escrito. Apagou o segundo “no fundo”.
Era isso. Por via das dúvidas, guardou o texto na memória do computador. No dia
seguinte o revisaria.
E foi dormir.
Dama de Computador
Depois de
saber que o Chico Buarque também fica jogando paciência no computador em vez de
trabalhar, me senti desagravado. Eu não estou perdendo tempo ou protelando o
momento de começar a escrever, quando jogo paciência. Estou, digamos assim,
fazendo alongamento do músculo cerebral. Ou distraindo o cérebro enquanto a
verdadeira criação se dá em outro nível, no inconsciente. E, se isso parecer
conversa de vagabundo para se justificar, agora tenho um argumento
irrespondível: o Chico Buarque faz a mesma coisa!
Há muitos
jogos no meu computador, com vários graus de complexidade, mas até agora só
aderi à paciência, o mais fácil. Um dia tentei jogar dama no computador. Eu fui
bom em dama quando era garoto. Nunca progredi da dama para o xadrez, talvez
pela mesma razão que me impediu de gostar de matemática, entrar em labirintos e
pensar muito profundamente sobre os buracos negros.
(Dizem que dama é xadrez para as almas
simples).
Joga-se dama de computador não contra o
computador, mas contra outro jogador que esteja na linha, movimentando-se uma
peça no tabuleiro e esperando que o adversário, em alguma parte do mundo,
movimente uma sua. Mas não consegui ir além de duas ou três peças movimentadas.
Estava jogando bem, mas tive que parar. Até
agora não sei explicar minha sensação diante daquele adversário que eu não via,
que não sabia onde estava ou que cara tinha, embora estivéssemos, para todos os
efeitos, cara a cara. Era como jogar com um fantasma.
Mais do que isto: era como ter minha casa
invadida por um membro daquela estranha seita, talvez escrava, cuja única
função na vida é ficar esperando desafios anônimos no jogo de dama. Era isto: a
sensação de uma cidadela invadida e de uma intimidade indesejada cada vez que o
outro movimentava uma peça.
Abandonei o dama no meio do jogo e cliquei no
paciência. Jogando paciência você às vezes se sente sacaneado pelo computador,
que geralmente permite uma vitória a cada cinco ou seis tentativas. Mas pode ao
menos ter certeza de que não é nada pessoal.
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