Era uma casa pequena demais pra
tanta doença, mas o que seriam das noites em torno da mesa não fosse a rica
profusão de mal-estares? Não era a comida ou o amor, mas sim (o absurdo prazer
em relatar) o incômodo físico que os mantinha vivos, falantes e unidos.
Dona Nelma sofria de um suco
gástrico mordaz que lhe causava amigdalites, aftas e algumas falsas suspeitas
de infarto. Seu Alcides tinhas dores espalhadas pelo corpo todo e colecionava
médicos e seus diferentes diagnósticos: fibromialgia, neuropatia, artrite
reumatoide. Danilinho, o filho mais velho, estava tranquilo vendo TV quando
começava a se tremelicar inteiro e ter medo de morrer. Desde muito novo lhe
entucharam anticonvulsivantes, mas jamais lhe perguntaram o que ele sentia.
Drica era o ET da família, pois
quase nunca ficava doente. Porém, muitas vezes cansada de não receber nenhuma
atenção nos jantares, de ser preterida até mesmo pelo idoso e cardíaco cachorro
Arthur (recentemente tratando mazelas renais), deu graças a Deus quando seu
corpo inteiro foi tomado por manchas vermelhas que ardiam e coçavam. Algumas,
pra sua alegria, viraram feridas com pus. Drica agora tinha lugar à mesa.
Pobre novela ou "Jornal
Nacional", querendo competir com as manchetes hospitalares e laboratoriais
da família Teixeira. Eles salivavam pelo momento mais esperado do dia: a
competição "hoje eu tô pior que vocês". Eram viciados no jogo da
insalubridade. Danilinho e mais uma tomografia que nunca descobria nada. Seu
Alcides e mais uma ressonância inconclusiva. Nelminha e sua descrença nesses
médicos "de hoje" que nunca resolviam seu problema. Drica, mangas
compridas mesmo no verão, estava no terceiro tratamento e, em seu íntimo,
torcia para piorar. A solidão, o não pertencimento, eram piores do que a
psoríase, transformadas por suas unhas angustiadas em chagas abertas.
O que teria acontecido se Danilinho
tivesse espaço, naquela casa, para falar sobre o medo de crescer, o medo de ser
bissexual e a necessidade de trancar a porta do quarto, às vezes, para poder
ser apenas jovem e não um objeto eterno de afago tóxico de uma mãe que não
suportava carregar sozinha o inferno dentro do esôfago?
O que teria acontecido se seu
Alcides tivesse feito as viagens que planejou, construído as casas que
desenhou, ido embora por alguns dias, com o carro que durante tanto tempo
guardou dinheiro para ter? Seus membros talvez não gritassem histericamente o
peso insuportável da imobilidade, seus nervos não inflamariam tanto, motivados
por uma febre raivosa "de tudo que ele poderia ter sido".
O que seriam das tórridas biles
descontroladas de dona Nelma se ela pudesse colocar em palavras organizadas (ou
em ação despudorada) o desejo de trepar com todo homem que passasse na rua
menos com o egoísta descortês com quem divide a cama há mais tempo do que lhe parece
tolerável? Que fim levariam as sensações de "facadas na boca do
estômago" se ela pudesse empunhar sua arma em objeção às chatices da vida
e das convenções e não mais contra as suas fantasias?
Se a família Teixeira pudesse falar,
soubesse falar, tivesse a coragem de falar, o que seria da indústria
farmacêutica, dos planos médicos, da máfia dos mil exames computadorizados e
desnecessários, dos médicos ignorantes que tratam carniças e carcaças e não
crianças assustadas em corpos envelhecidos apenas pelo tempo?
Drica passou o rodo na firma e sua
única coceira agora é da candidíase. Está bem melhor.
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