A minha madrinha Sônia tocava gaita para mim.
Não harmônica; gaita de botão e teclado, que, no Nordeste, vira sanfona.
A Madrinha, assim a chamo desde pequeno,
Madrinha, pois a Madrinha me levava aos filmes dos Beatles e da Rita Pavone.
Eu era apaixonado pela Rita Pavone. Ela era
magra e pequena, aquela italianinha, e tinha dentes de coelho e usava cabelo
curto, com uma franja redonda tapando toda a testa. Não se pode dizer que fosse
um modelo de beleza, mas havia um ar selvagem nela quando cantava Datemi un
martello.
Lembro de um filme em que a Rita Pavone fazia
uma pistoleira do Velho Oeste americano. Os italianos são fascinados pelo Velho
Oeste americano, vide os filmes imortais de Sergio Leone. Você já assistiu a
Era uma vez no Oeste e O bom, o mau e o feio? Não? Então já tem programa para o
fim de semana. Sinto inveja de você, que assistirá a essas obras-primas pela
primeira vez.
Mas eu contava que a Madrinha tocava gaita para
mim. A Madrinha sempre fez todas as minhas vontades, mas, por algum motivo, ela
tocava com certa relutância quando eu pedia. Eu tinha de insistir, “toca,
Madrinha, toca, toca, tocatocatoca”, até que, respirando fundo, ela pegava da
gaita, passava as alças nos ombros, sentava-se no sofá da sala da casa do meu
avô, nos Navegantes, e começava a tocar. Era lindo.
Não sei por que, ela, que tocava tão bem, um
dia resolveu parar.
– Não toco mais – anunciou.
E vendeu a gaita. E nunca mais tocou. Sempre
pergunto por que, e ela muda de assunto. Um mistério.
Havia uma música em especial que eu pedia
sempre: Al di la, do filme O candelabro italiano. Gostava tanto da música, que,
anos depois, já adulto, aluguei o filme e, numa noite de sábado, assisti a ele,
sorvendo um tinto da Toscana.
Não recordo de muita coisa da trama, mas da
cena em que Al di la é cantada, sim. O casal de mocinhos americanos está num
bar da Itália. Os homens usam gravatas e cabelos bem aparados. Todos fumam nas
mesas em volta. Os dois americanos, não. Eles são bem jovens, as peles frescas,
os olhares ingênuos. Estão sentados lado a lado, de mãos dadas. O cantor entoa
os primeiros versos e eles se entreolham, o amor escorrendo feito melaço. Ela
pergunta o que significa “al di la”. Ele responde que é difícil de traduzir
para o inglês e, em seguida, tenta:
– É algo que está muito, muito longe, muito,
muito além deste mundo. É assim que o autor da canção ama essa mulher.
Ela suspira. Ele suspira. Eu suspirei, vendo a
cena.
Al di la. Muito, muito longe, muito, muito além
deste mundo.
Eu, que estou muito, muito longe do Brasil e da
Itália, peguei o Bernardo na escola, dias atrás, e fomos comer uma focaccia na
cantina toscana do meu amigo Andrea. Muitos italianos frequentam o lugar, e um
deles, ao se despedir do Andrea, saiu cantarolando baixinho exatamente essa
música. Não foi nem um cantar, foi mais um murmurar dito para si mesmo, como
alguém que está num momento suave e distraído do dia, mas identifiquei com
nitidez, quando ele repetiu:
– Ci sei tu... ci sei tu...Olhei para o Bernardo e disse:
– Ci sei tu... ci sei tu...Olhei para o Bernardo e disse:
– Quando eu tinha a tua idade, minha madrinha
tocava essa música para mim na gaita.
– Que música? – ele quis saber, já que não
havia prestado atenção ao italiano que, àquela altura, estava cantarolando na
outra calçada.
Então, contei sobre aquela música e sobre
aquele filme tão antigos. Ele pediu para ouvi-la. E ali mesmo, à mesa da
cantina do Andrea, saudei a tecnologia e busquei a gravação no YouTube.
Encontrei exatamente a cena de que me lembrava, os mocinhos americanos no bar
enfumaçado, enlevados pela canção. Ele ouviu em silêncio. Depois sorriu:
– Que bonito...
Uma música feita antes de eu nascer, antes dos
celulares com internet que nos permitem voltar ao passado, uma música de tanto
tempo atrás, de um mundo que não existe mais, tinha o poder de encantar um
menino do século 21. A força da arte. A beleza da arte. Que faz com que nada
esteja muito, muito longe, nem muito, muito além.
Al DI LA - Emilio Pericoli
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