Todo fim de
ano, o Diabo recebe um pequeno grupo para jantar no que chama de sua
anticobertura, um duplex no último subsolo do Inferno, escolhendo entre as
almas condenadas as mais interessantes e de melhor papo. Os pratos são sempre
grelhados e o vinho é de produção local, marca Diabo, mas o principal é que
todos se divertem, falando mal de Deus e todo o mundo. Mas, ultimamente, a
questão de quem merece e quem não merece estar no Inferno vem sendo muito discutida
nos jantares, e as queixas dos que se acham injustiçados por estarem lá se
multiplicam.
O Diabo tenta
cortar os lamurientos da sua lista de convidados, mas não pode prescindir da
presença de Oscar Wilde, um dos seus comensais favoritos, apesar das suas
constantes críticas à comida, à companhia e à ausência de ar-condicionado, e
que foi quem primeiro expressou sua revolta. E o Diabo já sabe que em breve
estará enfrentando uma verdadeira rebelião de almas pedindo revisão de sentença
e perdão retroativo. E que seus jantares nunca mais serão os mesmos.
Tudo começou
quando Wilde, fazendo uma cara feia depois de provar o vinho, comentou como
estavam se tornando comuns, na Terra, os casamentos entre homossexuais.
– Eu fui
preso, execrado e excomungado por ser homossexual – disse Wilde. – Se fosse
hoje, em vez de condenado e exilado, eu poderia ser, sei lá, um conselheiro
matrimonial. Não faz muito, a mesma igreja anglicana que me mandou para cá
ordenou um bispo gay. O que é que eu estou fazendo aqui?
O Diabo
tentou mudar de assunto, mas Wilde continuou:
– Me
transfira para o Céu, D. Nada pessoal contra você, mas aposto que o vinho lá é
melhor. Sem falar no clima.
Não adiantou
o Diabo argumentar que nem ele, nem Deus são senhores dos tempos, que mudam, ou
da justiça divina, que não tem apelação. Wilde só prometeu epigramas cada vez
mais pesados, mas o Diabo se prepara para a gritaria dos indignados do Inferno.
Como os que
foram mandados para o Inferno por usura, no tempo em que era pecado. E – como
gosta de lembrar o Diabo, com um sorriso malicioso – a Igreja ainda não
inventara o Purgatório justamente para acomodar os usurários, pois sem eles não
haveria empréstimo a juros, bancos e sistemas financeiros. Hoje a usura não só
é o que faz o capitalismo rodar como é o capitalismo financeiro que manda no
mundo.
E,
principalmente, não é mais pecado, pois os juros não são mais uma abominação
aos olhos do Senhor, e até a Igreja tem bancos. E os condenados por usura no
Inferno perguntam se não têm direito à mesma respeitabilidade conquistada pelos
banqueiros, que hoje enriquecem em vida sem o risco de suas almas penarem na
morte, e à absolvição.
Ou pelo menos
a um upgrade para o Purgatório.
Fernando Gonsales
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