Meu nome é Emanuel. Há tempos, eu pensava em criar um blog sobre leitura mas não encontrava o nome.
"Crônicas Recolhidas e Cia Ilimitada" é, por enquanto, o nome provisório do blog. Além das crônicas, artigos de opinião, contos e poemas terão seu espaço aqui.
Sempre que possível, além do texto, serão incluídos links e/ou imagens relativos ao tema.
Coletâneas
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quarta-feira, 14 de junho de 2017
DEUS
O Blog da Muriel - Laerte
"Deus poderia me dar algum sinal claro! Como fazer ... um grande depósito em meu nome num banco suíço." Woody Allen Allan Sieber
Nani
Eddie - Eu só poderia crer
Perguntaram-me se acredito em Deus... - Rubem Alves
Aconteceu ao final de um debate sobre educação promovido pela Folha. Chegada a hora das perguntas uma senhora me perguntou algo que nada tinha a ver com educação. Perguntou porque lhe doía: "O senhor acredita em Deus?" Houve tempo em que era mais fácil acreditar em Deus. Hoje até o Papa se atrapalha. Na sua visita ao campo de concentração de Treblinka perguntou o que não deveria ter perguntado: "Onde estava Deus quando esse horror aconteceu?"
Heresia porque a pergunta silenciosamente afirma que Deus não estava lá. Se estivesse não teria deixado aquele horror acontecer. Pois Deus não é amor e todo poderoso? Se estava lá e deixou acontecer ou ele não é amor ou não é todo poderoso. Por outro lado, se ele não estava lá ele não é onipresente...
Depois do atentado terrorista ao World Trade Center o "New York Times" publicou um artigo com essa mesma pergunta: Onde estava Deus? Se estava lá, por que deixou acontecer?
Dietrich Bonhoffer, pastor protestante que foi enforcado por haver participado de um frustrado atentado para assassinar Hitler -às vezes não há como fugir: ou matar um único, para que muitos não sejam mortos, ou, para preservar a pureza pessoal, não matar esse único e deixar que milhares sejam mortos; a inocência pode ser mais criminosa que o crime..., lutou com essa pergunta: "Onde está Deus?" Sua resposta foi simples: "Deus está aqui, mas ele é fraco..."
Se Deus existe e é forte, como perdoá-lo por permitir que aconteça o horror de sofrimento que não deveria acontecer? Mas se Deus é fraco ou não existe, então seria possível perdoá-lo e amá-lo. Aí choraríamos e diríamos: "Se Deus existisse e fosse forte isso não aconteceria..." A gente fica, então, com saudade do Deus que não existe. Mas eu não disse nada disso para aquela senhora. Apenas perguntei de volta, pedindo um esclarecimento: "Acreditar em qual Deus? Há tantos... Homens ferozes e vingativos têm um Deus feroz e vingativo que mantém, para sua própria alegria, uma câmara de torturas chamada Inferno para vingar-se dos seus desafetos. Há o Deus jardineiro que criou um Paraíso e mora nas árvores e nas correntes cristalinas. Há o Deus com alma de banqueiro que contabiliza débitos e créditos... Há o Deus da Cecília Meireles que se confunde com o mar... Há o Deus erótico que inspira poemas de amor carnal... Há o Deus que se vende por promessas e faz milagres... E há também o Deus criança de Alberto Caeiro e Mário Quintana. Qual deles?"
Ela ficou em silêncio, meio perdida. Então lhe respondi com os versos do Chico: "Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu".
E perguntei: "Qual é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto para o filho que chegará amanhã ou a que arruma o quarto para o filho que nunca chegará?".
E acrescentei: "Sou um construtor de altares. Construo meus altares à beira de um abismo. Eu os construo com poesia e beleza. Os fogos que acendo sobre eles iluminam o meu rosto e aquecem o meu corpo. Mas o abismo continua escuro e silencioso..."
Will Tirando
Fernando Gonsales
Céllus
Pitty - Deus Lhe Pague
O homem que só tinha certezas - Adriana Falcão
Nem o homem feliz de Maiakovsky nem o homem liberto de Paulo Mendes Campos, resolvi imaginar outra improbabilidade. Digamos que aparecesse agora, justo aqui no Brasil, no Rio de Janeiro, mais exatamente, bem aí na sua frente, um homem que só tivesse certezas.
O homem que só tinha certezas quase nunca usava ponto de interrogação, e em seu vocabulário não constavam as expressões: talvez, quiçá, quem sabe, porventura.
Parece que foi de nascença. Ele já teria vindo ao mundo assim, com todas as certezas junto, pulou a fase dos por quês e nunca soube o que era curiosidade na vida. Na escola, era uma sensação. Mas não ligava muito pra isso não. E cresceu achando muito natural viver derramando afirmações pela boca. Tinha resposta pra tudo, o homem que só tinha certezas, mas o maior orgulho do homem eram as certezas mais duvidosas que ele tinha. A certeza de que o mais fraco ia vencer, de que as coisas iam melhorar, de que o desenganado ainda teria muitos anos pela frente.
A notícia espalhou-se rapidamente. Como ele vivia no meio de pessoas, e pessoas vivem cheias de dúvidas, logo começaram a pedir sua opinião para os mais diversos assuntos, os triviais e os de grande importância, e ele, certo de que podia viver muito bem de suas certezas, virou um consultor. Pendurou em sua porta uma placa onde estava escrito "Consultor de tudo" e o negócio foi crescendo aos pouquinhos. Devido ao boca-a-boca favorável de clientes e a um único anúncio no rádio, passou a atender, sem nenhum exagero, milhares de pessoas por dia, até que limitou o número de consultas diárias para quatrocentos e oitenta, um minuto e meio por pessoa, o que era mais do que suficiente para uma resposta certa desde que a pergunta não fosse muito longa.
Chegava gente do país inteiro e depois de outros continentes, pessoas comuns, pessoas ilustres, todas elas indecisas, mas cada pessoa só tinha direito a uma pergunta por consulta, o que as deixava mais indecisas ainda. Certa vez uma moça chegou na dúvida se devia perguntar primeiro sobre o amor ou o trabalho, no que o homem respondeu, sobre o amor, é claro, senão você não vai conseguir trabalhar direito, e deu por encerrada a consulta. O homem que só tinha certezas aconselhou um garoto tímido a tomar quatro cervejas, encorajou um político receoso a aprovar um projeto esquisitíssimo que se destinava a melhorar a vida dos homens, avisou a uma senhora preocupada com os anos que no caso dela nada melhor do que beijos na boca, desentorpeceu um rapaz doente de amor por uma mulher que gostava de outro, convenceu o ministro da fazenda de que ou o dinheiro era pouco, ou eram muitos os homens, ou ele estava louco, ou alguém tinha se enganado nas contas.
Não demorou muito para se tornar capa de todas as revistas e personagem assíduo dos programas de TV. Para cada pergunta havia uma só resposta certa e era essa que ele dava, invariavelmente, exterminando aos pouquinhos todas as dúvidas que existiam, até que só restou uma dúvida no mundo: será que ele não vai errar nunca? Mas ele nunca errava, e já nem havia mais o que errar, uma vez que não havia mais dúvidas.
Num mundo que só tinha certezas, o homem que só tinha certezas virou apenas mais um homem no mundo. Melhor assim, ele pensava, ou melhor, tinha certeza.
Um dia aconteceu um imprevisto, e o homem que só tinha certezas, quem diria, acordou apaixonado. Para se assegurar de que aquela era a mulher certa para ele, formulou cento e vinte perguntas, que ela respondeu sem vacilar, mandou fazer mapas do céu, exames de sangue, contagem de triglicerídeos, planilhas complicadíssimas e finalmente apresentou a moça à sua mãe e ao seu cachorro. Os dois se amaram noites adentro, foram a Barcelona, tiraram fotos juntos, compraram álbuns, porta-retratos, garfos, facas, um escorredor de pratos, tiveram filhos e tal, e, desde então, por alguma razão desconhecida, o homem que só tinha certezas foi perdendo todas elas, uma por uma. No início ainda tentou disfarçar, por via das dúvidas, quem sabe era um mal passageiro? Mas as dúvidas multiplicavam-se como praga (dúvidas se multiplicam?), espalharam-se pelo mundo, e agora, meu Deus? Deus existe? Existe sim. Ou será que não? Ele não estava bem certo.
MALVADOS - ANDRÉ DAHMER
Pitty - O inimigo
Quando Deus esquece os óculos - Martha Medeiros
Ele vê tudo. Era no que eu acreditava quando criança. Ficava muito impressionada com esse poder que nenhum super-herói tinha, e até me sentia meio inibida ao entrar no banho. Aí cresci e descobri que Deus, mesmo sendo onipotente e onipresente, dá suas escorregadelas – mínimas, mas dá. Sendo um ancião (nunca se falou em Deus como sendo um jovem), certamente precisa de óculos. E os esquece em algum lugar, como todos nós. Totalmente compreensível.
Quando são entregues coletes salva-vidas forrados de papel para refugiados que se lançam ao mar, quando médicos faltam aos plantões onde centenas de doentes fazem fila para ser atendidos, quando políticos dos mais diversos partidos compactuam com safadezas em proveito próprio, quando ônibus são depredados a título de manifestação, quando moradores da cidade são assaltados e baleados a qualquer hora do dia, Deus não está vendo nada – está procurando seus óculos, que não sabe onde largou.
Quando pessoas com ossos fraturados esperam anos para conseguir uma consulta na rede pública (se tiverem a sorte de não morrer antes), quando trabalhadores têm seus pertences arrancados pelas mãos de pequenos delinquentes, quando pequenos delinquentes não recebem nenhum tipo de educação e afeto de suas famílias (se tiverem a sorte de ter uma família), quando empresas fazem um trabalho porco para faturar mais, sem se preocuparem com as consequências (estradas esburacadas, pontes que caem, barragens que rompem), quando a ausência de higiene urbana facilita a proliferação de um mosquito indesejável, o que Deus pensa disso tudo? Nada, coitado. Nem viu a confusão. Está ocupado procurando os óculos na cozinha. Só podem estar ali.
E se ele não enxerga o macrocosmo, como enxergará o micro, esses borrões que somos você e eu, cada um em sua casa, com problemas que, se comparados com os da humanidade, nem mereceriam esse nome? Amores que não estão dando certo, a dor no ombro, a artrite, o cabelo que não para de cair, a dificuldade em emagrecer, o vício no cigarro, amigos que se transformam em ogros nas redes sociais, a festa de 15 anos que não deu pra pagar, o emprego que escapou das mãos, o medo da solidão, o pavor de envelhecer, as dívidas em dólar, a depressão bloqueando o entusiasmo. E esse Deus distraído que não encontra seus óculos em local algum.
O preconceito que cada um sofre por causa de sua raça, de sua sexualidade, de sua deficiência, de sua religião. Aliás, você é religioso e tem certeza de que Deus enxerga muito bem, que está vendo tudo, inclusive está de olho numa colunista desaforada que anda duvidando que Ele esteja com os óculos bem na ponta do nariz.
Pode ser, mas vai dizer: não parece que Deus perdeu os seus?
Leno - Sentado no Arco-íris
Sentado no Arco-Íris tão perto e tão
distante
Milhões de anos-luz lá no fundo de
mim mesmo
Fico em vão sem saber, fico em vão a buscar
Aonde Deus está.
Tambores gritam guerra em código e fumaça
E os olhos da cidade vigiam cada esquina
Fico em vão sem saber, fico em vão a buscar
Aonde Deus está.
Vejo de longe, sinto de perto
Se está errado ou se está certo
Olho essa gente, gente sem terra
Gente sem nome, velha de guerra
Percebo a solidão pelas ruas da avenida
Sentado no Arco-Íris eu penso em minha vida
Fico em vão sem saber, fico em vão a buscar
Aonde Deus está.
O Terço - Deus
Eu não vou mais parar
Eu não sou, Deus
Dou um passo no ar
Onde estou, Deus
Sigo a subir, meu caminho astral
Vou achar
Venha me seguir, juntos descobrir
Nosso Deus
MALVADOS - ANDRÉ DAHMER
Velho ateu - Eduardo Gudin e Roberto Riberti
Jó ao contrário - Antonio Prata
Havia um homem na cidade de São
Paulo cujo nome era Oj; homem pobre e refém de tribulações, e que só fazia
praguejar e lamuriar. Nasceram-lhe sete filhos e três filhas, e Oj labutava de
sol a sol, e o dinheiro se esvaía em Pampers e Hipoglós óleo de amêndoas, e as
fraldas acabavam no meio da madrugada, e Oj saía para comprar mais na Drogasil,
duas e meia da manhã, de pijama, em seu Corsa 1999.
Num dia em que
os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás
entre eles. E disse Satanás ao Senhor: “Vede este teu servo na fila do caixa da
Drogasil? Vós lhe destes a boca para beber a água fresca dos regatos e os olhos
para contemplar as flores do campo, ouvidos para despertar com o gorjeio dos
pássaros e mãos para acariciar os cabelos sedosos da amada; teu servo, porém,
passa os dias a maldizer a data em que nasceu. Esta enfadada criatura é o mais
perfeito retrato de Tua criação”.
Então disse o
Senhor a Satanás: “Verdade não há no que dizes. Oj resmunga pois lhe faltou
sorte, e a sorte que lhe dei arruinou com seu livre arbítrio, mas se a vida
melhorasse um pouquinho, um sorriso ele abriria, e ergueria as mãos para os
céus, e cantaria Gracias a la vida, da Violeta Parra, como tantos filhos meus
já vi cantarem”.
Então, vendo
que Satanás duvidava, Deus fez a caixa da Drogasil estender a Oj uma
raspadinha, e Oj ganhou um Land Rover 2017 e uma viagem para o Club Med Rio das
Pedras. O Land Rover Oj vendeu, e pagou dívidas, e encheu sua morada de fraldas
Pampers e Hipoglós óleo de amêndoas, e logo estava pobre e infeliz novamente.
Na viagem, Oj não parou de reclamar que na piscina só tocava sertanejo
universitário, e que no Rio das Pedras havia pedras em demasia, e que o sushi
no bufê “all-inclusive” era um Monte Sinai de arroz para um solideuzinho de
salmão, e, regozijando-se, disse Satanás ao Senhor: “Ah, humanidade, ingratidão
é teu nome!”.
Então disse o
Senhor a Satanás: “A felicidade passageira é invisível aos olhos de quem muito
sofreu, como a presença do Senhor é imperceptível para os corações dos incréus,
mas o tocarei agora com felicidade duradoura, e verás se Oj não erguerá as mãos
para os céus e cantará Freedom, do George Michael, antes da viração do dia”. E,
dizendo isso, num só movimento, Deus curou a rinite, a sinusite e as frieiras de
Oj, e lhe deu uma segunda raspadinha com R$ 20 milhões, e lhe fez 10
centímetros mais alto e 10 quilos mais magro, e lhe enviou por Sedex a caixa
completa com as nove temporadas do Seinfeld, e o Senhor e Satanás sentaram-se
em seus tronos de ouro e éter nas alturas dos céus, a contemplar as reações de
Oj.
Oj, porém,
continuava que era só mimimi, e não sabia se investia os milhões em imóveis ou
no Tesouro direto, as calças estavam largas e curtas, e sem frieiras não tinha
mais o que coçar assistindo Seinfeld, e o Jerry tinha que namorar a Elaine, e o
protagonista devia ser o Kramer, e quando ia Oj falar que sentia falta da
rinite o Senhor Deus se impacientou, e desceu das alturas, e, aparecendo diante
de Oj, o mandou catar coquinhos – literalmente. E o resto de seus dias passou
Oj perambulando por São Paulo, faminto e maltrapilho, maldizendo o Senhor, pois
há pouquíssimos coquinhos nesta cidade de clima temperado, ainda se fosse no
Rio, ainda se fosse em Salvador, e 140 anos catando coquinhos viveu Oj, então
morreu Oj, velho e farto de seus dias.
Carlos Ruas
Gênesis, revisto e ampliado – Antonio Prata
Então o Senhor Deus disse a Adão: porquanto deste ouvidos à tua mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra por tua causa; com o suor do rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porque tu és pó e ao pó tornarás.
E, vendo o Senhor Deus que Adão fazia-se de desentendido, disse: espera, que tem mais; não só custará o pão o suor de teu rosto, como aumentará a circunferência de tua barriga, e a circunferência de tua barriga desagradará à Eva, e Eva te dará chuchu, e quiabo, e linhaça, e couve, e outras ervas que dão semente e leguminosas que dão asco, e delas usarás como alimento, em teus dias de tribulação.
E disse também o Senhor: porquanto comeste da árvore, porei em teu encalço insetos peçonhentos, e serão pernilongos nas cidades, e nas praias borrachudos serão; e ordenarei que te piquem bem na pelinha entre os dedos dos pés, e que zunam em teus ouvidos, e nas noites sem fim recordar-te-ás de teu criador.
Não satisfeito com os castigos, continuou o Senhor Deus: que destas ventas por onde soprei a vida escorra muco, e que seja frio e pegajoso como as escamas da serpente, e caudaloso como as águas do Jordão, e que brote numa sessão de cinema, ou na Sala São Paulo, e que tenhas à mão somente uma folha de Kleenex, e que com ela te enxugues e te assoes, até que se esfacele a última fibra de celulose, marcando teu rosto com inumeráveis pontinhos brancos, como marcarei a face pecadora de Caim.
E assim vagarás pela terra, disse o Senhor Deus, pois grande é teu pecado. E disse mais: cansado de perambular pela terra, inventarás o automóvel, mas o automóvel só fará multiplicar o teu cansaço; e gastarás metade de teus dias na Rebouças, e roubarão teu estepe, e te esquecerás do rodízio, e os pontos de tua carteira excederão o máximo permitido pelo Detran, que será 21, e andarás de táxi, e ouvirás elogios ao massacre do Carandiru, e diatribes contra médicos estrangeiros, e sentirás na carne a miséria de tua descendência.
Em vão, buscarás refrigério em viagens, mas quando no aeroporto estiveres, e chegares ao portão 4, alto-falantes te mandarão para o 78C; e quando o 78C alcançares, serás mandado de volta ao portão 4, e faminto pagarás R$ 16 num pão de queijo e numa Coca, e a Coca será de máquina, e o pão de queijo estará frio.
Então, visto que se aproximava a viração do sétimo dia, Deus se apressou, e disse: que o sal umedeça, que o bolo seque, que a meia fure, que a privada entupa, que o dinheiro escasseie, que o cupim abunde, que a unha encrave, que a internet caia, que o time perca, que a criança chore, que o churrasco do teu cunhado seja melhor que o teu, e que todos assim concordem, inclusive Eva, e que, largado num canto da varanda, com tua Kaiser quente na mão, te lembres que eu sou El Shaddai, e que estou acima de todas as coisas, inclusive de tua careca, que não temerá a finasterida, não aceitará o minoxidil nem reagirá às preces que, em vão, me enviarás.
E, dizendo isso tudo, o Senhor Deus lançou Adão para fora do jardim do Éden, e lançou Eva para fora do jardim do Éden, varão e fêmea, os lançou.
Carlos Ruas
Adams Carvalho
Carta de demissão – Antonio Prata
Primeiramente, gostaria de agradecer a todos. Dizer, do fundo do coração, que vocês são a minha maior obra, amor e orgulho. Olhando
para trás, nem acredito. Parecia impossível, mas eu fui lá e fiz. Do nada. De
antes do nada, na verdade, uma vez que o nada já pressupõe algo contrapondo-se
à sua “nadidade”. (Nem sei por que pus aspas: o que é um neologismo para quem
inventou o avestruz?). Pá! Big Bang! Pá! Tempo e espaço! Universo! Natureza!
Vocês!
Hoje, quando vocês querem comunicar que construíram algo do
zero, costumam dizer: “quando eu cheguei, era só mato”. Nem imaginam o trabalho
que tive para chegar no mato. Foram treze bilhões de anos pra conseguir um
broto. Só pra criar o carbono foi um esforço tremendo. Imagina, pensar num
único elemento que seja a base de toda a vida? Pra isso tive que criar fornos
gigantes. Ah, as estrelas!
Brincando, brincando, põe aí mais uns bilhões de anos
ralando. Problema atrás de problema.
Então, uns cinco bilhões de anos atrás eu olhei pra Terra e
disse: taí, gostei. Gastei um tempo polindo, lixando, envernizando, me estabeleci
e construí toda uma carreira reconhecida, devo dizer, sem humildade, por mais
de uma religião. (Um agradecimento especial ao judaísmo, que primeiro acreditou
em mim; ao cristianismo, que tanto investiu e divulgou o trabalho da família, e
ao islamismo, ainda que fake news de invejosos tentem propagar o absurdo de que
Javé e Alá não são a mesma entidade).
Tenho certeza, olhando pra trás, de que fiz um trabalho
importante. Oceano, atmosfera, borboleta, ser humano. Pitágoras. Pi. Bhaskara.
Orgulho-me demais de ter olhado praqueles oceanos mortos lá atrás e pensado:
“Quer saber? Vou meter aí uns coacervados!” Daí pras amebas, organismos
multicelulares, os dinossauros e vocês, foi um pulo. Duplo twist carpado.
Nos últimos tempos, contudo, tenho me sentido cansado. Treze
bilhões de anos na mesma função, é puxado. Resolvi assumir algo que já estava
latente em mim, mas que eu ainda não conseguia elaborar: eu curto criar, não
gerenciar. Admito, aliás, sem ressentimento, que fui mais competente na criação
do que na manutenção.
Eu criei o mundo porque gosto da emoção de tirar um projeto do
zero. Mas aí, depois de seis dias, estacionei num cargo de gerência e nunca
mais saí. Sinto que meu ciclo, por aqui, se completou.
Ainda não sei a que vou me dedicar. Talvez criar outro universo
do zero. Talvez um projeto mais simples. Pegar um planetinha charmoso qualquer
em Alfa Centauro e fazer a vida começar do zero. Algo pro lado dos polvos. Ou
dos fungos. Ou polvos com fungos. Tentáculos e micélio.
Talvez, quem sabe, eu não faça nada por um ou dois milhões de
anos. Aprendi a meditar recentemente e esvaziar a cabeça dos pensamentos me
ajudou bastante nos últimos cinco milênios. Ajudou, inclusive, com meu problema
de bipolaridade. Vocês devem ter notado. Idade Média, Renascença. Einstein,
Hitler. Beatles, Vietnã. Samba, milícia. Pensando bem, não ajudou tanto.
Preciso parar. Pensar e cuidar de mim.
Já tenho feito isso, aliás. Não é segredo para ninguém que me
ausentei de 2013 pra cá. Lamento, mas tem um momento na vida em que a gente
precisa pensar só em si. Não se desesperem. As coisas vão piorar bem depressa,
o sofrimento será curto e logo vocês voltarão ao pó de que vieram. Adeus (sem
trocadilho!).
Deus.
Céllus
Adams Carvalho
Orgasmos múltiplos – Antonio Prata
Não sei quando, exatamente, começou, mas agora é geral.
Deus, outrora inalcançável nas alturas celestes, foi trazido pra vida pedestre
e virou cumprimento. "Obrigado", eu digo e: "Deus te
abençoe". "Boa tarde", eu digo e: "fica com Deus". Sou
grato aos meus generosos interlocutores, mas, infelizmente, diante de votos tão
grandiosos, eu não fico com o Todo-poderoso, fico é meio embaraçado.
Eu não creio em Deus e nem, como escreveu Campos de
Carvalho, creio que ele creia em mim. Não me levem a mal os leitores
religiosos. Se eu pudesse escolher, acreditaria. Rezaria e comungaria como se
não houvesse amanhã. Até porque para nós, ateus, realmente não há. Morreu, já
era. Saímos da vida para entrar não na história, como Getúlio, mas na tabela
periódica, sem direito a um mísero purgatório. É uma péssima perspectiva.
Um ser superior olhando por mim e que, no fim da vida, caso
eu não o desapontasse, me agraciasse com uma eternidade num paraíso é uma ideia
bem sedutora. Infelizmente a fé, assim como gostar de sashimi ou de cachorros,
é algo que vem de berço: ou a gente aprende pequenininho ou nunca mais. Fui
exposto cedo ao bairro da Liberdade, mas não à Bíblia ou ao Petz, de modo que
minhas papilas gustativas, físicas e metafísicas, se dão melhor com peixe cru
do que com a hóstia ou Bobby, Lulu, Snoopy, Rex, Rin tin tin.
Embora ateu, não sou desses que zombam da fé alheia, como o
biólogo Richard Dawkins, que viajava o mundo dando palestras de
desevangelização. Acho essa pauta meio boboca. Os ateus são tão crentes quanto
os crentes, só botam a fé em entidades seculares. Crer em Javé, Alá ou em
Olorum não me parece mais ou menos aleatório do que achar que vestir um jacaré
ou um jogador de polo sobre o peito esquerdo fará de nós seres humanos mais
valiosos. Pensando bem, sou bem mais Deus do que o jacarezinho ou o cavaleirão.
É justamente por respeitar a fé alheia que fico meio
atordoado quando me dizem "Deus te abençoe". O cidadão está me
oferecendo o que de mais precioso ele tem. A bênção ou a presença de um ser
sobrenatural que pode me salvar de um atropelamento, limpar minhas coronárias,
trazer felicidade ou vida eterna: eu vou responder com "bom fim de semana?".
É muito mixo.
Estive pensando em respostas que, respeitando as minhas
crenças, fossem da mesma grandeza. "Deus te abençoe", diz a pessoa.
Eu respondo: "Orgasmos múltiplos, amigão". "Fica com Deus",
me deseja o sujeito. "Colesterol baixo, querido!". "Que Deus
esteja com você!". E eu: "Só série A pro seu time, parceiro!".
Não, não parece que agradaria.
Foi então que, outro dia, trabalhando com cariocas, fui
introduzido a uma nova forma de tratamento. Na infinita inflação de afeto que o
povo do Rio aplica sobre a linguagem, depois de "amigo",
"querido" e "amado", chegou-se a essa pérola sergiobuarqueana:
"consagrado". Você entra na padaria, pede uma Coca e o cara te
responde: "taí, meu consagrado!".
"Consagrado", segundo o dicionário, é o "que
se tornou sagrado ou recebeu consagração". É um abençoado por Deus.
Pronto. Tá resolvido. A pessoa me diz "fica com Deus!" e eu respondo
"tudo de bom, meu consagrado!". Ela deseja que Deus se aproxime e eu
já dei a ela 100% de aprovação divina. Sem blasfêmia, porque tô só manejando a
gíria popular. Fico mais tranquilo, nem em dívida, nem herege. Por hoje é só,
pessoal. Desejando orgasmos múltiplos, colesterol baixo e só série A, meus
consagrados.
ilustração: Adams Carvalho
Crença - Fábio Porchat
Atendente Boa tarde, posso ajudar?
Cliente
Eu tava querendo uma religião.
Atendente
Ah, bem legal. Tá procurando alguma coisa específica?
Cliente
Não, é mais pra distrair mesmo.
Atendente
Bom, se é para distrair, a gente vai ter uma religião católica aqui que pode ser bem interessante.
Cliente
Será? Não sei. Tô achando meio batida.
Atendente
Bom, a mais da moda é o islamismo mesmo.
Cliente
Mas daí é muito empenho, eu queria uma coisa mais pra usar em casa, uma coisa mais levezinha.
Atendente
Temos o budismo que é bem em conta e tá saindo muito.
Cliente
É uma, hein?
Atendente
É bem relaxante essa.
Cliente
Essa aqui é qual?
Atendente
Essa é a cientologia.
Cliente
Como é que é essa aí?
Atendente
Ah, o espiritismo. Hoje o espiritismo está na promoção, tá? E se você quiser levar um espiritismo, paga apenas 50% em qualquer umbanda dessas daqui. Candomblé também.
Cliente
Aceita cartão?
Atendente
Todas as bandeiras. A evangélica é que tem muita gente usando. Mas daí custa um pouco mais caro.
Cliente
E o judaísmo, hein?
Atendente
Tem que pedir no estoque e ver se eles autorizam.
Cliente
Tá.
Atendente
Se quiser uma coisa um pouco mais radical temos uma mórmon aqui que pode ser a sua pedida. Até a Testemunha de Jeová também é uma opção...
Cliente
Não sei, acho que eu vou dar mais uma olhada.
Atendente
Se você quiser, a gente pode aqui preparar uma mistura pra você com um pouquinho de tudo. Funciona bem também. O brasileiro adora. É um pacotão completo: Você passa a acreditar em Deus, acha que vai pro céu, mas também acende uma velinha, vê espírito, medita, pula sete ondinhas e lê a Bíblia.
Cliente
Ah, gostei dessa.
Atendente
Todo mundo gosta.
Cliente
Mas coloca aí nesse pacote as 70 virgens.
Atendente
Quer que embrulhe?
Will Tirando
Camisa de Vênus - Deus, me dê grana
Tudo outra vez - Carlos Heitor Cony
Deus - Aqui estamos juntos de novo. Continuo sem entender o que acontece no Brasil.
Lúcifer - Também estou perplexo.
Deus - E eu? Não podia imaginar que houvesse tantos justos no Brasil. Todo mundo lá agora é ético...
Lúcifer - Houve época mais fácil para vós, ó Todo Poderoso! Lembra quando mandou o dilúvio?
Deus - Lembro, só havia um varão honesto na face da Terra, mandei que ele construísse uma arca...
Lúcifer - E Sodoma e Gomorra? Até a mulher de Lot estava no esquema da Petrobras.
Deus - E essa história de passar o Brasil a limpo? Vai colar?
Lúcifer - Tenho minhas dúvidas. Estou informado de que alguns empreiteiros já armaram um lobby para pegar o serviço...
Deus - Vai haver licitação?
Lúcifer - Parece que não. O argumento é que se trata de tarefa urgente, um clamor nacional, os brasileiros não podem perder tempo...
Deus - Talvez fosse melhor a todos.
Lúcifer - Já aguentei muita coisa em minha existência. Quando seu filho andou pela Terra fez o diabo comigo. Principiante... pensei que fosse mole, o Gabriel e o Miguel estavam na conspiração, mas pularam fora e eu assumi o abacaxi sozinho... não havia STF para decidir sobre o mérito.
Deus - São águas passadas. O problema é que não fica bem nós dois ficarmos boiando nessa crise.
Lúcifer - Afinal, quem é o Grande Tentador? Vossa Onipotência ou eu?
Deus - No Brasil, a coisa é diferente. Passe uma temporada lá, apareça no programa do Jô, espalhe que tem um caso com a Gisele Bündchen.
Lúcifer - E qual a garantia de que não vou quebrar a cara de novo?
Deus - Para não chamar atenção, garanto empate no tempo normal.
Lúcifer - Não pode ser decisão por pênalti? Assim disfarçamos melhor.
Deus - E se o PT desconfiar e botar a boca no trombone? Eu não posso sofrer impeachment. Não tenho vice.
MALVADOS - ANDRÉ DAHMER
Nani
Carlos Ruas
A VIDA COMO ELA YEAH - ADÃO ITURRUSGARAI
Daniel Lafayette
Nani
Renan César
Venes
Cellus
Deus e Ray Conniff - Leandro Karnal
Um dia fui apresentado à ideia da eternidade divina. Deus sempre existiu e sempre existirá. Não me lembro, ao longo de toda infância e adolescência, de ter encontrado algum colega, amigo ou escrito que colocasse em dúvida a onipotência e eternidade divinas. A fé era o oxigênio, a essência do nosso mundo.
Minha identidade religiosa era católica. Na capela do colégio, quando a irmã Eloísa (sem h) tocava no grande harmônio Schiedmayer o hino pontifício de Gounod, eu sentia que estava na margem correta do rio da verdade. Não conhecia outra. A certeza gerava uma tranquilidade feliz. Na versão de D. Marcos Barbosa OSB, o coro do colégio quase gritava: Ó Roma eterna, dos mártires dos santos, Ó Roma eterna, acolhe nossos cantos! Glória no alto, ao Deus de Majestade, paz sobre a Terra, justiça e caridade. A luz azulada dos vitrais alemães entrava no fim da tarde e minha fé era, naquele momento, o cruzamento da beleza estética, da tradição histórica e da força repetidora da minha tribo.
Na biblioteca do meu pai descobri Eça de Queirós. Li O Crime do Padre Amaro e A Relíquia. Eram textos do liberalismo anticlerical do século 19. Um padre que engravidava uma moça e um tartufo português foram baques fortes na adolescência. Porém, não me lembro de ter ficado muito abalado, mas, pelo contrário, feliz em viver cercado de bons padres e freiras. O mal parecia ficcional. O bem era próximo e biográfico. Acabei lendo toda a obra do português e tendo muito prazer. Não estava ali a semente da minha descrença. Meu pai era católico ultramontano e também apreciava O Primo Basílio e As Cidades e as Serras. Eça escrevia muito bem: se fosse ateu ou chacoalhador de rosários, continuaria sendo um gênio.
A leitura de Sartre foi mais forte. Descobri no ensino médio e continuei na faculdade. Ecoava em mim a ideia da palestra tornada panfleto do existencialismo: ainda que Deus existisse, em nada alteraria a situação humana. Estávamos condenados à liberdade. A onisciência divina era incompatível com livre-arbítrio, dizia o autor de O Existencialismo É Um Humanismo.
Tenho uma intuição de que ninguém perde a fé lendo autores anticlericais ou ateus, mas que questionamentos pessoais levam a autores que endossem nossa posição. O ateísmo intelectual é buscado porque existe um sentimento de afastamento e construção de identidade distinta dos nossos pais e do nosso meio. A rebeldia filosófica e histórica pode chegar depois de uma rebeldia freudiana. Em alguns casos, “não creio em Deus” quer dizer “não creio no Deus dos meus pais” e, por extensão, sou alguém que tem uma vida própria. Rejeitar Deus estava no mesmo pacote de rejeitar o gosto do meu pai pela música de Ray Conniff.
A segunda instância da descrença era social. O meio universitário era cético. Ser ateu, agnóstico ou crítico da Igreja ao menos dava status. A gente parecia mais “descolado” se ironizasse a pretensão metafísica alheia. Éramos estudantes de História. Trazer exemplos históricos de corrupção eclesiástica à tona era de um iconoclasmo sedutor. O Leandro que cantara a marcha de Gounod tinha de analisar a vida de Alexandre VI e suas amantes, de Júlio II e seus amantes e até das hemorroidas de Leão X. A humanização do papado abalava a pompa da Marcha Pontifícia. Então, a proctologia pontifícia era a materialização de um papado mais humano.
Como eu disse, não creio que a Filosofia e a História sejam a raiz da descrença. Ser crítico era enfrentar. A professora de História moderna era conservadora e a universidade era jesuítica: a liberdade implicava anticlericalismo. O estudo do “desencantamento do mundo” de Weber não causava, mas reforçava a criação do nosso próprio mundo. Era proibido desprezar a pobreza, a América Latina ou a ideia da justiça social. Racistas eram excomungados do grupo. Mas... era lícito e bom ironizar a Igreja. Bem afirmaria o futuro papa Bento XVI que o ataque contra a religião era o único preconceito academicamente aceito.
Volto a Freud e a Deus. Havia o desejo sexual. O imperativo hormonal se chocava com a religião. Tudo o que o corpo gritava como “eu quero” a moral religiosa dizia “não pode”. Não parecia possível conciliar os dois mundos, ainda que a Bíblia descrevesse o mesmo choque em tantos patriarcas e reis. Davi desejou Betsabá e, ao decidir sem levar em conta a regra divina, atraiu desgraças para si e para o povo. Jacó deitou-se com a noiva trocada, ainda que seu crime fosse culposo. Onan foi fulminado por Deus.
A solução dos dilemas descritos varia muito. A incapacidade de adaptar o Deus da infância ao mundo adulto é um obstáculo que gera muita descrença. É provável que muitas revoltas religiosas tenham esta fé de vetor contrário. Nossas perdas pessoais e nossa desilusão precisam de um culpado. Rejeitar o Deus de barbas brancas e moralista deveria ser uma evolução na fé e não uma negação do sagrado. Separar Deus das instituições que o representam seria um gesto de lucidez e reforço de crença, como foi para o profeta Amós. Nada mais religioso e profético do que a denúncia e a revolta, mas suportar nossos amplos defeitos, como lemos em Gálatas 6,2-3.
Como incorporar Deus à contingência e à falência dos sonhos? Como aceitar que tantas pessoas que se dizem religiosas sejam tão banais, agressivas e toscas? Se eu fosse o demônio e pretendesse destruir a fé não incentivaria o ceticismo, mas reforçaria o moralismo do beato. Adaptando a ideia de Giovanni Boccaccio, a sobrevivência das Igrejas apesar de seus pastores é uma prova irrefutável de que existe um Deus.
Não existe uma boa solução para tais dilemas. A dor da vida explica o joelho que se dobra e o ceticismo que se levanta. Religiosos e ateus procuram uma solução como as pílulas vermelha e azul do filme Matrix. Ambas funcionam e ambas fracassam. Não tenho a resposta, mas desconfio que parte dela esteja em escutar Ray Conniff.
Genildo
Orlando Pedroso
Benett
CJ - Politicopatas
CACO GALHARDO
Duke
Daniel Lafayette
As Mercenárias - Homem Bicho
Vá com Deus - Leandro Karnal
Jovem e ainda inseguro com os desafios críticos do amadurecimento, comecei a anunciar ao mundo que estava me tornando ateu. Naquela etapa, o ateísmo era muito mais o enfrentamento da tradição. Uns aderiam ao rock, outros faziam tatuagem, alguns fumavam maconha; eu, avesso aos deleites citados, estava virando ateu.
A insegurança é prima-irmã do discurso catequético. Minha piedosa avó recomendava “Vá com Deus” e eu redarguia, arrogante: “Vou de Varig, vó”. Hoje eu seria incapaz de responder assim. A pessoa que me desejou “fique com Deus”, “vá com Deus”, etc., está transmitindo um gesto de carinho dentro do seu código pessoal de crenças. Eu sorriria agradecido e pronto. Entendo que meu ateísmo é exclusivamente pessoal, fruto de experiências e leituras que só têm significado para mim e responde a questões limitadas ao meu universo. Jamais faria palestra em defesa do ateísmo, pois nunca compartilhei da ideia de que não crer em forças superiores, entidades criadoras, sentidos absolutos ou em um motor original do qual emanaria todo o movimento do universo seja algo absolutamente meu e não melhora ou piora o mundo. Ateus e religiosos podem ser éticos ou canalhas, como encontrei muitos em todas as torcidas físicas e metafísicas. Sou contra a intolerância dos sistemas que querem impor fé a todos ou dos regimes que tornaram o ateísmo obrigatório e perseguiram religiosos como a URSS ou o México, especialmente após 1917. Gente autoritária é somente gente idiota, cheirando a incenso ou a razões de Estado. Gente autoritária não tem Deus ou não-Deus, possui apenas um projeto de poder como meta. Acima de tudo, fundamentalistas da religião ou do ateísmo são chatos, muito chatos, insuportáveis na sua missão de levar a luz ao mundo, ou seja, mudar todos para que fiquem a sua imagem e semelhança. Se você segue o pastafarianismo, divertida crença contemporânea, nada altera sua obrigação de lutar contra o racismo ou a misoginia. Da mesma forma, se é um leitor devotado do Evangelho ou ateu, seu compromisso moral com a sociedade é o mesmo.
Há outro preconceito muito forte entre ateus e agnósticos. Pessoas céticas em vários graus costumam achar que descartar a hipótese fé é sinal de superioridade intelectual. A inteligência crítica confere autonomia a uma pessoa, como ensinava Kant ao definir o esclarecimento. Assim, religiosos inteligentes ganham autonomia na sua fé e ateus inteligentes ganham autonomia no seu ceticismo e passam a questionar fora de dogmas absolutos de ser ou não ser. Gente sábia não duvida para afirmar sua superioridade, mas entende que a disputa pelas almas e corpos existe entre governos oficialmente ateus e igrejas. Crer em Deus ou rejeitar a possibilidade teológica deveria sempre ser um gesto radical de entrega a uma liberdade: eu sozinho diante do Criador ou eu e minha consciência diante do mundo em si. Sou tão livre e tão preso como uma pessoa que vai diariamente à missa/culto ou que sente, genuinamente, que a récita do Pai-Nosso inunda sua vida de sentido e proteção. Certa feita, diante do espetáculo impactante de uma série de cataratas, uma amiga segredou-me que via aqui e sentia Deus. Eu via a prova empírica de Newton e pensava em Arquimedes, mas ambos estávamos felizes e conversando, pois éramos seres pequenos diante do volume de água, do som e do impacto extasiante da cena. Gosto muito de Newton exatamente porque era um homem de fé profunda e fez um sistema lógico-científico que serve a ateus e a religiosos.
Alain de Botton escreveu um livro para que os ateus recuperassem muitas coisas positivas das tradições religiosas (Religião para Ateus). Gosto do texto, até mais do que dos livros de Christopher Hitchens e Richard Dawkins. Eu digo algo um pouco distinto. O religioso de verdade, aquele que carrega a ideia de um Deus criador, entende que, tendo o mesmo Pai, todos somos irmãos. Islâmicos, judeus e cristãos falam muito da regra de ouro: não fazer ao outro o que não desejo que seja feito a mim. Compartilho 100% da ideia de uma fraternidade universal, seja ela lógica, humanística ou teológica. Assim eu, ateu, me considero aliado incondicional de todo religioso, pois compartilho a mesma ideia que os devotos devem ter como guia máximo: compreensão, misericórdia, ajuda aos outros, proteção aos vulneráveis e defesa dos pobres. Há trechos a favor dos pobres na Torá, nos Evangelhos e no Corão. Eu e todos os religiosos temos o mesmo inimigo: o fundamentalista. O fundamentalista é aquele que, em nome de um suposto deus, usa seu projeto de poder para imprimir e matar. Ele é inimigo de Deus e da ciência, inimigo da lógica e da revelação, inimigo de todo ser vivo e de toda sociedade aberta. O fundamentalista (religioso, político, científico, etc.) é um ser do ódio que, se tivesse filiação, seria exclusiva com a figura do demônio, nunca com Deus; com a burrice, jamais com a inteligência lógica. Eu sou irmão dos religiosos e inimigo dos que odeiam. Em resumo, se minha avó fosse viva e hoje me dissesse: “Vá com Deus”, em vez de uma resposta irônica e limitada como outrora, eu reconheceria nosso vínculo e a abraçaria dizendo: “Eu também te amo, vó”. Eu era ainda mais idiota quando era jovem. Graças a Deus ou à mitose e meiose das células, cresci um pouco. Que a semana de cada um de nós seja muito abençoada pelas luzes da Razão ou, se preferirem, pelo Deus que deu a Razão aos homens. O importante é a luz e sempre evitar a escuridão diabólica da vaidade e do poder. Urge crer na democracia. É preciso ter esperança.
Angeli
Marco Oliveira
Rúbaí - Filme sobre uma garotinha ateia
"Se você quiser fazer Deus rir, conte a ele sobre seus planos." Woody Allen
Se eu fosse Deus – Luis Fernando Verissimo
Eu gostaria de ser Deus não para consertar o mundo ou melhorar a humanidade, mas, confesso, para um fim menos nobre: conseguir mulher.
Posso imaginar como seria ter ao meu dispor todos os recursos de Deus para impressionar uma mulher. A começar pelo seu espanto ao saber da minha identidade. (Ela: “Você quer dizer Deus, Deus mesmo?! O Cara?!” Eu: “É”. Ela: “O Todo-Poderoso?!” Eu, para mostrar, além de tudo, simplicidade: “Sim, mas pode me chamar de Todo”.)
Eu não a convidaria para jantar, apenas. Mandaria um anjo fulgurante convidá-la para jantar comigo, no meu apartamento celestial ou no restaurante da sua predileção. Onde já começaria a mostrar os meus poderes, pedindo mineral sem gás e transformando-a não apenas em vinho, mas num Chateau Petrus 82.
Conversaríamos sobre banalidades:
Ela: “Deve dar trabalho, ser Deus.”
Eu, modestamente: “No começo, foi difícil. Tive que fazer tudo sozinho, do nada. Desde então, só dou retoques”.
Depois do jantar Eu a convidaria para ir ver o eclipse da Lua do meu terraço à beira-mar.
— Mas hoje não tem eclipse da Lua!
— Quer apostar?
Quando ficássemos mais íntimos, e ela mais crítica, Eu faria tudo que ela pedisse.
— Terremoto...Precisa ter?
— Está bem. Não vai mais ter terremoto.
— Dá para acabar com a má fase do São Paulo?
— Vamos ver o que se pode fazer.
Eu não lhe mandaria bilhetes amorosos, mandaria tábuas gravadas amorosas, entregues por profetas barbudos, junto com flores — todos os dias.
Presentes de pedras preciosas? Por que ser sovina e não lhe dar, logo, uma mina de diamantes?
E se, com tudo isso, Eu não a conquistasse, me restaria um último recurso: refazer-me completamente, do barro. Seguindo as suas instruções.
— Sem barba. Outro nariz. Mais alto... aDÃO ITURRUSGARAI
O debate - Luis Fernando Verissimo
O apresentador entra no palco, onde estão três cadeiras.
Apresentador – Boa noite. Teremos hoje o último debate da nossa série Criacionismo ou Evolucionismo: Qual é a sua?. Afinal, fomos feitos por Deus ou descendemos dos macacos? O debate desta noite é o que todos estavam esperando, o que explica o auditório lotado e as cadeiras extras. Durante toda a semana tivemos aqui embates memoráveis entre defensores do criacionismo e defensores do evolucionismo, culminando com o debate de ontem, entre Richard Dawkins e o padre Rossi, que foi abandonado por Dawkins aos gritos de “Não. Não!” na metade, quando o padre Rossi ameaçou cantar.
E quem poderá esquecer o debate de quarta-feira sobre racionalismo empírico versus dogmatismo religioso entre Rene Descartes e Blaise Pascal, o desentendimento que começou quando Descartes confundiu “dogma” com “dogman” e perguntou se o Homem Cachorro era um novo super-herói dos quadrinhos e continuou quando Descartes reagiu a um argumento teológico de Pascal gritando “Au secours!” e Pascal ouviu mal e protestou “Olha o nível”, até se esclarecer que Descartes estava pedindo socorro.
Depois disso não houve entendimento possível e todos se lembram de como acabou a noite. Por sinal, para os que ficaram preocupados, informo que Descartes já saiu do hospital e está em repouso, em casa. Mas vamos ao grande debate desta noite. Os dois participantes não precisam de apresentações. O primeiro é... Charles Darwin em pessoa! Mr. Darwin, por favor.
Charles Darwin entra no palco e é aplaudidíssimo por parte da plateia. O resto da plateia aplaude educadamente.
Apresentador – Charles Darwin, quem não sabe, é o fundador do evolucionismo. Foram seus estudos sobre a adaptação dos genes ao meio e a seleção natural que deram origem a teoria da evolução das espécies, inclusive a espécie humana, que descenderia dos macacos. Apesar de estar morto desde 1882, Mr. Darwin concordou, gentilmente, em participar do nosso simpósio, principalmente quando soube quem seria o outro debatedor. Não é, Mr. Darwin?
Darwin – É. Será uma oportunidade para esclarecer alguns pontos.
Apresentador – E aqui está ele, senhoras e senhores. O outro debatedor desta noite. O grande, o eterno, o nunca assaz louvado... Deus Nosso Senhor!
Deus entra no palco saudando o público e é recebido com uma ovação. Parte da plateia grita “Senhor! Senhor! Senhor!”. Deus senta à direita do apresentador, Darwin à esquerda.
Darwin – Senhor, eu queria aproveitar esta oportunidade para dizer que, em momento algum a minha teoria negou a sua existência, ou desrespeitou o seu poder. Eu vivi e morri como um cristão. Só não podia esconder minha descoberta.
Deus – Eu sei, meu filho, eu sei. E você estava certo.
Darwin (surpreso) – Eu estava certo?!
Deus – Estava. Aquela história que eu criei o homem do barro, à minha imagem, e depois fiz a mulher da sua costela... Tudo literatura. Licença poética. O homem descende do macaco. Eu quis que fosse assim. E quis que você descobrisse. A sua obra é a maior prova de que eu (aliás, Eu) existo. E mando. Num mundo regido pelo acaso você dificilmente chegaria aonde chegou.
Apresentador – Então o senhor acredita num...
Deus – Evolucionismo dirigido. Um pouco como o capitalismo na China.
Darwin – Mas então por que tanta gente resiste à ideia de que o homem descende do macaco e não foi criado por Deus à sua imagem?
Deus – Ah, meu filho. A vaidade humana nem Eu controlo
.
Nani
Venes Caitano
O fim – Luis Fernando Verissimo
Deus reuniu seu staff e anunciou: o mundo vai acabar.
Todos se entreolharam. Como, acabar?
– Acabar – disse Deus. – Não vai ter mais. Ponto final. The end. Finito.
– Mas Senhor... – começou a dizer um dos assessores.
– Cansei – interrompeu–o Deus. – No princípio ainda foi divertido. A fase da criação. O dia. A noite. Os bichos. Tudo era novo. Tudo era a primeira vez. E eu era mais jovem, tinha o entusiasmo e o otimismo dos jovens. Agora não tenho mais saco. E a humanidade me decepcionou. Ela não é nada do que eu tinha planejado Desperdicei meus melhores efeitos numa humanidade que nunca soube apreciar minha obra. Muitos até duvidam que ela seja minha.
Todos haviam reparado que Deus andava mesmo meio irritadiço. Manifestava sua irritação com o tempo, com os excessos de calor num hemisfério e de frio no outro, com furacões fora de hora, com secas inclementes e enchentes catastróficas. Acordava de manhã e a primeira coisa que pedia, antes do iogurte, era “Um cataclismo, rápido! Não importa onde”.
– Como será o fim, Senhor?
– Com um estrondo. Pum, e fim. Eles não vivem falando no tal Big Bang, que teria siso o começo de tudo, e não Eu? Pois agora eles vão ver um Big Bang.
– Senhor, quem sabe outro dilúvio? Assim o Senhor se livraria da humanidade mas preservaria os bichos, e poderia começar tudo de novo...
– Nah... – disse Deus. – Já posso ver o que correria de propina na disputa para construir outra arca. Com Noé foi assim. Pensei que era um homem honrado, e foi outra decepção. Ou alguém não sabe que depois do dilúvio ele abriu uma conta numa off–shore com o dinheiro que ganhou da empreiteira? Nada de arca. Vai ser pum, e pronto.
– Mas Senhor, tem que haver algum tipo de solenidade no fim do mundo...
– Como o quê, por exemplo?
– Um espetáculo. Afinal, se tratará de uma apoteose. Da última apoteose. O que o Senhor acha?
– Hmmmm. Desde que não tenha mímica. Eu odeio mímica.
– Seria um espetáculo musical. Uma sinfonia final, acompanhada de fogos de artifício, mil músicos, um balé com mil bailarinas... E, claro, o Cirque du Soleil. Encomendaríamos a sinfonia de um dos nossos compositores.
– Quem é que nós temos?
– É só escolher! Temos Mozart, temos Beethoven... Imagine uma Sinfonia do Fim do Mundo escrita pelo Beethoven!
– Ele toparia?
– Por que não? Não está fazendo nada. E se ele não topar, temos o Wagner!
– Wagner não foi pro inferno?
– Poderíamos propor um empréstimo.
– Wagner não. Tem a questão do antissemitismo. Pegaria mal com a turma do Jeovah, com quem Eu tenho um bom relacionamento.
– Que tal Mahler?
– Mahler! Claro! Sempre me perguntei por que Eu tinha criado o Mahler, e agora Eu sei. Vai ser Mahler!
– Ótimo!
– Mas nada de mímica.
O Blog da Muriel - Laerte
Meu Deus - Tati Bernardi
Ontem tive enxaqueca e rezei. Uma dor com ondas de enjoo descontrolado, fotofobia e medo de nunca mais ser feliz. Daí, como sempre faço, me tranquei no quarto, no escuro, e mandei ver na reza. Eu nunca melhoro durante uma oração fervorosa ou logo depois dela, e sim exatamente uma hora após tomar maravilhosos fármacos cuja bula informa: “melhora depois de uma hora”. A chance de o Dorflex combinado com o Vonau sublingual terem me curado é infinitamente maior do que ter sido um Cara sentado lá no céu, numa poltrona Mole Sergio Rodrigues ou The Egg azul-turquesa. Porém, amigos: eu rezo. Desde muito pequena e sempre —e hoje acho que, se bobear, já dei minha rezadinha.
Eu costumo me benzer em frente a igrejas, cemitérios e outro dia fiz o sinal da cruz quando passei numa lombada eletrônica —apenas porque numa espécie de “automático bruto” eu sabia que tinha que fazer alguma coisa (no caso, desacelerar), então me confundi e mandei ver no “em nome do pai,
do filho e do Espírito Santo”.
Desde o tempo em que usava ingênuas meias até o joelho no colégio católico, li alguns livros e muitas matérias que inundaram minha racionalidade de ateísmo. A Inquisição (voltando agora na versão redes sociais), o apoio ao fascismo pelo papa Pio 11, a lavagem de dinheiro no Vaticano, a pedofilia de padres, a Bíblia e suas passagens misóginas (até hoje a palavra “pecado” aparece na minha boca e eu engulo em seco). O atraso nas urgentes discussões sobre a legalização do aborto e da maconha, os obstáculos criminosos na plena e clara divulgação de como evitar doenças sexualmente transmissíveis, a oposição a métodos contraceptivos, a disseminação de ódio por todo e qualquer humano que não faz papai e mamãe e não ocupe tais “lugares” sem amplitude de gêneros. Ninguém decente está ao lado do conservadorismo.
Estou com o filósofo e neurocientista Sam Harris, que escreveu o livro “A Morte da Fé”, impelido, sobretudo, pela sua indignação ao saber que o 11 de Setembro teve motivações religiosas. Sim, milhões de pessoas têm a vida destruída por causa de suas crenças, e a ciência é que deveria ser o nosso oráculo sobre “o bem e o mal”.
Tenho idade e instrução suficientes para não falar com um Cara sentado numa Berger enfeitada com rococós dourados. Então um bebê palestino é queimado, um garoto de uniforme escolar é baleado, uma criança síria é devolvida morta pela onda do mar gelado, e um Cara sentado numa poltrona Luís XV toda trabalhada no capitonê vai se preocupar com mais uma de minhas cefaleias? Ou, como diria alguém clichê querendo ser menos boçal num daqueles almoços com gente boçal querendo ser menos clichê: “Onde estava Deus quando o Trump separou as crianças de seus pais?”. Ele estava puto. Volto a dizer, sem vergonha, que rezo quase todos os dias, faço promessas, vou à igreja de Aparecida, coloco flores para Santa Rita, leio sobre o budismo, tento meditar, peço a Deus que me ajude a não vomitar (tenho pavor), levo terço quando pego avião, levo os santinhos do meu avô quando pego estrada, faço lista de pessoas “para quem eu quero mandar uma luz de amor” na noite de Natal e não acredito que minha filha seja apenas um fenômeno químico e biológico.
Meu Deus não está sentado tecendo preconceitos, tampouco está de pé apontando o dedo em riste para meus wet dreams. Ele é um Cara bacana e tem verdadeiro horror à bancada evangélica. Ele vai a casamentos gays e está ao lado de mulheres que não querem ser mães. O que se aprende a amar na infância fica incrustado no peito. Fica escrito, tatuado, perfurado. E eu aprendi a amar o Deus que inventei.
Uma questão de prioridade - Stela Campos
MALVADOS - ANDRÉ DAHMER
PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS - ESTELA MAY
Fabiane Dangola
Dodô
Quinho
'Será que Deus é uma criação humana?' Hélio Schwartsman
Uma professora de jardim da infância passeava pela classe enquanto seus alunos desenhavam. De vez em quando ela parava para olhar os rabiscos de uma criança. Foi assim que a educadora se aproximou de uma garotinha que trabalhava diligentemente sobre sua folha de papel e lhe perguntou o que ela estava desenhando. A menina respondeu: "estou fazendo um retrato de Deus", ao que a professora retrucou: "ninguém sabe como Deus é". Sem perder a pose nem levantar os olhos, a garota disparou: "saberão assim que eu terminar".
A piada é boa porque, numa inversão da cosmovisão religiosa tradicional, nos faz flertar, ainda que a contragosto, com a possibilidade de Deus ser uma criação humana. Será?
Nas últimas décadas, psicólogos, antropólogos, neurocientistas, filósofos e sociólogos se puseram a esquadrinhar a religião e teorizar sobre ela, dando origem ao que alguns já chamam de nova ciência da fé. A ideia central é que, independentemente de Deus existir ou não, a religião é um fenômeno real, mensurável e com o qual podemos fazer experimentos.
Sabemos, por exemplo, que entre 40% e 50% das atitudes de uma pessoa para com a religião tem origem genética. É claro que não existe o gene do cristianismo, do judaísmo etc. Uma criança cujos pais sejam hinduístas, mas que tenha sido criada por uma família muçulmana, muito provavelmente se tornará muçulmana. O que os genes parecem fazer é predispô-la a certas condutas, como a assiduidade com que frequenta os cultos, a veemência com que defende os dogmas, a satisfação que extrai da religião.
Os pesquisadores levantaram algumas hipóteses interessantes. A religião seria um subproduto de uma série de vieses cognitivos, isto é, de marcas que a história evolutiva fixou em nossos cérebros.
A predisposição para crer em forças sobrenaturais, por exemplo, um elemento quase universal das religiões, seria um desenvolvimento de nossa tendência a detectar agência em tudo. Como é melhor prevenir do que remediar, fomos calibrados para pressupor que, por trás de movimentos e acontecimentos, existe um ser animado. Quem não pensava assim acabou devorado por um tigre-dentes-de-sabre.
Já a superstição, também presente nas rezas e nos ritos em geral, tem a ver com nossa tendência para encontrar padrões, como o ciclo das estações. Só que ela é hipersensível e costuma disparar mesmo quando não há regularidade a ser percebida. Não estamos sós aí. O psicólogo B.F. Skinner (1904-1990) conseguiu despertar superstição até em pombos, condicionados a fazer dancinhas na esperança de comida.
Mas e Deus? Segundo o psicólogo Michael Shermer, juntando nossa propensão a inferir estados mentais nos outros (essencial para a vida em sociedades um pouco mais complexas), nos tornamos capazes de criar entidades sobrenaturais tão caprichosas como seres humanos. De acordo com Shermer, foi seguindo essa receita que, ao longo dos últimos dez mil anos, a humanidade produziu dez mil religiões com cerca de mil deuses.
Num certo
país bem distante daqui havia um costume que era considerado como uma lei para
os habitantes daquele lugar: ninguém podia passar na frente de uma pessoa se
ela estivesse rezando. Não se sabe a
origem ou causa de tal proibição, mas isso não vem ao caso na nossa história,
que começa numa bela manhã de sol, em uma praça no meio de uma importante
cidade naquele país.
Um homem
religioso sentou-se num canto da praça e preparou-se para começar as suas
orações. Bem naquele momento, uma jovem surgiu na praça caminhando
apressadamente na direção do santo homem, e acabou passando diante dele,
distraída, com a respiração ofegante.
O religioso
ficou indignado.
“Que
ousadia”, ele pensou consigo mesmo. “Vou esperar esta jovem voltar e lhe dar
uma lição.”
E lá ele
ficou. O tempo passou e passou e o homem não se moveu do lugar. O dia já estava
terminando quando a jovem apareceu do outro lado da praça, agora caminhando
mais devagar. Parecia sonhadora, ainda mais distraída. No momento em que ela
passava na frente do homem santo, ele a chamou, falando com uma voz autoritária,
mal disfarçando a enorme irritação:
- Você foi
bastante atrevida hoje de manhã. Por acaso ignora que é proibido passar diante
de um homem que esteja rezando?
A jovem
parou, assustada. Voltou-se para o homem e lhe disse:
- Já que não
há mais ninguém aqui, vejo que é comigo mesmo que o senhor está falando. Mas
muito me espantam suas palavras, senhor. Eu não sei que costume é esse, porque
não sou deste lugar. Além do mais, o senhor disse que estava rezando. O que
quer dizer “rezar”?
- Para mim,
respondeu o homem levantando a cabeça todo empertigado – “rezar” significa
pensar completamente em Deus.
- Pois então – disse a moça com um sorriso
apaziguador – o senhor que me desculpe, eu jamais teria violado uma lei se
tivesse conhecimento dela. Sabe, eu vim
para esta cidade para me encontrar com o meu namorado, que mora aqui, e quando
cheguei a esta praça hoje pela manhã, já estava bem atrasada. Eu vinha absorta,
pensando tão completamente no meu amor que nem vi o senhor. E agora me diga, se o senhor estava rezando,
quer dizer, pensando completamente em Deus, como foi que o senhor me viu?
Galvão Bertazzi
Porta Abeta – Luís Pimentel
- Vizinha
- Conta
- Eu recebi a visita de Deus nessa madrugada.
- Jura?
- Por tudo o que é mais sagrado. Sabia que, deixando a porta
aberta, um dia ele entraria.
- Oh, glória...
- Chegou em silêncio, como só Deus sabe chegar. Na ponta dos
pés, invadiu o meu quarto, mergulhou sob os lençóis, me fez de Madalena.
- Fez o quê, mulher?
- Fez de mim o que bem quis. Fui feliz como uma anja.
- Que blasfêmia! E deu pra ver como era Deus?
- Barba bem cerrada. Cheirava a suor e cerveja. Tinha uma
falha nos dentes, bem no lugar do canino.
- Meu marido,
vizinha. Deu pra isto, a peste.
- Ai, Jesus.
- Sempre que bebe, entra na primeira casa que encontra com a
porta aberta.
ADÃO ITURRUSGARAI
A Face de Deus - Inocentes
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Lá longe, na cidade
No seu beco mais escuro
Onde as crianças tomam drogas
Os bêbados se arrastam
Onde Judas perdeu as botas
Onde apagaram o dedo-duro
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Eu vi
Vi salmos estilhaçados
Que nem caco de vidro
Corações pisoteados
Chorando, pedindo abrigo
Vi cães sufocados
Na câmara de gás
Vi padres assassinados
Por abençoarem Barrabás
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Ah, eu vi, eu vi
A face de Deus, eu vi
Vi Cristo no pau de arara
Ficou três dias de bico calado
Maria sorriu felizes
Com seu sorriso desdentado
Vi a casa de Noé
Alagada num dilúvio
Eu vi os doze apóstolos
Brigando num trem de subúrbio
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Eu vi
Eu vi o Menino Jesus
Abandonado numa esquina
Francisco de Assis
Passando cocaína
Vi anjos espatifados
Por não saberem voar
Vi crentes no inferno
Por não aprenderem a rezar
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Eu vi
Ah! eu vi, eu vi, ah! se vi
A face de Deus, eu vi
Eu vi
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Eu vi, eu vi
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Eu vi
A face de Deus
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Eu vi
A face de Deus
A face de Deus, eu vi
Pichada no muro
Eu vi
Eu vi
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Eu vi, eu vi
Eu vi a face de Deus
Pichada no muro
Eu vi, eu vi
MALVADOS - ANDRÉ DAHMER
Deus
Assista ao filme, leia o roteiro, comente 6, publique, Ficção, de André Miranda, Duração: 12 min, Plays 2.420
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