domingo, 4 de junho de 2017

Casamentos



"Pra Sonhar" - Marcelo Jeneci




Casais felizes não expõem a vida nas redes sociais – Mariliz Pereira Jorge


Meu casamento deve ser um fracasso, segundo a conclusão de um desses estudos sobre comportamento humano. Ele diz que casais realmente felizes vivem em harmonia o aqui e o agora, não têm necessidade de dar provas públicas de amor, não precisam de aceitação e aprovação de terceiros e, por fim, não são inseguros.

Minhas redes sociais são entupidas de fotos nossas em inúmeras situações. Em todos os lugares da casa, ao acordar, cozinhando, de férias, no nosso casamento na Tailândia, no carnaval, na praia, no sofá vendo TV e selfies, muitas selfies, eu o obrigo a fazer selfies. Ele detesta. Como não me dei conta que havia algo de errado com um homem que não gosta de selfies com a própria mulher?

Meu casamento é uma farsa.

Eu achava que era feliz, mas sou apenas insegura e carente, segundo a tal pesquisa. Estou perdida. Quem ficará com o gato? Agora tem muitas fotos do gato no Instagram. Posto as fotos e marco o marido, claro, apenas para mostrar que somos uma família muito feliz e completa, e não porque estamos felizes e temos vontade de registrar e dividir esses momentos com amigos e familiares. Como não tinha percebido antes?

Eu pensava que, depois de ter me relacionado com tanto homem errado e ter sido profundamente infeliz, seria bastante normal compartilhar a felicidade que sinto por dividir a vida com um companheiro bacana, mas segundo o estudo é tudo mentira e eu apenas uso as redes sociais como um Rivotril virtual. Posto uma foto nossa, meu coração se acalma, porque acredito que nosso amor se fortalece. Cada foto do casalzinho-ostentação é um lembrete para o mundo de que aquele relacionamento existe. É um 'xô, periguete', que esse macho aqui tem dona.

O que falta agora para os pesquisadores decretarem minha mais profunda infelicidade? Trocar minha foto do perfil por uma de nós dois? Quem sabe abrir uma conta-conjunta no Facebook e acabar com qualquer indício de que nosso relacionamento seja sólido e promissor.

Imagine a felicidade quando ele trocou o status de relacionamento para "sério". Muito mais do que quando me apresentou à família. Um marmanjo daquele não precisa da aprovação da mãe para namorar alguém, mas quando aparece lá, bem grandão, "em um relacionamento sério com a fulana" para todo mundo ver é a glória. E quando ele compartilha meus posts e me chama de "patroa"? Tenho vontade de correr para a cozinha e fazer o almoço.

Agora é esperar o restinho de tempo que ainda nos resta, antes que ele também leia essa pesquisa e perceba o quanto não somos felizes, que todas essas fotos em que estamos escandalosamente felizes são apenas marketing de uma relação fadada ao fracasso, que essa saudade que me atormenta nessas semanas em que ele está longe é só carência, que tudo o que construímos juntos não tem alicerces profundos, que todos os dias quando a gente se olha e diz o quanto se ama é só delírio, porque uma pesquisa disse que casais que não se expõem nas redes sociais são mais felizes e a gente faz tudo exatamente ao contrário.

Quem vai ficar com o gato?




Casamento precisa de férias - Mariliz Pereira Jorge

Você chega em casa, larga a bolsa em qualquer lugar, abre a geladeira e toma água direto da garrafa, pede pizza de um só sabor, descobre que o papel higiênico acabou, deita atravessada na cama para ver sua série favorita, come pizza fria no café da manhã. Para alguns isso é liberdade, outros reclamam de solidão. Para mim são férias do marido.
Eu sei que a gente jura "na alegria e na tristeza, na saúde e na doença", mesmo que seja só na intenção, sem padre nem igreja para fiscalizar, mas não tem nada lá escrito que devemos fazer tudo junto o tempo todo. Então estou me valendo dessa jurisprudência para admitir publicamente que adoro quando tenho alguns dias só para mim. E tenho certeza que ele sente o mesmo.
Foi assim quando tirei uma semana para viajar com amigas para Cartagena, na Colômbia, dias em que tomamos muitas pinas coladas, usamos óleo bronzeador para fritar ao sol, fizemos compras desnecessárias e rimos de coisas que só amigas de longa data acham graça. Sem nenhum marido para reclamar dos vendedores ambulantes, do calor infernal, da demora para se arrumar, do excesso de bagagem e da amiga que exagerou no sol e na pina colada.
Está sendo assim, esta semana, em que ele viajou a trabalho e eu vou sobrevivendo à base de delivery, lembrando a época de solteira, da qual fui salva por esse moço que mantém a geladeira sempre abastecida, a cama quentinha, meu coração preenchido, meus sonhos realizados. Eu sinto saudade dele, mas ela não dói, o que é inédito mas bem-vindo num relacionamento pleno e maduro.
Não sei de onde tiramos a ideia de que a partir do momento que passamos a ser um casal o sujeito "nós" deve ser conjugado ad aeternum. Nós vamos à festa. Nós vamos ao show. Nós vamos viajar. Nós vamos à academia. Nós não vamos fazer nada.
Até "nada" passamos a fazer juntos. É um dos nossos (lá vamos nós) programas favoritos, é verdade, mas leva tempo sentir-se confortável no desconforto dos silêncios e do zapear descompromissado do controle remoto.
Já fui dessas moças que começaram a conjugar "nós" como se esse status plural fosse garantia de felicidade. Fazíamos tudo juntos. Nunca me senti tão sozinha e tão infeliz. Acomodamos com jeitinho nossas vontades, preferências e programações dentro de uma agenda que fica bastante apertada quando multiplicada por dois. A conta não fecha porque a gente abre mão demais do "eu" para se tornar "nós". A mais harmoniosa convivência sufoca.
Férias do casamento não significam pausa para libertinagem. Fico feliz em casa, flertando com as estantes de livros, que nunca consigo ler, brincando com as maquiagens que nunca tenho tempo de usar. Abro um vinho, coloco jazz, que ele nem é muito fã, peço minha pizza favorita, que não é a dele, provo todas as roupas do guarda-roupa, uso cremes fedidos, para dormir, que acabam com rugas e casamentos.
Encontro amigos que não tenho tempo para cafés desapressados e jantares sem hora para acabar. Fico mais tempo na academia. Passo horas na farmácia escolhendo um esmalte de unha ou um creme para celulite. Não tem pressa, não tem ninguém esperando na porta. Sento num bar, tomo um chopp, penso na vida, sinto uma saudade gostosa dele.
O flerte é comigo mesma, com essa moça que sempre fui, antes dele, com quem me divirto, aprendo, sofro, tropeço, caio, levanto, sonho, faço planos, debocho, admiro. Essa moça com quem, além dele, quero continuar casada para sempre.




O perigo de mandar mulher lavar louça -  Mariliz Pereira Jorge

Algumas das decisões mais importantes que tomei na vida aconteceram no momento em que areava panela. Quanto mais craca, mais os argumentos se solidificavam e as certezas cresciam. Quanto mais louça na pia, mais eu crescia nas convicções.

Tem gente que vai ao cartomante. Há quem peça opinião dos amigos. Há os que encontram as respostas no psicanalista. E até quem resolva tudo no cara-ou-coroa. Eu tomo decisões lavando prato. Depois de anos de divã, é verdade. O divã me deu discernimento, mas quem me dá coragem é a pia.

Não estou sozinha. Conheço mulheres que mudaram suas vidas depois de esfregar muita frigideira. Quem encara uma boa pilha de pratos, meu amigo, é capaz de qualquer coisa, de mudança de emprego a divórcio.

Você está lá, tranquilão, e um dia a mulher chega, do nada, e diz que vai embora. Não, não foi "do nada". Não, ela não está louca. Ela lavou louça o suficiente para perceber que era infeliz. Um dia olhou para os dedos murchos da água com detergente, percebeu que a vida estava mais pesada que uma Le Creuset e resolveu ir embora.

Você está lá, tranquilão, e um dia a mulher entra na sua sala e, do nada, pede demissão. Não, não foi "do nada". Não, ela não está de TPM. Ela areou uma montanha de panelas e em tudo que ela pensava naqueles momentos era mudar de profissão, de estilo de vida. Foi quando olhou para as travessas da Tramontina, que descansavam no escorredor, tão brilhantes que pareciam espelho, pensou: eu posso.

Não adianta jurar amor eterno, pedir desculpas, dar um vidro novo de Alfazema. Não adianta oferecer aumento, bônus, plano de saúde black. Decisão tomada na bancada molhada da pia não tem volta. Aquele frio na barriga não é só água respigada com molho de macarrão, é a possibilidade de novas possibilidades.

Lavar louça não serve apenas para chutar o balde. Ou seria a panela? Enfrentar a gordura que sobrou daquele pato suculento, nos ajuda a organizar a bagunça mental na qual vivemos. Pesquisas dizem isso. Dizem o que as mulheres, em sua maioria, já sabem faz tempo.

Detesto lavar louça. É terapia compulsiva. Não é só a montanha de louça que a gente encara, mas a pilha de situações mal resolvidas, experiências frustradas, desejos, sonhos, medos e fugas. Ali, com o Bombril na mão não tem como fugir, a não ser limpar a sujeira da pia e organizar a bagunça da cabeça. É uma trabalheira.

A gente olha a travessa da lasanha, arregaça as mangas, liga no automático e os pensamentos focam o que realmente interessa. Ou o que realmente incomoda. Não tem televisão, não tem Facebook, não tem WhatsApp para distrair.

E assim, entre uma panela de arroz e uma travessa de assado, pensamos. Da forma mais profunda e, por vezes, dolorida. E decidimos romper ou estreitar laços. Resolvemos ir embora ou ficar. Recomeçar ou reconstruir.

Foi limpando a comida nojenta do ralo da pia que resolvi me separar. Quando você compara seu casamento com a parte mais suja da cozinha é porque ele já foi pelo cano.

Foi olhando a cozinha toda limpinha depois de um jantar, que foi pela madrugada adentro, que percebi como sou feliz no meu casamento atual. Entre uma wok suja e uma taça de vinho cheia fui surpreendida pelo marido, dançando. Rimos, rodopiamos juntos, terminamos a louça. E o vinho.

Cozinhar, dizem, é um ato de amor. Limpar a sujeira da cozinha é um ato de coragem. É preciso dela para encarar nossos silêncios e angústias enquanto a água escorre. Antes a água do que a vida.

Ninguém precisa concordar com essa teoria. Até porque lava-louça está aí para isso também. Para passar por cima dos problemas quando não temos disposição para eles. O que me faz lembrar de como acho graça quando alguém me manda procurar uma pilha de louça porque não concorda comigo. Mariliz, que texto ridículo. Quanta baboseira. Tem um tanque de roupa lhe esperando.

Cara, você não sabe do que é capaz uma mulher que lava roupa em tanque.

ADÃO ITURRUSGARAI










Amor acaba para todo mundo - Mariliz Pereira Jorge

Toda vez que eu conto que tive um relacionamento de oito anos a reação das pessoas é muito parecida. Por que não deu certo? Bem, ele deu certo durante pelo menos uns sete anos e meio, e é isso o que conta. É o que deveria contar.

O último semestre foi uma porcaria. Tenho certeza de que ele me olhava, fazia um esforço descomunal, mas só tinha vontade de bocejar. E esse negócio de bocejar pega. Logo, eu também só bocejava e acabou. Não teve chifre, não teve filhadaputagem, só não tinha mais amor.

Por sete anos e meio fomos muito felizes e eu sempre imaginei que ficaríamos juntos para sempre. Mas "para sempre" sempre acaba, como já sabemos. Ou pelo menos quase sempre. Cada vez com mais frequência. Nem por isso devíamos nos sentir fracassados pelo fim, apenas encarar que a vida é um fim tosco de novela.

As relações têm prazo de validade, duram o tempo exato que conseguem manter fôlego, amor, tesão, parceria. Hoje vejo que se tivesse entendido isso mais cedo, teria sofrido menos por amores que já tinham dado o último suspiro. A gente mantém relações respirando por aparelhos, queremos salvar na base do boca a boca, mas sabemos quando a morte é inevitável porque os sentimentos que restam são menos nobres do que amor.

Quem nunca insistiu numa história por teimosia, orgulho, carência, burrice? A maioria delas não foi feita para dar certo, mas a gente simplesmente não acredita que as nossas histórias são mais ordinárias e menos românticas.

Não é o tempo que determina a intensidade de um amor ou o que ele tem de verdadeiro. Amores dão certo por uma noite, três meses, 5, 12, 25 anos. E não funcionam durante toda sorte de tempo. Fui profundamente infeliz nos dois anos de uma relação que começou errada e terminou pior ainda. Cismei que era amor, mas era só um equívoco. A gente insiste em histórias que têm enredo fraco e depois lamenta porque não deram certo. Porque não são amores, são só arapucas. E que difícil resistir a uma arapuca, uma roubada, um amor vagabundo.

Lembro que me senti escandalosamente amada, apaixonada e completa por um amor de verão, em Praga, que durou uma semana. Sete dias. E faz parte da minha listinha de relações que deram certo. Funcionou por esse breve suspiro num cenário de filme, com noites intermináveis e cerveja tcheca. O que não daria certo num cenário de filme com cerveja tcheca? Provavelmente não resistiria à rotina do trabalho, das contas e de Skol. Nunca saberei, não importa. Já deu certo.

E a gente sofre. Por causa de um final de semana ou pelo relacionamento de uma vida. E sofre pelos outros. Lamenta por todo final de história de amor que gostaríamos que fosse nossa. Olhamos aqueles casais aparentemente tão felizes, tão harmoniosos, tão bem encaixadinhos, e, então, eles simplesmente acabam com nossos sonhos. Cada um pega sua escova de dentes e tchau.

Sofri mais com o fim do casamento de amigos queridos do que com o meu próprio. O meu, aquele de dois anos em que fui infeliz, era uma porcaria, mas o deles, o deles era perfeito. Mentira, não era, mas a gente quer acreditar que sim, e então eles estragam tudo e esfregam na nossa cara a dura realidade de que o amor acaba para todo mundo.

Acaba, mas recomeça para todo mundo também. Próximo.











Malvados - André Dahmer








Por que os homens são tão ridículos? - Mirian Goldenberg

Muito se escreve sobre as inseguranças femininas. No entanto, pouco se fala sobre as fragilidades masculinas. A crença de que os homens são mais racionais do que as mulheres oculta as coisas absurdas que eles fazem por medo da solidão. 

Um engenheiro de 49 anos disse: 

"Mesmo ainda apaixonado pela minha ex-mulher já embarquei em outra relação. Preciso de alguém para viajar, para sair, para ir ao cinema. Fico deprimido se fico só. Minha vida fica vazia, preciso de alguém que preencha este vazio. Acho melhor estar acompanhado, mesmo se não for com a mulher da minha vida, do que só". 

Ele afirmou que não existe lógica capaz de explicar o medo da solidão. 

"Meu maior medo é ficar velho e não ter ninguém para cuidar de mim. Todos os meus amigos têm alguém, mesmo que estejam em uma merda de relação. Brigam por dinheiro, vivem estressados, não conseguem nem conversar mais. Muitos casamentos só sobrevivem por causa do interesse financeiro. É mais fácil viver a dois, mesmo infeliz, do que só. Um homem sozinho é visto como um homem fracassado". 

Eles parecem ter consciência dos equívocos que cometem, mas preferem correr o risco de errar a enfrentar a solidão. É como se a companhia de alguém fosse uma espécie de anestesia contra o sofrimento de se depararem com a própria fragilidade. 

Um empresário de 61 anos disse: 

"Casei três vezes e cometi erros estúpidos. Minha última mulher já era avó, nunca tinha trabalhado, sempre viveu à custa do ex-marido. Desde o início percebi que ela era uma perua, que gostava de coisas caras e só queria ser sustentada por mim. Mesmo assim me casei. Pior ainda: ela, com quase 60 anos, fez questão de uma festa caríssima e ainda exigiu vestido de noiva, véu e grinalda, como uma adolescente fútil e exibicionista. Foi patético. Me senti um verdadeiro idiota. Só posso explicar esta palhaçada pelo meu desespero de ter alguém". 

Ele concluiu: 

"Sempre achei que deveria sentir admiração pela minha mulher. Mas não consigo admirar uma mulher que é parasita de homens. E, por casar com uma mulher parasita, sei que não sou nada admirável. Sou apenas um velho ridículo que morre de medo da solidão". 

Será que os homens são tão fortes, livres e racionais quanto pensam que são?


MALVADOS - ANDRÉ DAHMER







Minha mulher é insuportável - Ruth Manus

Quando Renato tinha 11 anos, assistiu a um filme no qual ouviu a frase. Era uma frase tão forte, tão assertiva e tão máscula que Renato passou a esperar ansiosamente o dia em que teria uma esposa apenas para poder inflar o peito e dizer “minha mulher é insuportável”.
Renato casou-se com Júlia. Júlia era uma mulher tranquila por quem ele se apaixonou. Júlia era igual a todas as mulheres: tinha dias bons e dias ruins. Na verdade, Júlia era igual a todas as pessoas do mundo. Renato gostava dela e até tinha alguma pretensão de ser feliz, mas nada iria impedi-lo de realizar seu sonho de ter uma mulher insuportável.
Encontrou sua primeira oportunidade num dia em que Júlia se queixou por ele ter deixado a roupa suja no chão. Ela estava no banheiro e ele no quarto. Renato ouviu a reclamação, abriu um sorriso lento e sussurrou baixinho “minha mulher é insuportável”. Sentiu-se mais homem do que nunca. Disse a Júlia que, se não gostava de roupa no chão, ela que pegasse. Júlia estranhou aquele Renato.
A partir daí, Renato começou a deliciar-se. Júlia dizia “Querido, vai querer levar marmita pro trabalho hoje?” e ele pensava “minha mulher é insuportável, não me deixa nem comer no quilo perto do escritório”. Júlia dizia “Querido, a que horas vamos sair para a casa da sua mãe?” e ele pensava “minha mulher é insuportável, controla absolutamente tudo”.
Júlia mandava mensagem para ele no meio da tarde dizendo “Querido, vou chegar mais tarde hoje porque vou dar aquela palestra sobre erosão ácida” e ele comentava com o colega de baia “minha mulher é insuportável, fica mandando mensagem no meio da tarde, não me deixa trabalhar”. Renato chegava em casa e frequentemente encontrava um bilhete à sua espera “Querido, tem sopa e peito de frango na geladeira” e Renato dizia para si mesmo “minha mulher é insuportável, só faz essas comidas de dieta”.
Renato era muito bem-sucedido nessa sua missão de convencer-se de que sua mulher era insuportável. Adorava dizer isso na roda de amigos. Muitas vezes, encontrava adesão à sua causa. O Flávio dizia que a Roberta era insuportável porque não deixava as crianças deitarem-se depois das 21. O João dizia que a Camila era insuportável porque o obrigava a fazer exames de sangue anuais. O Gustavo dizia que a Luiza era insuportável porque ficava comentando com ele sobre os livros que lia, mesmo sabendo que ele detestava romances históricos.
Renato percebeu que ele não era o único que gostava de se convencer que era casado com uma mulher insuportável. Tudo era justificativa para julgá-las e condená-las: a preocupação com os filhos, os horários, a alimentação, o gosto musical, o horário em que elas acordavam, o horário no qual chegavam do trabalho. Renato percebeu que era muito fácil convencer outros homens de que eles eram vítimas das suas terríveis mulheres e que tudo o que elas faziam, por mais positivo que fosse, era porque elas eram todas insuportáveis.
Renato olhava para Júlia com sua camisola cor de rosa, segurando uma taça de vinho branco e sorrindo enquanto lia o livro do Verissimo e pensava “o que eu fiz para merecer isso? Ela nem olha pra mim. Ela é realmente egocêntrica. Que mulher insuportável”. Júlia subiu os olhos do livro e disse, calmamente, “Querido, eu quero o divórcio”.
Discutiram e Júlia disse que era evidente que ele estava infeliz, por mais que ela tentasse agradá-lo. Renato gritou “É exatamente esse o problema, Júlia!!”. Ela não insistiu. Depois de 7 anos, ela sabia que ele estava decidido a ser infeliz e a inviabilizar a felicidade dela. Divorciaram-se. Júlia casou-se de novo e é feliz. Já Renato está radiante. Descobriu ainda mais prazer em dizer “minha ex-mulher é insuportável” e encontrou a plenitude dentro da miséria que decidiu tornar sua vida.




Sem namoro o casamento não sobrevive - Becky S. Korich

Ilustração:  Patou Ricard

Namoro há 23 anos (a mesma pessoa). Telefonamos no meio do dia, nos divertimos com as bobagens do outro, cantamos juntos em shows (gosto musical: requisito básico para uma união dar certo), filosofamos, beijamos na boca, bebemos vinho, trocamos bilhetinhos.

 

Só que às vezes a gente se esquece que é namorado e brinca de marido e mulher. É quando a juventude da paixão vai embora e o frescor do amor se desbota. Ele se larga no sofá, assiste às suas séries, eu me ligo em outras coisas, amigas, Instagram. Eu exagero nas castanhas. Ele adormece no sofá. Me irrito com o ronco dele, que parece mais alto, apesar de ser o mesmo. Ele não repara no meu cabelo novo, que para ele parece ser o mesmo. O que antes nos encantava, passa batido.

 

Nos sentamos cada um no seu lugar da mesa e jantamos juntos, só que sozinhos, ensimesmados. Reclamamos do peso das responsabilidades, dos problemas do dia a dia, do calor, do frio. Ficamos, ao mesmo tempo, fartos e carentes do outro. Poucas palavras. Nenhuma risada. No máximo um selinho. Adormecemos olhando para o lado oposto da cama. Dormimos casados, na esperança de acordar namorados.

 

Na linha divisória — eu diria "linha tênue" caso suportasse a expressão — entre o namoro e o casamento, uma mesma situação pode ter duas realidades. No modo casados, brigam com raiva; no modo namorados, com paixão. Casados, se suportam; namorados, se querem. Casados, se queixam da rotina, namorados, a abençoam. Namorados, surpreendem o outro; casados, fazem todo dia tudo sempre igual. Casados, fingem estar dormindo; namorados, esperam ser acordados. Casados, a barba malfeita arranha; namorados, ela faz cócegas. Casados, o ciúme é uma infâmia; namorados, uma pimenta. Casados adiam, namorados têm urgência.

 

Segundo algumas definições, namoro é um estado transitório, o período em que pessoas se conhecem, mantêm um relacionamento afetivo, para depois materializarem ou não a união. Essa ideia me soa sem graça. Prefiro acreditar na versão do namoro como sendo uma condição eterna (enquanto dure) de qualquer relação amorosa, incluindo o casamento. O casamento não exclui o namoro, mas sem namoro não há casamento que sobreviva.

 

O convívio prolongado entre duas pessoas, ao mesmo tempo que consolida as raízes, tende a acalmar o desejo do amor nascente. É justamente nessa ambivalência que se equilibra o amor: duas forças opostas agem concomitantemente, uma que nos atrai para o centro em busca da conservação, outra que nos afasta para nos livrar dos fardos que o relacionamento estável impõe.

 

Quando casados, o coração bate; quando namorados, ele palpita. É por isso que não aguentamos só a intensidade do namoro: o coração não foi feito só para pulsar forte, ininterruptamente. O amor se renova enquanto descansa, para, então, voltar a namorar a mesma pessoa como se fosse o primeiro encontro.

 







Quem casa quer... encher o saco - Tati Bernardi

Uma amiga da época da escola vai se casar agora em outubro. Não a vejo há pelo menos uns 20 anos. Mentira, acho que cruzei com ela uma ou outra vez, mas quero dizer: não sou amiga dela há 20 anos. Aliás, eu nem era muito amiga dela quando era amiga dela. Só pra vocês entenderem, nem no Facebook eu tinha aceitado a criatura. Em suma: não fez nenhum sentido chegar pra mim um convite de casamento.

Mas a coisa piora muito. O casamento é na Bahia, numa daquelas praias que você pega avião, ônibus, táxi, balsa e jangada pra chegar. E ainda tem mais um tanto a pé. Era mais fácil casar na Rússia. Ou seja: além de gastar com o presente, você tem que gastar com passagem, mais 123 meios de transporte, hospedagem e alimentação (ou você enfia 23 bem-casados na bolsa e fica se alimentando deles os outros dias, porque ninguém vai tão longe pra ficar um dia só). Fora as cartelas de ansiolítico pra suportar tudo isso. Fora as picadas de insetos. Fora as manchas na pele depois das picadas, porque eu mancho fácil. Fora o vestido "é casamento, mas é durante o dia e na praia" que você acha que tem, mas não tem e vai ter que comprar. Fora o sapato "é na areia, mas é casamento" que você acha que tem, mas não tem e vai ter que comprar.

E a coisa segue piorando. ANTES do casamento ainda tem chá de cozinha, chá de lingerie e despedida de solteira. E para todos esses eventos, é claro, você gasta mais dinheiro e mais tempo e mais cartelas de ansiolítico pra suportar tudo isso. É basicamente como se a pessoa, que nem é sua amiga (e nunca foi e, vamos combinar, nem poderia ser porque já ficou claro que ela é mala, confere?), te pedisse pra você parar dois meses da sua vida e se dedicar inteiramente a ela. Apenas porque ela decidiu casar. "Gente, tô casando, esquece crise do país, esquece sua vida privada com suas ocupações e angústias e afazeres, esquece que você nem gosta de mim e eu nem gosto de você e FOCO na noiva."

Óbvio que eu não vou. E nem vou mandar presente. Geralmente, por educação, ao menos deposito lá uns R$ 145 pra fofa gastar na sua viagem dos sonhos. Pelo menos já entenderam que pedir dinheiro pra viajar pra Tailândia é menos imbecil que um site cheio de lixeiras e caçarolas com tampa. Escolho a opção menos brega entre "noite estrelada em bangalô" e "dar banho no elefante cagado" e sempre tenho certeza que meu dinheiro vai acabar na compra de um shortinho na lojinha do hotel.

Mas nesse caso não vou dar nadinha. Ela não merece. Ela fez comigo o que não se faz nem com o pior inimigo. Ela me colocou no grupo de WhatsApp do chá de lingerie. O grupo chama "pra apimentar esse amor". Esse nome me fez ter vontade de me cortar em sete lugares diferentes, mas eu tive por mim o que essa futura esposinha mongobila não teve: compaixão. Gata, se você não tem maturidade pra dar conta de suas próprias calcinhas, você não deveria assinar nenhum documento. Posso fazer um grupo de WhatsApp chamado "intervenção na sem noção" e convidar as mesmas pessoas?

E que prêmio o convidado ganha depois de gastar meio salário pra atravessar o sertão e ver uma ex-não-melhor-amiga chatola casar com um coxa? Fotos do casal no telão! Ah, como foi bom em Bariloche! E quando a tia Cidinha, já munida de antenas neon e óculos pink, gritar "Eu não acreditooo" ao tocar "I Gotta Feeling", você terá, ainda que bêbado, vontade de morrer. A vida é muito chata, mas essas pessoas que dão trabalho quando casam são ainda mais insuportáveis que a própria vida.

CJ - Politicopatas



Milton Roz



Céllus



ADÃO ITURRUSGARAI











Uma puladinha de cerca em 20 anos? - Tati Bernardi

Carol, amiga antiga, me pediu que saísse da reunião e fosse rápido pra sua casa: "Não paro de pensar besteira". Como assim, Carol? É só o que eu fiz minha vida inteira e nunca tirei ninguém do trabalho por conta disso. "Vem logo, o Paulo me traiu e eu não tô bem."

Depois de 19 anos de casamento (já começa daí: quem casa com 20 anos?) ela havia descoberto uma traição do marido. Oi? UMA? Amiga, vamos fazer uma festa surpresa pro seu marido? Uma única e singela traição de amado Paulo depois de quase 20 anos de casamento? Que é isso? Ele quer aparecer no "Fantástico"? Quer convite pra cear com o papa? Quer ter o busto imponente e corajoso como ponto turístico no centro da cidade? Quer virar boneco de pano politicamente correto (algodão natural, tecido orgânico, olhos verdes feitos a partir do reaproveitamento de garrafas PET) para crianças lactentes? Não, Carol, deve ter mais. Não é possível. Poxa, o Paulo sempre me pareceu um cara normal, gente boa, da paz. Ele não faria isso com a gente. Vamos investigar, peloamor, deve ter mais.

Carol não estava pra piada. Inconformada, arrasada, um trapo humano, ela só conseguia pensar em facas, armas, sangue, coisas quebradas e picotadas. Só conseguia pensar em besteiras. "Como ele pôde fazer isso comigo depois de tanto tempo?"

Como ele pôde fazer isso COM ELE depois de tanto tempo. Uma puladinha de cerca em 20 anos? Por Deus. Falemos a verdade! Primeiro: esse homem te ama. Segundo: o que meia horinha do desejo do outro tem a ver com a gente? Paulo não arrumou uma amante fixa, não jurou filhos e eternidade em outra casa, não se apoiou em dupla personalidade pra sobreviver a um amor falido. Não chegou com o coração enlevado (e o ventre melado) e, por meses ou anos, se deitou ao lado de Carol. Paulo, em 20 anos de casamento, foi ali dar uma voltinha. Meia horinha porque era quarta e a vida é dura. Aff, minha gente, Paulo é humano. Quiçá, um herói.

Carol, lembra ano passado, quando fomos na festa de final de ano daquela produtora? Você ficou de papinho com um cara e... "Não dá pra comparar. Eu estava chateada com o Paulo. Já o Paulo me traiu porque não presta mesmo". Ah, tá resolvido então! Mulher trai porque tá chateada, homem porque "está em seu DNA". Que bela desculpa (machista!) nós inventamos pra galinhar. "Não era tesão, era mágoa". Sei.

Carol, o Paulo esteve a seu lado quando você inventou que era artista plástica. Lembra? Você largou seu emprego pra pintar aqueles quadros horrorosos, que os amigos compravam por pena. O Paulo ia nos vernissages, tirava fotos, divulgava, aturava seu bafo de nervosismo. Isso é fidelidade. A maior delas. Depois teve a fase "vou reformar a sala pela décima vez". Lembra? Japonesa, tailandesa, nova-iorquina com canos aparentes, com muitos quadros, sem paredes... sua casa esteve em obras por tanto tempo que o cheiro de tinta me lembra mais você que o seu próprio cheiro. E o Paulo apoiando sua esquizofrenia arquitetônica, sabendo que a loucura de trepar há 20 anos com um mesmo ser tinha que vazar pra algum lado. No fundo você queria era mudar a instalação peniana ao lado do sofá. Você queria era variar os objetos do seu design interior. Mas Paulo, que homem, ainda opinava nas almofadas. Ele só queria te ver feliz. Isso é fidelidade. A maior delas.

Façamos assim. Eu volto pra minha reunião e essa faca volta pra gaveta da cozinha. Essa tesoura, pra gaveta do escritório. Nós, todavia, já deveríamos ter saído do armário do puritanismo há muito tempo.







Casamento não é spa! - Tati Bernardi

Estamos em 2016, mulheres já fazem balizas, empresas, motins, aplicações e livros melhores do que os homens. Mas, uma vez dentro de um relacionamento, não importa se você trabalhou 14 horas e acabou de voltar de uma ponte aérea cansativa, ele sempre vai ter o impulso de olhar pra você, algo entre o infantil e o feudal, e perguntar: "O que tem pra comer?"

Mesmo você não sabendo cozinhar, mesmo a mãe dele não sabendo cozinhar, mesmo a ex-mulher dele não sabendo cozinhar, mesmo a próxima mulher dele não sabendo cozinhar, ele segue te encarando como se fosse muito óbvio que você, apenas por ter uma vagina, saiba fazer algo a respeito da fome alheia.

Talvez pão, queijo, ovo, peito de peru, tomate, massa seca, frango congelado, essas coisas que sempre tem. Abra a geladeira e procure. Faça. Peça. Pronto, foi instaurado um problema. Você foi grossa, ele estava apenas puxando um papinho. Então vamos aprender? Como foi seu dia, sua reunião, melhorou sua dor nas costas? Olha só que trio maravilhoso de questionamentos bem melhores do que a constatação tão primitiva "uga buga macho com fome"!

Cientistas ainda não descobriram se é um problema nos cerebelos ou no duodeno, mas já é sabido que os rapazes não agem por mal. Existiu um momento na infância, promovido talvez por uma avó ou uma babá, em que ele apenas chorou e um sandubinha quente com suco veio parar no seu colo. A esse momento ele chamou de supremo amor feminino. É preciso perdoar. Ou não.

Casamento não é hotel, rapazes. Não é spa e nem férias. Você não cansa da libertinagem e vem dar um tempo em uma pousada maravilhosa chamada "casa da minha mina". Você não pega bode do seu apartamento sem forno, sem mantinhas e sem gavetas recheadas de biscoitos e vem passar uns anos num Roteiros de Charme chamado "mozinha pega lá pra mim". Se você se apaixona pela quantidade de estrelas em quesitos de hotelaria, algo de errado está acontecendo com seu discernimento.

Ah, você rala o dia inteiro e ainda tem que continuar se esforçando quando chega em casa? Exatamente! Parceiros são seres humanos e não serviço de quarto. Vai ter que fazer supermercado, farmácia, massagem e aturar o documentário da Chelsea Handler. E talvez ainda seja pouco.

Pode perceber, a maioria dos homens não quer "se aquietar" com a moça que dá mais trabalho. Fulana era o sexo da minha vida. Beltrana tinha uma conexão intelectual muito forte comigo. Sicrana me fazia rir o tempo todo. Mas a Belzinha, ah, a Belzinha, como me acalma! Belzinha é discreta, entende quando eu sumo 19 dias, sempre sabe onde está o meu Sorine e faz um risoto de funghi que pelo amor de Nossa Senhora! E então, achando que se trata da tocha olímpica da luxúria, o mimadão decide dar à Belzinha, depois de percorrer o Brasil, suas meias azedas. Mas que grande destino vitorioso a vida reservou para essa moça!

Mas o lance é que pequena Bel vai dormir e como explodem as mensagens no celular desta que vos escreve. Onze de dez ex-namorados sempre lembram de mim quando Belzinha se entrega aos lençóis que ela própria perfumou. Nunca tirei aspirinas, pantufas e lasanhas da cartola, mas algo de certo devo ter feito. Enfim, fica a dica: é mais fácil comprar a própria canja do que ter que esperar a Belzinha nanar pra se sentir vivo.




Quer casar comigo? – Carlos Gerbase

Quando assisti a Que Horas Ela Volta? – um filme que é, no seu todo, extremamente bem-sucedido –, uma cena me encantou tanto que imediatamente pensei: vai pra antologia das melhores cenas da história do cinema brasileiro. Às vezes, a gente pensa uma coisa durante um filme e depois esquece. Não é o caso. O momento em que Carlos, interpretado por Lourenço Mutarelli, senta-se ao lado de Jéssica, vivida por Camila Márdila, e a pede em casamento é mesmo antológico, e já falei com muitas pessoas que pensam como eu.

Tive o grande prazer de, durante a última Feira do Livro, conversar com Mutarelli e é claro que o bombardeei com perguntas sobre a cena: “Ela estava no roteiro?”, “Vocês ensaiaram muito?”, “Fizeram várias tomadas?”. Ele riu e me contou tudo, ou pelo menos o que lembra. Eu, de minha parte, também vou contar pra vocês o que lembro do que ele lembra. Afinal das contas, estávamos os dois na mesa de um bar, acompanhados de uísque de boa qualidade (gelo para Mutarelli, nada de gelo para mim), o que é ótimo para lembrar, mas não tão bom assim para relembrar.

“No final de uma diária”, disse Mutarelli, “tarde da noite, a Ana (Muylaert, diretora do filme) chegou pra mim e disse ‘Amanhã quero que você sente ao lado da Jéssica e peça ela em casamento. Sei que isso não está no roteiro, mas você é um escritor. Então, pode escrever os diálogos hoje de noite’. Eu disse que sim, que escrevia. E até pretendia escrever. Mas acontece que comecei a beber – um bom uísque, como estamos fazendo agora – e bebi tanto que não escrevi coisa alguma. Fui dormir preocupado, sem saber o que fazer no dia seguinte”.

“Quando cheguei no set, a Ana me perguntou: ‘E aí, escreveu?’, eu disse: ‘Claro’, e sacudi um papel todo amassado, com uns garranchos que podiam ser tudo, menos uma cena de cinema. A Ana disse: ‘Não conta nada pra Camila; quero pegar ela de surpresa’. Pouco depois, tava tudo pronto pra filmar, e eu não tinha a menor ideia do que ia dizer. Mas continuava fazendo de conta que tinha escrito. No ‘Ação!’, sentei na mesa, olhei pra garota e comecei a falar o que surgia na minha cabeça, sem pensar, só deixando fluir. A Camila reagiu, eu reagi à reação dela, e a Ana continuou filmando. É isso!”.

Rimos e, pra comemorar o grande feito, pedimos mais duas doses.









Mulheres e cachorros - João Pereira Coutinho

Dúvidas sobre o casamento, todos temos. Mas Charles Darwin enfrentou o dilema com o racionalismo característico do século 19. Em 1838, perante o dilema de casar ou não casar com a prima Emma Wedgwood, o eminente cientista resolveu fazer uma lista com os prós e contras do matrimônio.

Conhecia a história, mas confesso que nunca tinha lido a lista com atenção. Um jornal inglês, no aniversário do nascimento de Darwin (12 de fevereiro) e antes do dia de São Valentim, publicou essa preciosidade.

Então encontramos duas colunas, nas quais razões para não casar suplantam incentivos para dar o nó.

Entre as primeiras, Darwin elenca o fim da liberdade para ir onde quiser; a necessidade de socializar com os parentes da mulher; a diminuição do dinheiro disponível para livros (e do tempo correspondente para lê-los); e a hipótese de haver discussões conjugais que são sempre uma perda de tempo (grande verdade, Charles).

Nas razões para casar, Darwin é mais lacônico: é bom ter companhia (sobretudo na velhice); é bom ter alguém para tomar conta da casa; e, bem vistas as coisas, "uma mulher sempre é melhor que um cachorro".

Apesar da escassez de motivos, Darwin acabou por casar. Podemos fazer listas e listas e listas. Mas o amor que sentimos por uma mulher acaba com qualquer lista.

Passaram quase dois séculos. E esse amor que Darwin sentia por Emma -visível nos seus escritos mais pessoais- talvez não se ajuste aos tempos modernos. Hoje, as manifestações de afeto do sexo masculino podem ser formas sutis de degradação do feminino. Estranho?

Longe disso. Ainda sobre o dia de São Valentim, a jornalista Jessica Abrahams escreveu na revista "Prospect" um ataque a esse dia apaixonado.

Para Abrahams, a data de São Valentim só expressa o "sexismo benevolente" que os homens ainda cultivam em relação às mulheres. Esse "sexismo", apesar de "benevolente", é apenas outra forma de subjugar o sexo feminino, atribuindo às mulheres um papel "démodé" e francamente inferior.

Oferecer flores, chocolates ou simplesmente "fazer a corte" é reduzir a mulher a um sujeito passivo e, quem sabe, sexualmente disponível. Exatamente como ocorre quando um cavalheiro abre a porta a uma dama ou paga a conta do jantar.

As palavras de Abrahams são corajosas e certeiras. Experiência pessoal. Durante anos, perdido em clichês conservadores, também eu abria portas a senhoras ou torrava o cartão de crédito em refeições elaboradas. Mas um dia, em Lisboa, um exemplar da espécie rosnou qualquer coisa contra o meu "sexismo benevolente".

Acordei do meu sono embestado e, sem exagero, renasci para a masculinidade. Para começar, os jantares eram pagos rigorosamente a meias -bebida a bebida, azeitona a azeitona-, e a poupança permitiu-me investir o pecúlio em livros, viagens e farras privadas.

E, em matéria de portas abertas, devo ter quebrado várias dentaduras a senhoras emancipadas. No início, ainda pensei em avisar: "Cuidado com a porta, madame!". Mas isso seria mais um gesto de "sexismo benevolente", especialmente quando a libertação das mulheres permite que elas paguem do próprio bolso uma reconstituição dentária.

Claro que, na relação entre sexos, ainda conservei por uns tempos noções arcaicas de afeto e galanteio. Flores, chocolates, mensagens privadas. Agora, graças a Jessica Abrahams, compreendo que reduzi as mulheres a um papel submisso e indigno. Mil perdões a todas elas.

E mil avisos a todos eles: rapazes, não sejam selvagens. Tratar uma mulher como mulher é, segundo Jessica Abrahams, agir de acordo com "pressupostos baseados em papéis de gênero". Melhor não agir. Melhor não ter pressupostos. Se isso significar uma separação permanente entre eles e elas, paciência: melhor a extinção da espécie do que o "sexismo benevolente".

E para quem pensa no casamento, nada melhor que reler a lista de Darwin e riscar os argumentos a favor do "sim". Até porque Darwin estava errado. "Uma mulher sempre é melhor que um cachorro?"

Isso é sexismo benevolente. Porque há mulheres e mulheres. E há cachorros e cachorros.



A eterna busca de alguém – Walcyr Carrasco
Casamentos não são mais feitos para durar. Insatisfações do cotidiano tornam-se fardos insuportáveis

Casais que duram a vida inteira são tão raros como zebras. Existem, mas são admirados como bichos no zoológico.

– Imagine, completaram 30 anos de casados! Os amigos, filhos, parentes aplaudem e tentam entender.

– Como se suportaram tanto tempo?

Nunca falta quem faça uma lista de defeitos dos cônjuges.

– Mas também aguentar aquele velho chato a vida toda!

– Ela manda nele, é insuportável.

Dor de cotovelo. Poucos conseguem manter uma relação durante tanto tempo. Mais complexo, há um consenso de que a separação é algo bom. Muitos filhos, inclusive, estimulam as mães a separar-se. Conheci um rapaz que fortaleceu as divergências entre mãe e pai. Depois da separação, o pai se recusou a dar pensão. Sobrou para ele, que trabalha que nem doido como comissário de bordo. A mãe faz o que pode, mas era dona de casa em tempo integral.

– É muito bom, ela está numa nova fase. Exatamente. Uma fase solitária. O filho voa de um lado para o outro, namora. Ela, à espera. Mas o rapaz anda insatisfeito:

– Agora que tenho de segurar as pontas da minha mãe, não posso casar!

Casamentos não mais são feitos para durar. Às vezes, nem dá tempo de os dois abrirem os presentes. Um casal de atores casou-se apaixonado. Na volta da lua de mel, ele se separou no aeroporto. Já estava com outra. Pequenas insatisfações do cotidiano, que no passado seriam absorvidas em nome da família, dos filhos, tornam-se fardos insuportáveis. Juro, é verdade: um conhecido sempre jogava a toalha molhada em cima da cama, ao sair do banho. Ela reclamava. 

Ele jogava. A toalha tornou-se motivo de disputa e tortura psicológica. Ela se separou antes de um ano de casada. Um rapaz namorou cinco anos com uma garota. Durante esse tempo, fumava e jogava baralho. Assim que se casou, ela passou a reclamar do cigarro. Ele parou. Em seguida, ela atacou o baralho. Ele deixou o grupo. Também parou de jogar futebol. Chegou a vez da sogra: ela não suportava. Depois dos cinco anos de amizade no namoro, as duas viviam um inferno. Ele se afastou da mãe. A mulher passou a reclamar da situação financeira. Ele arrumou outro trabalho. Cumpria dois períodos. Ela se separou:

– Você não me dá mais atenção. Vive na rua.

O marido de uma secretária que conheço perdeu o emprego. Aos 50 anos, é difícil arrumar outro. Ela manteve a casa. Ele montou uma van de hot dog. Não deu certo. Impossível segurar a família. Ela o atacou. Como se a culpa não fosse dele, da idade, da crise. Foi para a casa da mãe com as filhas. Mas a sogra não queria saber do genro. A última notícia que tive: ele foi morar na rua. O sonho de uma garota de Brasília era casar com um diplomata. Bastava pertencer ao Itamaraty, ela se interessava. Achou um. Seis meses de namoro, casaram-se. Não deu um ano e meio, separaram-se. O argumento da moça.

– Ele viaja demais. Mas não era diplomata?

Há homens que casam com uma garota de 20. Tudo é felicidade. Quando ela começa a amadurecer, separam-se. Ele arruma outra, de 20. E depois... é tudo igual. Suas ex-­mulheres formam uma escadinha de idades, frequentemente com o mesmo tipo físico.

É uma época de impaciência para com o outro. O amor é volátil, como um líquido que evapora ao contato com o casamento. Tanto que, nas plantas de apartamentos de luxo, vem a grande opção: um banheiro para cada um. Já ouvi de uma amiga:

– Eu não conseguiria continuar casada se tivéssemos o mesmo banheiro.

Que amor é esse, que depende do banheiro?

Todo relacionamento vive impaciências. Dificuldades. Pequenas chatices do dia a dia no passado seriam relevadas. Quando alguém se casava, queria que fosse para sempre. Atualmente, parece até que se separar é mais importante que casar. As pessoas acreditam que estão entrando numa nova fase, para preencher o vazio interior. Entram em cursos, buscam novos grupos de amigos. Mulheres mudam o penteado, homens correm para perder a barriga. E depois encontram alguém parecido com quem já tinham, pois a mudança foi somente exterior. Unem-se e, dali a pouco, a rixa recomeça.

A grande questão é que, para amar o outro, é preciso amar a si mesmo. Está difícil, em tempos tão contraditórios. Cada vez que alguém se separa e encontra outra pessoa, não é uma renovação em si. Mas o produto de uma insatisfação interior que não será resolvida pelo par. Resultado: ao primeiro deslize, a separação. Tem muito marido que já perdeu a mulher porque se esquecia de abaixar a tampa do vaso.







Genildo



ADÃO ITURRUSGARAI













Comunhão  Parcialíssima  de  Bens - Antonio Prata

É um mistério o que une os casais. Às vezes são as semelhanças, às vezes as diferenças, às vezes látex e cera quente, às vezes baião e maria-mole. Não à toa, o deus do amor é uma criança com arco e flecha, um déspota mimado e irresponsável, tipo um Kim Jong-un alado penetrando com suas ogivas nucleares 7 bilhões de corações.

Se a cola é desconhecida, não é menos obscuro o solvente. “O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio”, assim começa a célebre crônica em que Paulo Mendes Campos desvela 62 possibilidades para o fim do amor: “Em cafés engordurados”, “nas encruzilhadas de Paris”, “nos roteiros do tédio para o tédio”; “o amor acaba”.

Tenho um amigo que resistiu estoicamente quando a mulher o largou por outro, mas não aguentou dois meses depois que ela voltou, casaram-se e ela revelou o péssimo hábito de espalhar as roupas pelo chão do quarto. “Eu vou no banheiro de noite e tropeço. Toda noite. Já pedi, implorei, mas ela não para”, me contou, bêbado e sem esperança, prostrado sobre um balcão. Numa dessas madrugadas desviou de um sutiã, mas se enroscou numa saruel: rompeu dois ligamentos e a relação.

A minha história não é menos triste. Por uma década, eu e a minha mulher vivemos felizes. Tivemos dois filhos, viajamos o mundo, assistimos a Sopranos, Breaking Bad e Mad Men. Eu achei que era pra sempre (ainda nem havíamos começado Game of Thrones), mas nos últimos meses meu casamento vem sendo ameaçado pelo carregador do iPhone. Segundo cremos eu e o Código Civil brasileiro (Livro IV, “Do direito de família”, a partir do artigo 1.511), a comunhão parcial de bens, regime em que nos casamos, faz com que tudo o que adquirimos desde que pusemos as assinaturas no livrão da juíza pertença aos dois, o que inclui nossa casa, nosso Honda Fit 2012, a TV na qual assistimos às nossas séries e – por que não? – nossos carregadores de iPhone.

Minha mulher, contudo, acredita que os carregadores de iPhone são bens pessoais e intransferíveis que não devem jamais ser compartilhados pelos cônjuges, algo tão íntimo como as escovas de dentes ou os rins – ou ainda mais íntimos, pois em casos de emergência casais se emprestam escovas e doam-se rins. O pior é que ela está convicta de que eu tiro o carregador dela das tomadas em que ela o coloca e, só para irritá-la, o escondo em rincões de difícil acesso, atrás do sofá grande ou do vaso de pacová, por exemplo.

Dia sim, dia não, a vejo bufando pela casa, arrastando móveis, rastejando pelos tacos e praguejando contra mim. Eu falo, “amor, pega o meu, lá no quarto”, mas isso só parece aumentar sua revolta. “Eu não quero o seu! Eu quero o meu! Cada um tem um! Por que você pega o meu?! Eu nunca acho!”

Hoje pela manhã, nós tivemos uma briga feia. Ela me acusou de ter colocado o carregador dela na tomada atrás da cama e entortado “o bagulhinho branco de dentro do USB”, depois saiu de casa batendo a porta, não sei se rumo a uma loja Apple ou a um apart-hotel. Agora à tarde, enquanto escrevia esta crônica, recebi três ligações de um “Número Desconhecido”, mas não atendi. Temo ser uma advogada anunciando que a minha mulher abriu o processo de divórcio e exige na Justiça a guarda dos nossos dois fios.







Duke




Marta e Alberto (e Erika) - Milly Lacombe
 

Marta e Alberto se conheceram no casamento da melhor amiga dela. Começaram a namorar logo depois e a decisão de morar junto não levou um ano. Alberto era diretor de fotografia e Marta era arquiteta. Ela sonhava com um casamento tradicional, seu príncipe esperando no altar, mas Alberto não podia nem pensar em casar nesses termos.

O debate não foi aprofundado porque Marta engravidou e tudo passou a girar em torno da gravidez.

Alberto não soube lidar com a chegada de uma filha e eles se distanciaram. Ele chegava do trabalho cada vez mais tarde, ela mergulhou numa solidão profunda. Foi com tristeza, mas não com surpresa, que soube que Alberto estava tendo um caso e tinha engravidado a amante.

Marta saiu de casa, mas Alberto, arrependido, foi buscá-la e prometeu que seria um outro homem dali em diante.

Marta disse que se sentia entre duas possibilidades estranhas, mas que a pior delas seria a de ele não assumir a paternidade do segundo filho. Ele respondeu "claro que vou assumir, não sou um monstro".

Para ele, assumir a paternidade era pagar uma pensão justa e ver a outra filha de dois em dois meses, quando muito. Marta não disse nada, até porque precisava que ele se manifestasse como pai presente e ativo para a filha deles, que nasceu chorando e chorou por seis meses seguidos.

O casamento nunca mais se aprumou e quando as crianças tinham dois anos ele deu um jeito de conseguir uma filmagem no Canadá que levaria dois meses.

Marta se viu sozinha com uma filha que, como todas, exigia demais dela.

Fazia menos de 15 dias que Alberto havia viajado quando Marta foi ao supermercado e viu a irmã de sua filha pegando maçãs. Olhou um pouco mais longe e enxergou Erika, a mãe da menina, caminhando em sua direção. Erika estava com os lábios quase azuis, pálida e suando demais. Marta percebeu que ela poderia desmaiar e a levou para o café do mercado. Deu a ela uma água de coco e as duas ficaram um tempo ali conversando. 

Elas tinham se visto meia dúzia de vezes na vida e essa foi a primeira vez que dialogaram e descobriram todas as coisas tinham em comum. Tristezas, solidões, mágoas, frustrações e, mais do que tudo, uma exaustão que ia até os ossos. Enquanto conversavam, as irmãs brincavam e desenhavam na mesa ao lado. No final, Erika agradeceu a ajuda e convidou Marta para sua festa de aniversário, que seria na semana seguinte. Marta disse que iria, mas achou que estava apenas sendo educada.

Ficou surpresa com ela mesma de, no sábado da festa, ter pedido para a mãe ficar com a filha porque ela queria ir dançar. Foi o que fez. Dançou até o dia amanhecer com Erika e seus amigos. No final, ainda sob efeito de álcool, decidiu aceitar o convite de Erika e dormir ali mesmo. Avisou a mãe, que disse que ela não se preocupasse.

Marta e Erika começaram a namorar alguns dias depois.

O casamento aconteceu na fazenda de uma tia de Erika, perto de Penedo, num fim de tarde ensolarado de junho.

As duas entraram de mãos dadas pelo corredor de tulipas e juntas foram até o altar, onde uma amiga faria a cerimônia. À frente delas, as duas filhas carregavam as alianças e um buquê.

Não teve príncipe, mas teve Erika em toda a sua potência.

E, com ela, a promessa de um amor sincero.


Estela May

Fabiane Langona



Caco Galhardo
Will Tirando







Separações & Recaídas - Humberto Werneck

Você arriscaria aposta no sucesso de um casamento antigo que todos acham perfeito? E numa separação decidida “na boa”?
1. Implosão conjugal
Era um casal antigo, do tempo em que os casamentos duravam mais que os móveis da Tok & Stok. Se brigavam, era numa intimidade à prova de berreiro e louça estilhaçada. Para a vizinhança, que os via desfiar as tardes na varanda, aposentadíssimos, ela no tricô, ele atracado a uma leitura, eram a própria felicidade conjugal. 
Até o dia em que ele, com dores no peito, ouviu do cardiologista uma sentença inapelável. 
– Quanto tempo? – conseguiu tartamudear. 
– Se o senhor levar uma vida tranquila, sem aborrecimentos... 
Sem aborrecimentos? Ainda hesitou, à saída do prédio, olhos cravados em lugar nenhum – e então, decidido, varou o caudal da multidão de fim de tarde, disputou um orelhão, ligou para casa e comunicou à mulher que não o esperasse. A que hora voltaria? – Nunca! Nunca! – rosnou ele. Mandaria buscar suas coisas, todas, está me entendendo? E, em meio ao alarido do rush, aproveitou para desaguar – sua isso! sua aquilo! – rancores represados nos recônditos de uma união que já cumprira uma fartura de pedras e metais, ouro inclusive, e que se desdobrara em filhos, netos, dali a pouco, bisnetos.
Do outro lado do fio, desabada na cadeira, a esposa chegou a pensar que o companheiro, sempre tão atencioso, houvesse endoidado – até se dar conta, horrorizada, de que estava protagonizando o que talvez tenha sido o primeiro divórcio por orelhão. 
Para encurtar: ele disse que não voltava, e não voltou mesmo. Foi morar no prédio ao lado, sob as asas maternais de uma das filhas. A área de serviço dava para os fundos do antigo lar, e era ali que se postava, hierático, o barrigão senhorial forçando os suspensórios, a encarar por trás das lentes garrafais a ex-mulher – que, a poucos metros de distância, com seu irremediável penhoar de florzinha, também o encarava. Sempre em silêncio, ambos, pois nunca mais trocaram palavra, nem que fosse para despejar desaforos represados. Mas era o tempo esfriar e ela telefonar para a filha: 
– Vê se o teu pai está bem agasalhado. Bota um cachecol. Meia de lã. Joga um casaquinho nas costas. 
O que não impediu que, ano e pouco mais tarde, com agasalho e tudo, uma pneumonia, e não as coronárias, o levasse. Mas já faz tempo. Depois disso, os móveis da Tok & Stok melhoraram, e os casamentos, pioraram.
2. Numa boa
Como tantas uniões, tem separação que não dá certo – e foi o que se passou com aqueles dois. 
Separaram-se “numa boa”, tão boa que a decisão não tardou a fazer água. Quem mandou entrarem num esquema de se verem para um cineminha apenas, “cineminha apenas” que a certa altura passou a incluir uma esticada para “um chopinho apenas”? 
Dali para o motel foi um pulo e, na cama redonda, entregaram-se finalmente à desenvolta lambança de que, na moldura quadrada de sua vida conjugal, jamais tinham sido capazes. Chegaram mesmo, se me permitem descer a tais detalhes, a fazer uso, ali, daquela coisa – poltrona? cadeira? – de metal laqueado, com jeito de instrumento de tortura mas concebida com objetivo oposto, sabe Deus por quem, para, como numa academia de ginástica, diversificar as posições e, de quebra, revelar talentos circenses ao sabor do mais descabelado Kama Sutra. Trataram-se, enfim, com guloseimas eróticas que, na vigência do casamento, só haviam saboreado em suas respectivas puladas de cerca.
Quem mandou? Daí a pouco estavam os dois na via sacra das agências imobiliárias, atrás de um apê para alugar, ao mesmo tempo em que iam recompondo a tralha doméstica que haviam dispersando entre os amigos. 
No fogaréu novamente aceso da paixão, esqueceram-se por completo dos trâmites do divórcio, e foi com genuíno espanto que um dia receberam, num de seus separódromos (chamemos assim a esses flats aonde vão dar tantos náufragos de separações), uma notificação para comparecerem perante o juiz.
Não sabiam que bastava ignorar o papelucho: tementes à lei e à polícia, acharam que estavam obrigados a ir, e assim fizeram, solenizados, num belo começo de tarde. Não tão solenizados que não pudessem antes almoçar nas imediações do Fórum, com todas as caipirinhas a que têm direito os apaixonados, de forma que estavam alegrinhos quando se viram frente ao juiz, o qual, em inequívoco piloto automático, enveredou por uma discurseira edificante, qual bula ao advertir para indesejáveis efeitos colaterais de um medicamento. O amor. A sagrada instituição do casamento. Os filhos, abençoados frutos dessa união. A construção do amor em meio às intempéries da infidelidade e à ferrugem do cotidiano. 
Nesse ponto do recitativo, o divorciando – criemos o termo, se já não existe no jargão jurídico – achou que era hora de manifestar-se:
– Taí, o senhor me convenceu. 
– Perdão?
– Desisti de separar.
– Eu também! – ecoou a divorcianda, agarrando-se ao braço do agora remarido. 
Como nos velhos romances, o Meritíssimo franziu o sobrolho: aquilo não estava no programa.
– Como assim? – e, com a severidade da toga, brandiu os cincos dedos da mão peluda: – Os senhores pensem bem no que estão fazendo!




A novidade do casamento self - Humberto Werneck

Se tudo correu como previsto, a Jussara terá se casado no último domingo, em Belo Horizonte. Vestida de noiva, nos conformes, mas sem entrada na igreja de braços dados com um pai que nem sei se ela tem. Na verdade, nem igreja terá havido, pois a Jussara, libérrima em seus 38 anos de idade, quis casar-se ao ar livre, numa praça. 
Se observado o minucioso enredo por ela elaborado, a moça fez, sozinha, sob o sol das 3 e meia da tarde do domingo, sua caminhada rumo a um altar – não que sem antes, numa inusual “entrada invertida”, a filha, de 21 anos, de lá tivesse vindo para lhe entregar um buquê de flores.
E o noivo? Bem, noivo não havia nesse casamento, pois a autossuficiente Jussara abriu mão de tal supérfluo ao optar por uma inédita – no Brasil, ao menos – fórmula matrimonial: o casamento sologâmico. Isto é, aquele em que a pessoa, para a alegria e a tristeza, a saúde e a doença, convola núpcias consigo mesma. Em linguagem de Sérgio Moro, torna-se “conje” de si mesma. 
O objetivo do casamento self, digamos assim, seria celebrar “o amor próprio”, explicou Jussara a um jornal de BH. Nele haveria pelo menos uma vantagem: já não será por falta de parceiro que a mulher verá frustrado o sonho de um dia se embalar num vestido de noiva. Embora a entrevistada não tenha acenado com o chamarisco do “antes só que mal acompanhado/a”, o espírito, ou parte dele, seria esse. 
Esperançosa de que a nova modalidade no mercado nupcial possa seduzir outros casais de um só – masculinos, inclusive –, Jussara montou uma empresa, a “Eu Comigo Evento”, cujo cartão de visita seriam suas autobodas. Nem por isso, esclarece, seu casório se resumiria a mero lance de marketing. “Trabalho com cerimonial de casamento há 20 anos, mas a vontade é genuína”, declarou à reportagem. “Estou tão feliz e tão bem comigo que quis fazer festa para mim e casar comigo. Quis assumir o compromisso de me amar.” E fez questão de deixar claro: não foi por falta de pretendentes que optou pelo casamento sologâmico. 
Mas voltemos à cerimônia do domingo passado, que teve como celebrante uma das amigas da Jussara. Por motivos óbvios, não houve troca de alianças. Em compensação, a nubente fez estampar em si uma tatuagem em que se vê uma mulher com asas de borboleta.
Razão da escolha desse lepidóptero da subordem dos ropalóceros: “Borboleta tem significado de luta e renascimento”. 
Não poderia faltar o ritual de um cortejo de damas e de pajens, que em vez de alianças levassem votos de “amor próprio”, impressos num papelucho que Jussara leria diante de um espelho – ela e os 100 convidados, pois para cada um se providenciou um espelhinho de mão. Na ausência de outro par de lábios para o indefectível beijo ao pé do altar, resta saber se a noiva, cheia de amor para se dar, terá recorrido ao proverbial beijinho do ombro. 
No final, festança com drinks, banda e DJ. Bem-casado? Talvez – mas terá sido inteiriço, sem as habituais metades unidas com recheio. Ah, sim: houve com certeza um bolo nupcial, em cujo topo, em vez do parzinho de sempre, imperava o quê? Uma esvoaçante mulher com asas de borboleta. 
*
“Só mesmo em Minas Gerais...”, houve quem alfinetasse numa roda paulistana na qual se comentava a novidade da Jussara. O assunto rendeu.
“Se agora existe o poliamor”, absolveu a Semíramis, “por que não a sologamia?” 
“Fico imaginando como será a noite de núpcias...”, divagou o Miguel. 
Conhecida entre os amigos pela absoluta falta de malícia, aquela moça, cujo nome convém silenciar, disse ver no casamento sologâmico a vantagem do sexo sempre à mão. 
O Fernando, como sempre mão fechada, condenou o desperdício numa chuva de arroz para uma só pessoa. 
O Antônio Carlos farejou “briga feia”, por visceral incompatibilidade de gênios, já na hora de escolher o cenário da lua de mel – e profetizou: quem pular a cerca irá cair em cima do próprio lombo! Num entrevero conjugal, acrescentou, qualquer ato de agressividade será também de masoquismo, e, nos casos extremos, homicídio vai coincidir com suicídio, com a pessoa concentrando em si a dupla condição de defunto e viúva.
Na sua compulsão literária, o exibido Alberto voltou a sacar aspas, desta vez do português Sá de Miranda, pescadas nas profundas do século 14 para ilustrar as dificuldades de alguém no convívio consigo mesmo: “Comigo me desavim,/ Sou posto em todo perigo,/ Não posso viver comigo/ Nem posso fugir de mim”.
Também ela chegada em citações, porém mais ao rés do chão que o Alberto, a Teresa tem prontinha a trilha musical para casos de dor de cotovelo de quem seja a um só tempo traidor e traído – um Roberto Carlos de velha safra: “Não adianta nem tentar me esquecer: durante muito tempo em sua vida eu vou viver”. 
Propenso a ver sempre o lado positivo das coisas, o Flaminio acredita que na sologamia a separação será mais fácil, “sem brigas, disputa de patrimônio ou guarda dos filhos”. E também mais prática: só metade dos padrinhos. Bodas mais em conta: lua de mel com uma só passagem de avião. No dia a dia, uma das partes, generosa, pagará todas as despesas da outra. Na hora de discutir a relação, bastará recorrer a um espelho, como a Jussara ao formular seus votos de “amor próprio”. 
Argumento eventualmente decisivo do Flaminio: sendo o casamento sologâmico, a sogra será sempre a própria mãe. 
Frank & Ernest - Bob Thaves

André Dahmer







Nunca discutir? – Fabrício Carpinejar

Quando o casal me diz que nunca discute ou está mentindo ou um dos dois reclama e o outro é indiferente. A farsa é para selfie. Pois o sorriso de margarina derrete ao sol da verdade.

Não tem como acertar sempre de primeira. Nem os inspirados em rosas e gentilezas, nem os plantonistas dos versos de Pablo Neruda. A paz é feita de sucessivos acordos e tratados. Ninguém assina a concordância eternamente. Não há amor à primeira vista, isso é coisa da paixão. O amor é parcelado em cada reconciliação.

Há casais que brigam excessivamente, com temperamentos geniosos, e casais que brigam pouco, com uma maior maleabilidade de suas opiniões. Mas não discutir é censura. Nada mais triste do que a ditadura da felicidade. Compreensão difere assombrosamente da submissão.

Não é possível. Simplesmente não é possível não conversar a sério e de cara feia uma vez na vida. É questão de saúde mental expor o que incomoda e procurar consertar ao alterar o padrão de comportamento.

Nem a pessoa mais estável está imune ao erro. O ciúme vem de mansinho, o egoísmo corteja a partilha, a arrogância sussurra aos ouvidos refrãos de dominação. A falha é fatal inclusive para os bem-intencionados.

Trata-se de uma farsa o casal que defende que nunca discute. Ele deseja ser uma exceção num mundo turbulento e ansioso. É um capricho, não uma realidade. Talvez queira gerar inveja e provocar desconforto em romances normais mergulhados em desentendimentos fugazes. Vem forçando um casamento milagroso, para desestabilizar a ordem de pequenos e naturais estremecimentos humanos.

Só que não dá para acreditar. Pega mal repassar esta versão. Derruba a credibilidade das palavras, enferruja a aliança. Duvido alguém jamais perder a razão ao equilibrar a casa, a família, as finanças e as urgências do trabalho.

Os enamorados puros não escapam da regra. Terão um dia ruim, enfrentarão a birra, a frustração e o desespero mudo, como todos que se amam e equacionam as diferenças sem anular as identidades.

Par amoroso que alega que não discute jamais está apenas fingindo que é perfeito. Os vizinhos ou os filhos conhecem a verdade. E não dura muito tempo. Casal feliz é o que briga, mas faz as pazes antes mesmo de virar notícia para os amigos no dia seguinte.

Caco Galhardo










Um jeans nunca sai barato - Fabrício Carpinejar



Não tema quando sua mulher subir numa balança. A balança é de menos. A balança não é de nada.
Se ela pisar numa farmácia e verificar seu peso, não sofra por antecipação, não se amedronte com o resultado. Talvez sua esposa saia rindo, diga que não confia na fidelidade da máquina e que não se preocupará à toa. A ordem das coisas e da casa permanecerá inalterada.
Mas fique tomado de toda a cautela quando ela provar jeans em uma loja.
Não pense que ela está comprando apenas mais uma peça, que ela apenas desejava uma opção escura com cintura alta ou intermediária, que é uma saída de praxe ao shopping. Não entre de patinho nesta conversa furada de provador.
Verá o Apocalipse sem bainhas. Sua tranquilidade pode terminar. Seu mundo pode ruir.
A calça é a real balança da mulher. É a única medição em que ela confia cegamente.
É não entrar em seu número, é não fechar o zíper apesar dos pulinhos, é não entender a falta abrupta de sintonia entre as coxas e a bunda, é perceber os gomos saltando das pernas, que sua esposa irá enlouquecer. Não calará mais a boca dali por diante com dietas do suco, da proteína, do chá verde, do miojo, dos pontos, da sopa, da lua, do sol, de Beverly Hills, do bairro Cavalhada.
Abandonará o shopping com uma longa lista de cortes e restrições, num enxugamento alimentar jamais visto em sua residência.
Acabou o romance entre vocês. Acabou suas mordomias, suas escapadas da rotina a dois, sua pizza pepperoni.
Ela vai cancelar todos os possíveis jantares, vai anular qualquer cinema durante o mês para não comer pipoca e tomar refrigerante, vai suspender a viagem programada para Gramado, vai acabar com os passeios noturnos pelos bares (já que não deve beber).
Ou seja, ela deixará de viver. E por causa do maldito jeans que não serviu nela, você também deixará de viver.
Ninguém engorda sozinho. E, preste atenção, ninguém emagrece sozinho.
O preço de morar junto está embutido na calça.

Orlando Pedroso

Nani













O Bom Partido – Luis Fernando Verissimo

Do baú. O tão discutido casamento homossexual não deixa de ser uma sequência natural da longa e estranha história de uma convenção, a união solene entre duas pessoas, que começou no Éden. A Bíblia não esclarece se Adão e Eva chegaram a se casar, formalmente. Deve ter havido algum tipo de solenidade. Na ausência de um padre, o próprio Criador, na qualidade de maior autoridade presente, deve ter oficiado a cerimônia.

No momento em que Deus perguntou se alguém no Paraíso sabia de alguma razão para que aquele casamento não se realizasse, ninguém se manifestou, mesmo porque não havia mais ninguém. A cerimônia foi simples e rápida, apesar de alguns problemas – Adão não tinha onde carregar as alianças, por exemplo –, e Adão e Eva ficaram casados por 930 anos. E isso que na época ainda não existiam os antibióticos.

Mais tarde, instituiu-se o dote. Ou seja, as mulheres, como caixas de cereais, passaram a vir com brindes. O pai da noiva oferecia, digamos, 10 cântaros de azeite e dois camelos ao noivo e ainda dizia:

– Pode examinar os dentes. – Deixa ver... – Da noiva não, dos camelos!

Eram comuns os casamentos por conveniência, pobres moças obrigadas a se sujeitar a velhos com gota e mau hálito para salvar uma fortuna familiar, um nome ou um reino. Sonhando, sempre, com um Príncipe Encantado que as arrebataria. (O sonho era sempre com um Príncipe Encantado. Nenhuma sonhava com um Cavalariço ou com um Caixeiro Viajante Encantado.)

Mais tarde veio a era do Bom Partido. As moças não eram mais negociadas, grosseiramente, com maridos que podiam garantir seu futuro. Eram condicionadas a escolher o Bom Partido. Podiam namorar quem quisessem, mas na hora de se casar...

– Vou me casar com o Cascão. – O quê?! – Nós nos amamos desde pequenos.

– O que que o Cascão faz? – Jornalismo. – Argh!

O Bom Partido foi um avanço nos hábitos matrimoniais, embora fosse apenas uma variação dos casamentos por conveniência. Em vez de forçada pela família a se casar com velhos ricos, a moça tinha o consolo de poder se casar com moços ricos, tão convenientes como os velhos mas sem gota e mau hálito.

A era dos Bons Partidos acabou quando a mulher ganhou sua independência. Paradoxalmente, foi só quando abandonou a velha ideia romântica do ser frágil e sonhador que a mulher pôde realizar o ideal romântico do casamento por amor, inclusive com o Cascão. Só havendo o risco de o Cascão preferir se casar com o Rogério.


Fernando Gonsales





Angeli




Crônica Engraçada - Luis Fernando Verissimo

Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar:
Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.

Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em SP.

Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.

Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, “em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!” ela disse. Então, sugeri a cozinha.

Nós sempre andamos de mãos dadas…Se eu soltar, ela vai às compras!

Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico. Então, ela disse: “nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar”. Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.

Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente, 100 % dos divórcios começam com o casamento.

Eu me casei com a “senhora certa”. Só não sabia que o primeiro nome dela era “sempre”.

Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.

Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha.

Ela perguntou: “O que tem na TV?”

E eu disse: “Poeira”.

Hagar - Dik  Browne
  










Recruta Zero - Mort Walker













Solteirão – Luis Fernando Verissimo

Todos decidiram que o Valter precisava se casar. Família, amigos, todos. O Valter era um bom sujeito. Mas já tinha mais de 40 anos e estava em vias de se tornar um “solteirão”, com tudo o que a palavra significava. Um “solteirão” era alguém que passava pela vida sem provar as delícias de ter uma mulher só pra ele e uma família. Quando não havia, claro, a possibilidade de ser gay. Mas tudo bem, concordavam todos. O Valter podia se casar com outro homem. O importante era que não continuasse solteiro. O importante era que se casasse.

Família e amigos puseram-se a campo para encontrar uma mulher para o Valter. Quem mais se preocupava com o fato de ele não ser casado era sua irmã, Valkíria (casada com o Ferreirinha, que, diziam, tinha uma noiva em cada bairro da cidade e gastava uma fortuna só em transporte).
– Eu estou satisfeito assim, Val – dizia Valter.
– Eu sei. Mas não é, não é...
– O que, Val?
– Normal.

Um dia, Valkíria anunciou que iria apresentar Valter a alguém muito especial.
– Vocês vão se dar muito bem.
Têm muitas coisas em comum.
– O que, por exemplo?
– Ela também gosta de cinema. Eu acho.
E teatro. Adora teatro.
– Eu não gosto de teatro.
– Não sei se ela gosta de teatro, mas é uma pessoa interessantíssima. Tem renda própria e não é feia. Quer saber o nome dela?
– Não.
– Verônica. Não é bonito? Verônica.
Vocês vão se dar muito bem.
– Por que você acha isso, Val?
– Porque numa coisa vocês são iguais.
Os dois são solteiros.
O que os dois tinham mesmo em comum era que Verônica também vivia pressionada por familiares e amigos para se casar.

No primeiro encontro, Valter e Verônica concordaram. Se casariam. Sem namoro, sem noivado, sem se conhecerem bem e sem demora.
Desde que algumas coisas ficassem acertadas.
– Eu leio jornal na cama e durmo só
de camiseta.
– Antes de tomar uma xícara de café de
manhã, não falo com ninguém. Só rosno.
– Tenho horror de sol, de miúdos, de cheiro
de incenso e de pagode.
– Você raspa a manteiga ou tira pedaço?
– Tiro pedaço. Você?
– Raspo. E enrolo o tubo de pasta de dente.
– Eu não enrolo, mas não tenho preconceito.
– Uma coisa: o controle remoto da televisão
fica comigo.
– A não ser quando tiver futebol.
– Combinado.

Casaram-se, numa cerimônia simples na casa da Valkíria, que estava radiante. E, é claro, divorciaram-se pouco tempo depois da lua de mel em Porto Seguro. Valter contou para a irmã que simplesmente não dera certo. Os dois tinham hábitos muito arraigados. Hábitos de solteiros. Tinham tentado, mas... Valkíria, para sua surpresa, compreendeu. Disse que hoje em dia é normal ser divorciado. E que ninguém chamaria um divorciado de “solteirão”.

E Valkíria contou ao irmão que ela mesma só não era divorciada porque o Ferreirinha dizia que acreditava demais na santidade do casamento e não aceitava.


Caco Galhardo


ADÃO ITURRUSGARAI





O teste – Luis Fernando Verissimo

Homem e mulher na cama. Domingo de manhã. Homem acorda primeiro. Vê mulher ao seu lado e dá um grito de susto. Mulher acorda.

– Que foi?!

– Quem é você?

– Enlouqueceu, Carlos Alberto? Sou eu. Combinamos passar um fim de semana juntos. Como um teste, antes do casamento. Lembra?

– Desculpe. É que não reconheci você. Você tem sempre essa cara, de manhã?

– Que cara?

– Cara de quem acabou de acordar.

– Tenho, né, Carlos Alberto? Aliás, todo mundo acorda com cara de quem acabou de acordar. Você também.

– Eu?! Ei, aonde você vai?

– Vou ao banheiro fazer o que eu faço todas as manhãs. Xixi, dentes, banho. Minhas ablações.

– Não, não, não. Eu primeiro. a) porque eu preciso fazer xixi logo depois de levantar, senão descontrola todo o meu dia, e b) não é “ablação”, é “ablução”.

– “Ablução”?! E “ablação” o que é?

– É “falação” em espanhol.

– E se a gente tomasse banho juntos?

– Romantismo a esta hora, não.

– Pelo menos pra poupar água.

– Não.

Mais tarde. Os dois atirados no sofá da sala, cada um para um lado. Ela tem o controle da televisão na mão.

– Você vai ficar trocando de canal desse jeito?

– Arrã.

– Eu posso ficar com o controle um pouco?

– Ahn-ahn.

– “Ahn-ahn” é sim ou não?

– “Ahn-ahn” é não. Sim é “arrã”.

– Você não para de trocar de canal. Deixa o controle comigo um pouco. Pra ver se estão passando o futebol.

– Ahn-ahn.

– Acho que essas coisas a gente deveria combinar agora. Quem vai no banheiro primeiro, quem controla a televisão, o que fazer o dia inteiro, nos domingos...

– Mmm.

– “Mmm” o que é?

– “Mmm” não é nada. “Mmm” é mmm... Um som neutro. Significando que eu estou aqui e estou ouvindo você.

– Em língua de casado?

– Arrã.





Malvados - André Dahmer









Debutantes – Luis Fernando Verissimo

As três almoçavam juntas todas as terças-feiras. Amigas antigas, mesma idade (o lado ainda ensolarado dos 30), casadas, sem filhos.

Heloísa fora a última a se casar.

– E então? – quis saber a Carol. – Então o quê?

– O casamento, como vai? – Vai ótimo!

– É tudo que você imaginava? – Que pergunta, Carol! Claro que é!

A Carol parecia amarga, por alguma razão. Logo a Carol, a mais divertida das três. A que organizava as reuniões dos casais. A que cantava nas festas.

– Diz a verdade, Helô – insistiu Carol. – O Rui é tudo o que você esperava?

– É um homem maravilhoso. Eu estou felicíssima.

– Felicíssima, Helô? – Está bem. Felicíssima é exagero. Mas estamos muito bem.

A Maria Helena interveio. – Por que esse interrogatório, Carol?

– Porque eu acho que nós estamos vivendo uma mentira. Três mentiras. Nós três. Nenhum dos nossos maridos é maravilhoso. Nossas vidas não são maravilhosas. No outro dia, eu estava olhando o Edgar roncando na frente da televisão e me dei conta. Então é isso? Minha vida é isso?

– Carol – disse a Maria Helena –, o que mais você quer da sua vida? Você é uma mulher saudável, sem problemas de dinheiro, com um marido que pode não ser um galã, mas...

– Não é o Edgar. Você não entende? O Edgar roncando na frente da televisão é só um detalhe. É tudo. É o futuro que me espera. O futuro que nos espera. É a vida que nós nunca vamos ter.

– Que vida você queria, afinal, Carol?

– Quer saber? Eu queria que minha vida fosse uma comédia romântica.

– Ora, Carol... – Uma comédia romântica americana.

– Mas isso não existe, Carol. Só existe no cinema. Na vida real, ninguém...

– É isso! A vida real. Nós não fomos feitas para a vida real. Nós merecemos mais do que a vida real. Lembra do nosso baile de debutantes? Nós não estávamos lindas? A vida que nos esperava era outra, sorridente, muito diferente da vida real. A vida real não é para debutantes.

Então, Carol levantou-se e disse que iria embora.

– Mas nós ainda não pedimos o almoço! – protestou Maria Helena.

– Eu estou sem fome. E hoje sou uma péssima companhia. Até terça que vem.

Quando Carol se foi, Heloísa comentou:

– O Rui não ronca, eu acho.

Hagar - Dik Browne








703 - Luis Fernando Verissimo

“Você está doido.”
“Aposto o que você quiser.”
“O quarto estaria o mesmo, tanto tempo depois?”
“Algumas coisas mudaram, mas olha a vista. A vista é a mesma.”
“Como você sabe? A última coisa que queríamos fazer, naqueles dias, era olhar a vista. Não saiamos da cama.”
“Acho que eu estou me lembrando até do número. Era o 703. Tenho certeza.”
“Tá sonhando.”
“Lembra que você trouxe uma sacola com pijama? Achei aquilo maravilhoso. Em vez de uma camisola, ou de nada, um pijama de flanela azul.”
“Que no fim eu nem usei.”
“Tomamos banho juntos, lembra? Antes e depois.”
“Foi a primeira vez que vi você nu. E quis me casar assim mesmo.”
“Olha o banheiro. Igualzinho. Era o 703!”
“Que ideia, vir para o mesmo hotel, tantos anos depois...”
“E acabar no mesmo quarto! O que você está fazendo?”
“Ligando pra casa. Pra ver se está tudo em ordem.”
“Não vá dizer onde nós estamos.”
“Vou. Vou dizer ‘Olha, seu pai quis passar o Dia dos Namorados no mesmo hotel em que dormimos juntos pela primeira vez’.”
“Você trouxe os meus remédios?
“Trouxe. Estão na sacola, junto com os meus. Aliás, na sacola só tem remédios.”
“O Isordil veio?”
“Veio. Eu estou delirando, ou naquela vez você entrou no quarto me carregando no colo?”
“Entrei. Coisa de filme americano.”
“Eu era mais magra.”
“E eu era mais forte. Hoje, se fosse tentar carregar você no colo, me deslocaria a coluna, se não me desse um enfarte.”
“Tanto tempo...”
“Eu me lembro de cada minuto.”
“Mentira.”
“Lembro de tudo. Lembro até do que você me chamava: Ronrozinho.”
“Que coisa ridícula.”
“Na época, era excitante.”
Mais tarde:
“Ronrozinho, você não vem pra cama?”
“Já vou. Estou olhando a vista.”


Malvados - André Dahmer
















A outra vida do sr. Antônio - Luis Fernando Verissimo

Dona Julinha desconfiou quando entrou na sala a tempo de ouvir seu marido, o sr. Antônio, dizer “Tchau, amor” e desligar o telefone.
– Com quem você estava falando, Antônio? – Ninguém. – Como é possível falar no telefone com ninguém, Antônio?
O sr. Antônio apenas sorriu. A mesma coisa aconteceu outras vezes depois disso, até que dona Julinha perdeu a paciência e pediu explicações. Com quem o sr. Antônio falava ao telefone tão carinhosamente – e se despedia tão rapidamente quando a mulher aparecia? O sr. Antônio hesitou, depois falou.
– Está bem, Julinha. Se você quer mesmo saber... Eu tenho outra mulher. Uma amante. Nos conhecemos há 20 anos.
– O quê?! E, diante do espanto da mulher, o sr. Antônio completou: – O nome dela é Sulamita.
Dona Julinha não sabia o que fazer com aquela informação. De repente, uma Sulamita na vida deles! O sr. Antônio tinha outra mulher. Outro lar. Talvez outra família. Outra vida! Logo o sr. Antônio, que um dia declarara “Julinha, eu não sei se gosto mais de você ou dos meus chinelos de camurça”. Logo o sr. Antônio, tão caseiro, tão pacato, com uma amante – chamada Sulamita!
Dona Julinha reuniu os filhos para pedir conselhos. O que deveria fazer? Seu primeiro impulso fora o de expulsar o marido de casa. Ele que fosse viver com a outra. Mas os filhos não concordaram. Um divórcio, àquela altura da vida do casal? Seria complicado. E desnecessário. Dona Julinha que aprendesse a viver com a nova realidade. Afinal, o sr. Antônio, apesar de ter uma amante durante 20 anos, escolhera ficar com a mulher. De certa maneira, optara pelos chinelos de camurça.
Durante semanas, dona Julinha não dirigiu uma palavra ao marido. Comiam em silêncio. Viam a novela em silêncio. Até que um dia, levada mais pela curiosidade do que por vontade de brigar, dona Julinha perguntou:
– Como vocês se conheceram?


Vida e obra de Terêncio Horto - André Dahmer






Nani



Mulherão - Luis Fernando Verissimo

O Luizinho nem reagia mais quando chamavam sua nova mulher de mulherão. A nova mulher do Luizinho era realmente muito bonita. Grande e bonita. Tão grande e tão bonita que logo se instalou o debate na mesa do bar em que a turma costumava se encontrar: ela não seria grande e bonita demais para o Luizinho? 
Não era uma questão de duvidar da capacidade do Luizinho de administrar, por assim dizer, tudo aquilo. Nem se discutia o direito de o Luizinho, apesar do seu tipo franzino, ter uma mulher daquelas dimensões. A questão, no fundo, era de justiça. Valda – o nome dela era Valda, como as pastilhas – era mulher demais para um homem só, fosse quem fosse o homem ou que físico tivesse. Monopolizando uma mulher como aquela o Luizinho a estava, assim, dizer, sonegando-a. Alguma coisa, por justiça, tinha que sobrar para os outros. Aquilo era até uma metáfora perfeita para concentração de renda no País, não havia como não se revoltar. Onde estava a solidariedade? 
Restava saber como a mulher do Luizinho reagiria a uma proposta retributivista. Fez-se uma rápida enquete no grupo, no fim da qual foi escolhido o Romualdo para testar a receptividade da Valda. Romualdo, o Mualdão, era simpático e bem-falante, além de ser casado com a Titina, que já estava acostumada com sua fama de conquistador, e até fazia pouco dele, dizendo “Esse galo é só de cocoricó”, e todos riam. Todos no grupo eram casados. O último a casar fora o Luizinho.
E é preciso dizer que os homens do grupo respeitavam as mulheres do grupo. Ou, como dizia o Mualdão: “Mulher de amigo, pra mim, é homem feio”. Mas também é preciso dizer que nenhuma das mulheres do grupo era um mulherão como a Valda. Romualdo foi escalado para descobrir, com jeito, se Valda era ao menos cantável. Uma vez estabelecido isso, pensariam nos passos seguintes. Era necessário avançar com cuidado. Ninguém queria magoar o Luizinho, logo o Luizinho. Mas quem mandara ele casar com um monumento?
O máximo que Romualdo conseguiu com Valda foi uma conversa mais íntima longe da atenção do resto da mesa. Na qual Valda contou que era uma mulher com um apetite sexual equivalente ao seu tamanho, e que já tivera muitas experiências na vida, mas nada comparável ao que encontrara com o Luizinho, que a satisfazia plenamente. Luizinho era o homem da sua vida. O homem definitivo.
Naquela noite, quando chegaram em casa, Titina, com o pé batendo no parquet, quis saber o que Mualdão e Valda tanto tinham conversado no bar. Mualdão foi obrigado a contar tudo. O que Valda tinha contado sobre o Luizinho, tudo. Na noite seguinte, sentado ao seu lado no bar, Luizinho sentiu a mão de Titina por baixo da mesa, numa missão de reconhecimento.
André Dahmer





Allan Sieber

Will Tirando


Ela Lava e Ele Enxuga - Fernando Sabino


Como já tive ocasião de contar (Aventura do Cotidiano - 4, em "A Falta que Ela me Faz"), eram três solteirões que viviam com o pai viúvo naquela casa do interior de Minas. Um dia o mais novo, e já não tão novo, conheceu uma moça, gostou da moça, acabou se casando com a moça.
Casou e mudou.
Tempos depois, indo visitar o pai e os irmãos, não escondeu seu entusiasmo:
— Gente, vocês não sabem como mulher é bom! Serve para tanta coisa...
Não deixa de ser uma definição do casamento, como era concebido antigamente. Hoje em dia, prevalece mais a que decorre do comentário feito por aquele outro, depois que se casou:
— Então quer dizer que casamento é isso? Ela lava e eu enxugo?
— Pois comigo agora vai ser diferente — pensava ela, ao deixar o trabalho. Em vez de ir direto para casa fazer o jantar do marido, foi ao cabeleireiro mudar o penteado.
Depois de vários meses sem cozinheira, chegara enfim o dia de não encostar a barriguinha no fogão, como ele costumava gracejar, aliás sem graça nenhuma.
Em vão ela havia tentado avisar, telefonando-lhe para o escritório, que queria jantar fora naquela noite: não está na sala, está em reunião, ainda não chegou, já saiu. Onde diabo estaria? Nenhuma ponta de ciúme chegou a se manifestar na sua irritação por não encontrá-lo: parece até que está fugindo de mim, pensou apenas, indo finalmente para casa.
— Eu hoje quero jantar fora — foi declarando, categórica, quando ele lhe abriu a porta.
— Onde você andou? — perguntou ele, dando-lhe passagem.
— Fui ao cabeleireiro. E você? Tentei te avisar o dia todo.
— Me avisar o quê?
— Que eu queria jantar fora.
— Vim mais cedo para casa. Como não te encontrei...
— Nem podia encontrar, pois eu estava no cabeleireiro.
— Eu sei, você já falou. Não te encontrei, e estava com fome...
Que é que ele queria dizer? Que já havia jantado?
— Jantado, propriamente, não. Como estava com fome, fritei um ovo, e tinha um resto de arroz na geladeira... Não achei mais nada.
— Não achou nada porque eu não vim fazer o jantar.
— Estou sabendo. Foi ao cabeleireiro.
— Isso mesmo. Fui e hoje eu quero jantar fora — insistiu ela: — Não venha me dizer que você não vai me levar só porque comeu um ovo.
— Calma, minha filha — fez ele, evasivo: — Jantar onde? Você nem acabou de chegar da rua e já quer sair de novo. Que diabo de penteado é esse?
O comentário final foi a gota d'água — ela, que esperava dele um elogio pelo penteado.
— Não pensa que você me leva na conversa — protestou, indignada: — Eu quero saber se vai me levar para jantar. Se não vai, diga logo, que eu vou sozinha.
Um tanto temerária, aquela afirmativa, admitiu ela para si mesma: jantar sozinha como? onde? com quem? e pagar com quê?
— Estou com fome... — choramingou, para ganhar tempo.
Ele fora sentar-se diante da televisão, indiferente, enquanto ela ficava por ali, lamuriando a sua fome.
— Vê se encontra aí qualquer coisa para comer, como eu fiz — ele se limitou a dizer.
Ela botou as mãos na cintura e sacudiu com raiva a cabeça, ao risco de desmanchar o penteado:
— Olha bem para mim e vê se me acha com cara de arroz com ovo.
— Ovo, só tinha um — ele ria, o cínico! — E o arroz já era.
Num impulso de revolta, ela se voltou para a porta:
— Não preciso de você. Na casa da mamãe deve ter sobrado alguma coisa do jantar.
— Ridículo — ele se limitou a suspirar, e voltou a se distrair com a televisão.
Em vez de sair, ela partiu batendo os saltos em direção à cozinha. Pôs-se a remexer ruidosamente em tudo, devassando a geladeira, abrindo latas e destampando panelas. Acabou encontrando duas bolachas e, no armário sobre a pia, uma simples, única e solitária cebola. Começou a descascá-la, já em lágrimas, soluçando alto para que ele ouvisse lá da sala. Em pouco ele vinha bisbilhotar:
— Que é que você está fazendo? Está chorando por quê? Por causa dessa cebola?
— Não seja estúpido — reagiu ela, enxugando as lágrimas com as costas da mão: — Estou chorando porque estou sem comer! Quando me casei com você jamais pensei que ainda ia acabar passando fome.
— Amanhã te levo para jantar fora — concedeu ele.
— Não preciso de você. Se eu quiser, eu sei como encontrar alguém que me leve ainda hoje.
O sorriso irônico dele não animava a prosseguir nesse caminho: não encontraria ninguém, ainda mais assim de repente — nem ao menos uma amiga tão infeliz quanto ela. Descobrindo no armário um tablete de caldo de carne, animou-se e com deliberação pôs-se a preparar uma sopa de cebola, enquanto ele voltava para a televisão.
Levou a bandeja com a sopa para tomar na sala, com as duas bolachas, como se fosse o melhor dos jantares, esperando que o cheiro que dela emanava, realmente apetitoso, provocasse nele alguma fome. Se tal aconteceu, ele não deu mostras: em pouco desligava a televisão e, espreguiçando, ia para o quarto dormir.
Como era de esperar, passaram a noite de costas um para o outro. Pela manhã nenhum dos dois tomou a iniciativa de romper o silêncio. E em silêncio partiu cada um para o seu trabalho. O que mais doía nela era o detalhe do penteado-que fez questão de desfazer durante o banho.
Ao longo do dia não se telefonaram, como costumavam fazer.
À tarde, quando ela regressou, teve a surpresa de sua vida: encontrou a mesa posta, com o que havia de melhor a esperá-la para o jantar dos dois. Até mesmo, como sobremesa, aquela tortinha de mil-folhas de que gostava tanto.
Ao lado do prato, um bilhete: "Para que você hoje não passe fome."
— Como é que você fez tudo isso? — exclamou, ao vê-lo surgir do quarto.
— Encostando a barriguinha no fogão.
— Encomendou no restaurante — ela concluiu, encantada.
Ele a abraçou, afagou-lhe os cabelos:
— Ficam tão mais bonitos assim, ao natural.
Findo o jantar, ele quis levá-la em seguida para o quarto, mas ela pediu que esperasse: ia primeiro tirar a mesa e lavar os pratos.
— Eu lavo e você enxuga — disse, com doçura. Mais tarde, já na cama, ao tê-la nos braços, ele admitiria para si mesmo:
— Como mulher é bom! Serve para tanta coisa...


Texto extraído do livro "No Fim Dá Certo"

M. Schulz


Recruta Zero - Mort Walke



Conjugal variado - Humberto Werneck

A implosão
 Era um casal antigo – do tempo em que os casamentos duravam mais que os móveis da Tok & Stok. Se brigavam, era numa intimidade à prova de berreiro e louça estilhaçada. Para a vizinhança, que os via desfiar as tardes na varanda, aposentadíssimos, ela no tricô, ele na leitura, eram a própria felicidade conjugal. 
Até o dia em que ele ouviu do cardiologista uma sentença inapelável. 
– Quanto tempo? – pôde apenas tartamudear. 
– Se o senhor levar uma vida tranquila, sem aborrecimentos... 
Sem aborrecimentos? Ainda hesitou, à saída do consultório, olhos cravados em lugar nenhum – e então, subitamente decidido, varou o caudal da multidão de fim de tarde, disputou um orelhão e comunicou à mulher que não o esperasse. A que hora voltaria? – Nunca! Nunca! – rugiu ele. Mandaria buscar suas coisas, todas, está me entendendo? E, em meio ao alarido do rush, fez desaguarem – sua isso! sua aquilo! – rancores represados nos cafundós de uma união que já cumprira um colar de pedras e metais nupciais, e que se desdobrara em filhos, netos, dali a pouco bisnetos.
Desabada na cadeira, ela chegou a pensar que o companheiro, sempre tão atencioso, tivesse endoidado – até se dar conta de que estava protagonizando o que pode ter sido o primeiro divórcio por orelhão. 
Para encurtar: disse que não voltava, e não voltou mesmo. Foi morar no prédio ao lado, sob as asas maternais de uma das filhas. A área de serviço dava para os fundos do antigo lar, e era ali que ele se postava, hierático, o barrigão senhorial forçando os suspensórios, a encarar a ex-mulher – que a poucos metros de distância, com seu vitalício penhoar de florzinhas, também o encarava. Sempre em silêncio, pois nunca mais trocaram palavra, nem mesmo para despejar uns desaforos. Mas era o tempo esfriar e ela telefonar para a filha: 
– Vê se o teu pai está bem agasalhado. Bota um cachecol. Meia de lã. Joga um casaquinho nas costas. 
O que não impediu que, ano e pouco mais tarde, com agasalho e tudo, uma pneumonia, e não as coronárias, o levasse.
Mas já faz tempo. Depois disso, os móveis da Tok & Stok melhoraram, e os casamentos, pioraram.
*
A recaída
Como tantos casamentos, tem separações que não dão certo – e foi o que se passou com aqueles dois. Separaram-se “numa boa”, tão boa que a decisão não tardou a fazer água. Quem mandou entrarem num esquema de se verem para “um cineminha apenas”, cineminha apenas que a certa altura passou a incluir uma esticada para “um chopinho apenas”? 
Dali para o motel foi um pulo, e na cama redonda entregaram-se à desenvolta lambança de que, na moldura quadrada de sua vida conjugal, jamais tinham sido capazes. Chegaram mesmo, se me permitem descer a tais detalhes, a fazer uso daquela coisa – poltrona? cadeira? – de metal laqueado, com jeito de instrumento de tortura mas concebida com objetivo oposto, para, como numa academia de ginástica, diversificar as posições e, de quebra, revelar talentos circenses ao sabor do mais descabelado Kama-Sutra. Trataram-se, enfim, com guloseimas eróticas que na vigência do casamento só haviam saboreado nas respectivas puladas de cerca.
Quem mandou? Daí a pouco estavam os dois na via-sacra das imobiliárias, ao mesmo tempo que iam recompondo a tralha doméstica. 
No fogaréu novamente aceso da paixão, esqueceram-se por completo dos trâmites do divórcio, e foi com genuíno espanto que um dia receberam, em seu separódromo (chamemos assim a esses flats aonde vão dar tantos náufragos de separações), uma notificação para comparecerem perante o juiz. Não sabiam que bastava ignorar o papelucho: tementes à lei e à polícia, acharam que estavam obrigados a ir, e assim fizeram, circunspectos, num começo de tarde. Não tão circunspectos que não pudessem antes almoçar nas imediações do Fórum, com todas as caipirinhas a que têm direito os apaixonados, de forma que estavam alegrinhos quando se viram diante do juiz, o qual enveredou por uma discurseira edificante. O amor. A árdua construção do amor. O casamento. Os filhos, abençoados frutos dessa união. 
Neste ponto do recitativo, o divorciando – criemos o termo – se manifestou:
– Taí, o senhor me convenceu. Não vou separar não.
Como nos velhos romances, o meritíssimo franziu o sobrolho: como assim?! – reagiu – e, com a severidade da toga, sacudiu advertência na ponta do dedo: 
– O senhor pense bem no que está fazendo! 
*
A vingança
O marido era o chato integral, chato full time, e ninguém soube disso melhor do que a mulher, hoje uma viúva não apenas conformada como incontrolavelmente aliviada.
Entre mil rabugices, ele não admitia que ela fosse comprar sapatos sem a sua companhia, tão certo estava dos propósitos lascivos do vendedor. Só ele, esposo, podia pegar no seu pé – e não fazia outra coisa, mas apenas em sentido figurado. Pouco importava se o andar do tempo houvesse enchido aqueles mimos de joanetes e calosidades: para o marido, não havia no mundo nada mais apetecível aos olhos de outros machos, sobretudo aqueles que trabalham em sapatarias.
Já eram avós quando ele sofreu derrame cerebral, e derramado ficou até o fim. Da poltrona onde o instalaram, mudo para sempre, não desistiu de seguir controlando, com o laser de seu olhar implacável, a mulher, os filhos, a empregada e o cachorro.
Como houvesse providências a tomar, a mulher reuniu coragem para fazer o que ele nunca permitira: mexer nos seus guardados.
Da gaveta do criado-mudo saltou a confirmação do que ela no fundo já sabia, mas, orgulhosa, se recusava a admitir: uma família paralela, completa e equipada, com tudo o que isso significa, do aluguel do apartamento ao certificado de garantia da batedeira de bolo, passando pelas prestações de viagem de alguma filha a Bariloche. A mesma, talvez, com quem ele, empertigado, aparecia dançando numa foto de baile de formatura.
O guarda-roupa, com seu hálito pesado de décadas passadas, guardava surpresa ainda melhor que a família paralela: lá no fundo, atrás dos jaquetões, havia, cuidadosamente empilhadas, dezenas de barras de chocolate. E nem era do amargo, o único que ele aceitava morder, relutante, pois dizia que prazeres dessa natureza predispunham corpo e alma a concessões mais perigosas. 
Chocolate ao leite, e do melhor!, arregalou-se a esposa, para em seguida regalar-se na lenta, lambuzada, sensual devoração de uma barra inteira, sentada em frente à poltrona onde ele jazia, não sem antes descalçar os sapatos e liberar os pés, aqueles pés que homem algum, marido ou vendedor, jamais tocara.

Allan Sieber


O casamento é uma necessidade ou um luxo? - Jiddu Krishnamurti

J.Krishnamurti - Bombay, 1948

Examinemos o problema, a questão. Porque casamos? Primeiro, obviamente, devido à biológica necessidade, o ímpeto sexual, que a sociedade legalizou com o casamento. A sociedade quer proteger a criança de modo a não serem ilegítimas, porque olha para essas crianças com desdém. Sendo assim, legaliza-se o casamento. Mas certamente essa não é a única razão porque casamos. Devido às exigências psicológicas, por esse motivo, casamos. Eu preciso de um companheiro, alguém que eu possa possuir, dominar, alguém a que possa chamar meu. Posso fazer com a minha mulher aquilo que entender, ela é subordinada do homem – neste país que é a Índia, não na América. Aqui, o sistema do casamento fez da mulher uma escrava, para ser protegida, controlada, dominada, possuída. Não olhem para os outros senhores, todos estão envolvidos nisso. A mulher é uma possessão, assim como possuo uma propriedade, assim possuo a minha esposa. Possuo-a sexualmente e domino-a superficialmente.

Psicologicamente, possuir dá-me conforto, segurança: a minha propriedade, a minha mulher, os meus filhos – o horror disso tudo. Tratamos os seres humanos como se fossem materiais, sem consideração alguma, porque, assim que possuo legalmente, encontram-se debaixo meu domínio.

Então, a sociedade legaliza o casamento com o intuito de perpetuar a raça, para segurá-la sob determinados limites; mas psicologicamente, internamente, posso fazer aquilo que me apetecer. Vocês conhecem toda essa coisa que acompanha a existência, os horrores, as agonias, as misérias, aqueles que são casados e que não se amam. Como pode haver amor se existe a vontade de possuir? E se não casarem, o que acontece? Tenho visto isso em muitos países; existe aquilo a que se pode chamar casamento por conveniência. Não fiquem chocados. Se não existe amor, o casamento por conveniência revela ser um bom motivo, um escapismo para o apetite sexual e irresponsabilidade.

Então, sem amor, ambos são um horror. Mas a sociedade não quer saber, não quer saber, se existe amor ou não; e como a maior parte de nós está tão concentrada, absorvida com tanto interesse no seu negócio, emprego, seja ele de qualquer natureza, em ganhar dinheiro ou seja lá o que for impiedosa e cruelmente, assim também no mundo, como pode assim haver amor por alguém no lar? Não se pode, por um lado, explorar o vizinho, até ao tutano, sugar tudo dele, para depois ir para casa e ser afectuoso para com a mulher. Não senhores, não se pode fazer ambas as coisas.

Mas é isso mesmo que estão a tentar fazer e é por causa disso que não há amor. É por isso que o casamento em qualquer parte do mundo é uma irresponsabilidade miserável.

O casamento é também uma forma de auto-perpetuação. Eu quero continuidade através dos meus filhos. Assim sendo, os filhos revelam-se muito importantes, não por eles mesmos, mas para a minha própria continuidade – o meu nome, a minha classe, a minha casta. Vocês conhecem essa realidade.

E naturalmente, quando se está meramente a usar os filhos para a própria continuidade, não há amor.

Como pode haver amor se estão mais interessados na própria continuidade através deles, do que a amá-los, como eles são?

Assim, a tradição e o nome são mais importantes, porque eles são os meios de se perpetuar através da descendência.

Para compreender este problema, para descobrir o que está envolvido, temos que o estudar, mergulhar no assunto. Ao estudar surge a inteligência, e só a inteligência e o amor podem lidar com este problema, não a mera legislação.

No momento em que possuo uma pessoa, ela torna-se uma prostituta; isto é, a pessoa é mais importante, não por ela, mas porque eu mesmo estou vazio, com fome, feio, sou insuficiente, pobre, então eu uso a outra pessoa – a minha mulher, o meu empregado, o que quer que seja – para esconder o meu vazio interno.

Assim, o possuído, revela-se muito importante como um meio de escapar à minha própria solidão, e naturalmente cresce o ciúme e a inveja quando o outro, que me ajuda a escapar de mim mesmo, olha para outra pessoa.

Para compreender, todo este processo humano, que é extremamente complexo e subtil, tem de haver inteligência. Inteligência é também amor e não meramente o intelecto; e não há amor se por um lado somos impiedosos no nosso emprego e nas relações da vida do dia a dia, e por outro tentarmos ser gentis, carinhosos e misericordiosos.

Não se pode ser ambas as coisas, não se pode ser um rico ambicioso e ser carinhoso e gentil. Não se pode ser o comandante de uma indústria ou um importante político e ser misericordioso. Ambos não se complementam, não se dão um com o outro. E é apenas quando há amor, carinho, misericórdia, tolerância – que é inteligência, a mais alta forma de inteligência – que este problema é resolvido. Somos seres humanos, quer sejamos homem ou mulher, estamos vivos, somos sensíveis, não somos chão para sermos pisados, usados sexualmente ou mentalmente para autogratificação. No momento em que olhamos uns para os outros como seres humanos, como indivíduos, não como algo para ser possuído, então existe uma possibilidade de compreensão e de ir além do conflito que existe entre duas pessoas no casamento.





Livro: O Nome do Jogo- Will Eisner

Resenha:
Cenas de um casamento - Ingmar Bergman
http://filmescult.com.br/cenas-de-um-casamento-1973/

Uma mulher descasada -  Paul Mazursky


Casamento Grego -  Joel Zwick

Um comentário:

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...