O menino
parou para ver o homem, caído na calçada da farmácia. Depois me perguntou: por
que todos os negros são pobres?
Nem todos são
pobres, eu disse, mas são os mais pobres da nossa população.
“Por quê?”
Como explicar
a escravidão para uma criança de 9 anos? Falei como pude do tráfico de escravos
da África para o Brasil e do trabalho escravo durante mais de três séculos;
disse que, depois da proibição do tráfico e da lei que os libertou, a imensa
maioria dos brasileiros de origem africana não pôde estudar. Contei ao menino
que algo parecido tinha acontecido com os índios, com uma diferença: os índios
viviam aqui havia uns cinco mil anos, mas foram escravizados do mesmo jeito.
Milhares de índios foram assassinados, ou morreram de doenças transmitidas por
pessoas que invadiam e roubavam as terras indígenas. Disse que isso ainda
acontece em vários Estados brasileiros; depois, eu mostraria esses lugares no
mapa do País.
Pensei em
falar de um senador facinoroso: um ex-presidente da Funai que, no final dos
anos 1980, permitiu e estimulou a entrada de garimpeiros no território
ianomâmi. Mas desisti, pois teria que explicar ao menino o significado de
senador, facinoroso, presidente, Funai, povo ianomâmi.
Além disso,
eu estava ansioso para encontrar uma caixinha de analgésico nas prateleiras da
farmácia; mas a criança não saía da calçada, o olhar deitado no homem caído. De
repente, perguntou se o pai daquele homem velho tinha sido um escravo.
Talvez o
bisavô ou tataravô dele. E expliquei o que era um tataravô. Depois, disse: O
teu tataravô materno também era descendente de africano...
A enxaqueca
turvava minha vista na tarde quente e abafada daquele sábado carnavalesco; a
batucada forte animava a avenida, o bairro, o mundo, mas minha cabeça em chamas
pedia uma dose de dipirona e horas de silêncio num lugar escuro.
*
Há poucos
meses, aquela criança, agora um rapazote de quase 13 anos, me disse que uma
professora de ciências humanas estava ensinando o assunto da escravidão. Me mostrou um mapa do mundo e outro do Brasil,
fotografias de escravos (africanos e índios) e citou poemas e textos que tinha
lido na escola.
“É mais ou
menos o que você disse naquela tarde de enxaqueca.”
Ver um
brasileiro caído e falar da escravidão, dos milhões de desvalidos e quase
escravos de hoje, da exploração e da persistente e vergonhosa desigualdade
social pode ser uma abstração. Lembrei aquela tarde de carnaval e cefaleia na
calçada de uma farmácia pretensamente asséptica, o branco da iluminação e da
porta automática, em contraste com o mendigo no chão. Esse contraste (nossa
maior indignidade) gerou uma inquietação na criança de 9 anos, uma recusa a
olhar passivamente o homem na calçada. Recordei também uma frase de Riobaldo, o
jagunço letrado do romance Grande Sertão: Veredas:
“Obedecer é
mais fácil do que entender”.
Obediência é
submissão e passividade: morte do pensamento. Daí a importância de uma escola
que seja capaz de ensinar as múltiplas mediações entre o indivíduo (um homem
caído) e a sociedade.
Não mencionei
nada disso ao adolescente, pois ele vai assimilar ou descobrir essas mediações
em sua própria escola. Tampouco disse que um dia ele deveria ler O
Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, os ensaios de Alberto Costa e Silva sobre a
África, a novela Coração das Trevas, de Conrad, e A Queda do Céu – Palavras de
Um Xamã Yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert.
Mas, quando
lhe mostrei esses livros, percebi que curtiu a capa do volume A Queda do Céu:
um belo rosto indígena de perfil, olhando para cima, para o céu que pode
desabar...
Abri uma
página do longo e comovente depoimento do xamã ianomâmi Davi Kopenawa e li:
“Quando eu
era mais jovem, costumava me perguntar: ‘Será que os brancos possuem palavras
de verdade?’. ‘Será que podem se tornar nossos amigos?’ Desde então, viajei
muito entre eles para defender a floresta e aprendi a conhecer um pouco o que
eles chamam de política. Isso me fez ficar mais desconfiado! Essa política não
passa de falas emaranhadas. São só as palavras retorcidas daqueles que querem
nossa morte para se apossar de nossas terras...”.
A travessia de “Riobaldo Rosa”, no Grande sertão: veredas, como um processo de individuação
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942006000300007
http://www.cafehistoria.com.br/professora-disponibiliza-atividades-pedagogicas-sobre-povos-indigenas-para-uso-em-sala-de-aula/
https://www.facebook.com/festivaldehistoria/posts/1385272228207396
http://www.cafehistoria.com.br/professora-disponibiliza-atividades-pedagogicas-sobre-povos-indigenas-para-uso-em-sala-de-aula/
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