quarta-feira, 3 de maio de 2017

Luis Fernando Verissimo - Crônicas sobre Adão e Eva



Obra: Max Svabinsky - In Paradise (1918)




A terceira sensação humana 

E Deus viu que eu me entediava, pois do que valia ser um rei no meu jardim sozinho, sem ter com quem compartilhar o Paraíso? Ou sem ninguém para me invejar? E então Deus, que já tinha criado o tempo, criou o passatempo, e me encarregou de dar nome às coisas. Eu vi a uva, e a chamei de parmatursa. Eu via a pedra e a chamei de cremílsica, e ao pavão chamei de gongromardélio, e ao rio chamei de... Mas Deus me mandou parar e disse que cuidaria daquilo, e me instruiu a procurar o que fazer enquanto terminava de criar o Universo, pois os anéis de Saturno ainda estavam lhe dando trabalho. E eu me rebelei e perguntei “Fazer o que?” e viu Deus que, além do Homem, tinha criado um problema.
*
E perguntou Deus o que eu queria, e eu respondi: “Sabe que eu não sei?” E Deus disse que tinha me dado uma vida sem fim, e um jardim de prazeres digno de um rei para viver minha vida sem fim, e frutas e peixes e pássaros de graça e dentes para comê-los, e mel de sobremesa, e que eu esperasse para ver que espetáculo, que show de bolas, seria o Universo quando ficasse pronto. Tudo para mim. Só para mim. E não bastava? Não bastava. “Eu pedi para nascer, pedi?” disse eu. E Deus suspirou, criando o vento. E pensou: “Filho único é fogo”.
O que eu queria? Queria outra pessoa. Era isso. Queria uma segunda pessoa. Queria um interlocutor. Um irmão, alguém para chamar de “tu”e com quem chamar o Senhor de “ele”. Ou “Ele”. E que quando Ele chamasse de vós, responderíamos em uníssono “nós?” . E quando se referisse a nós para os anjos, dissesse “eles”. Criando outra pessoa, Deus estaria, para todos os efeitos gramaticais, criando cinco. 
*
E Deus fez a minha vontade, e me pôs a dormir, e quando acordei tinha um irmão ao meu lado, tirado do meu lado. Igual a mim em todos os aspectos. Espera aí, em todos não. Deus, com a cabeça nos anéis de Saturno, não prestara atenção no que fazia e errara a cópia. Colocara coisas que eu não tinha e esquecido coisas que eu tinha, como o pênis, que se dependesse de mim se chamaria Obozodão. Deus se ofereceu para recolher a cópia defeituosa e fazer uma certa mas eu disse “Na-na-não, pode deixar”. Pois tinha visto que era bom. Ou boa. E fui tomado de amor pelo outro. A segunda sensação humana, depois do tédio. 
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Ela era o meu tu, eu era o tu dela. Juntos, inauguramos vários verbos que estão em uso até hoje. E eu a chamei de Altimanara, mas Deus vetou e lhe deu outro nome. E quando ela perguntou como era o meu nome, respondi “Mastortônio” mas Deus limpou a garganta, inventando o trovão, e disse que não era não. Ficou Adão e Eva (eu Adão, ela Eva) aos olhos do Senhor e na História oficial. Mas, em segredo (isto pouca gente sabe), nos chamávamos de Titinha e Totonho. E foi ela que disse “Totonho, quero que tu me conheças mais a fundo”. E eu: “No sentido bíblico?” E ela: “Há outro?” E inauguramos outro verbo. 
*
E foi ela que me ofereceu o fruto da Árvore do Saber, a que Deus tinha me dito para nunca tocar mas colocado bem no meio do Paraíso, vá entender. Resisti, embora a fruta fosse rubicunda (uma das poucas palavras que consegui inventar, driblando a fiscalização do Senhor) e ela a segurasse contra o peito, como um apetitoso terceiro seio. Se comêssemos daquela fruta, perderíamos a inocência e nos tornaríamos mortais. “Em compensação...”, disse a Titinha. Em compensação, o que? Só saberíamos se comêssemos a fruta. E fomos tomados de curiosidade. A terceira sensação humana. A fatal.
*
Quando soube da nossa transgressão, Deus deu um murro na Terra, criando o terremoto, e nos expulsou do nosso jardim. E durante todos estes anos muitas pessoas têm me perguntado (pois depois disso a Terra se encheu de muitas pessoas) se valeu a pena trocar meus privilégios de primeira e única pessoa pelo prazer de conjugar com outra, e o meu tédio pelo envelhecimento e a morte, e a minha inocência eterna pelo saber fugaz. E sabe que eu não sei?
*
E, claro, sempre tem o gaiato que pergunta: “Fora tudo isso, que tal era a fruta?”

Will Tirando


Laerte


João Bosco Azevedo
    


Caco Galhardo


Suzart


Rafael Corrêa

Cellus





Filhos


Tem a história daquele pai que concebeu dois filhos, Adão e Eva. Naquele tempo, não precisava mãe. O pai fez o que pôde pelas crianças. Elas tinham tudo, nunca lhes faltou alimento ou agasalho. Se queriam um cachorro ou um macaco para brincar, o pai fazia.
Se queriam uma pizza, o pai criava, ou mandava buscar. Se queriam saber como era o mundo lá fora, o pai dizia que não precisavam saber. Eles não eram felizes não sabendo nada, ou só sabendo o que o pai sabia por eles? A felicidade era não saber. As crianças eram felizes porque não sabiam.
Adão ainda era acomodado, mas a Evinha... Um dia, o pai a pegou descascando uma banana. Nem ele sabia o que a banana tinha por dentro, mas a danada da menina descobriu e, antes que ele pudesse dizer “Dessa fruta não co...”, ela já tinha comido. E gostado.
Foi então que ele decidiu impor sua autoridade paterna, pelo menos na área dos hortifrutigranjeiros, e determinar quais frutas do jardim podiam e não podiam ser comidas, e escolheu uma fruta como a mais proibida, pois se comesse dela a menina saberia. Saberia o quê? O pai não especificou. Só disse que o que ela saberia seria terrível, e que depois não se queixasse.
Eva comeu da fruta mais proibida, claro, e o pai foi tomado de grande tristeza. E disse a Eva que agora ela sabia o que não precisava saber, e que nunca mais seria a mesma.
– O que eu sei de tão terrível que não sabia antes? – perguntou Eva, ainda mastigando a fruta proibida.
– Que você pode desobedecer. Que você pode escolher, e pensar com a própria cabeça, e me desafiar.
E então o pai disse a frase mais triste que um pai pode dizer a um filho:
– Que você não é mais uma criança.
E Eva cresceu diante dos olhos do pai, e no momento seguinte já estava dizendo que queria morar sozinha, e fazer bolsa de inglês em Nova York, e saber como era o mundo lá fora. E Deus disse que ela podia ir, e que levasse o palerma do Adão com ela. E que os dois jamais voltassem e pedissem sua ignorância de volta.




Frank e Ernest - Bob Thaves

NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES







Autocrítica


E saiu Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de Node, a leste do Éden. E conheceu Caim a sua mulher, e ela... Epa. Como, “conheceu Caim a sua mulher”? De onde saiu essa mulher, se Caim e Abel (e depois Sete) eram os únicos filhos de Adão e Eva, até então o único casal do mundo? A mulher de Caim era filha de quem? Esse é o primeiro “epa” que ocorre a quem lê a Bíblia como literatura.
A própria importância dada a Caim e a sua prole (Jabal, o pai dos que habitam em tendas e criam gado, Jubal o pai de todos que tocam harpa e órgão, Tubalcaim, mestre de todo trabalho em cobre e ferro etc.) no começo do relato bíblico é intrigante. Tem-se a impressão de que Caim e seus descendentes é que levarão adiante a história das gerações de antepassados de Noé. Mas não, logo em seguida se sabe que virá da sucessão de Sete a genealogia de Noé, e Caim e seus descendentes desaparecem da história. É como se Deus tivesse escolhido um personagem para inaugurar a narrativa humana sobre a Terra, Caim, pensado melhor e mudado de ideia. Caim fica só como o primeiro assassino. Uma figura interessantíssima desperdiçada. E o maior enigma de Gênesis.
Ninguém nega a Deus a mesma liberdade de um autor de novelas para dispor de personagens de acordo com as conveniências da trama. De matar personagens e até de tirá-los do nada, como fez com a mulher de Caim. Mas a história de Noé e do Dilúvio revela um Deus ainda mais moderno e humano, e mais parecido com um escritor: um Deus com autocrítica. Poucos se dão conta (é o segundo “Epa” da leitura) de que, com o Dilúvio Universal, Deus apaga toda a primeira parte de Gênesis, que passa a servir apenas como os antecedentes de Noé, este, sim, o Adão que vale, e de sua família, esta, sim, a verdadeira inauguradora da narrativa humana sobre a Terra. Deus renega a sua obra até ali e começa outra. Estava tudo errado, e, diz a Bíblia, “arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a Terra, e pesou-lhe em seu coração”.
Foi um Deus arrependido que mandou o Dilúvio. E, quando as águas baixaram, abençoou Deus a Noé e a sua mulher, e a seus filhos e a suas noras, e disse o mesmo que já tinha dito a Adão e Eva: “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a Terra”. E embora a Bíblia não conte, Deus teria acrescentado: “Certo, desta vez”.
O Deus arrependido da Bíblia ficou como precursor de todos os que decidem começar de novo, de todos os que dizem “pensando melhor” e voltam atrás e fazem melhor, ou pelo menos outra coisa, e, mais perigosamente, de todos os que dizem coisas como “é preciso um cataclismo para mudar tudo e dar um jeito neste país”. E, claro, para os escritores que deletam tudo o que fizeram, reinventam personagens e tentam outra vez, e outra vez, e outra vez...




 Fernando Gonsales




Em algum lugar no Paraíso

O tempo não tem pontos fixos, o tempo é uma sombra que dá a volta na Terra. Ou a Terra é que dá voltas na sombra. Nossa única certeza é que será sempre a mesma sombra — o que não é uma certeza, é um terror.
Na nossa fome de coordenadas no tempo nos convencemos até que dias da semana têm características. Que uma terça-feira, por exemplo, não serve para nada. Que terça é o dia mais sem graça que existe, sem a gravidade de uma segunda — dia de remorso e decisões — e o peso da quarta, que centraliza a semana (pelo menos em Brasília), ou a concentração da quinta, ou a frivolidade da sexta. Gostaríamos que passar pelos dias fosse como passar por meridianos e paralelos, a evidência de estarmos indo numa direção, não entrando e saindo da mesma sombra. Não passando por cada domingo com a nítida impressão de que já estivemos aqui antes.
Já que não há coordenadas e pontos fixos no tempo, contentemo-nos com metáforas fáceis. O novo milênio se estende como um imenso pergaminho à nossa frente, esperando para ser preenchido. Podemos escolher nosso destino, desenhar nossos próprios meridianos e paralelos e prováveis novos mundos. É verdade que a passagem do tempo não se mede apenas pelo retorno dos domingos, também se mede pela degradação orgânica, e que a cada domingo estaremos mais perto daquela outra sombra, a que nunca
acaba, suspiro e reticências. Nenhum de nós chegará muito longe no novo milênio.
(Minha meta é chegar à Copa do Mundo de 2014, o que vier depois é gratificação.) Mas é bom saber que o novo milênio está aí, quase inteiro, à nossa espera.
Nada a ver — ou tudo a ver, sei lá — mas feliz era Adão, o primeiro homem. Não porque estava no jardim do Paraíso, com tudo em volta para saciar sua fome e sua sede, mas porque não sabia do tempo e da morte. Vivia num eterno presente, num eterno domingo.
O que vinha depois da passagem da sombra da noite não era o dia seguinte, era o mesmo dia, ou até o dia anterior, quem se importava? Adão, sozinho no Paraíso, era um homem feliz porque era um homem sem datas. Mas quando Deus colocou Eva ao lado de Adão, a primeira coisa que ela perguntou, ainda úmida da criação, só para puxar assunto, foi: “Que dia é hoje?”, e ele sentiu que sua paz terminara. Ele era um homem no tempo. Um homem com um ontem e um amanhã, e um futuro estendido à sua frente como um
imenso pergaminho, esperando para ser preenchido. O tempo não foi a única novidade trazida por Eva ao jardim do Paraíso. Foi ela que, dias depois, colheu o fruto proibido, que os tornou, de uma só mordida, sexuais e mortais. E foi depois de comer o fruto proibido, quando a Terra entrou na sombra da noite e os dois se deitaram lado a lado, que Adão sentiu seu membro, que ele pensara que fosse só para fazer xixi, se mexer. E avisou a Eva:
— É melhor chegar para trás porque eu não sei até onde este negócio cresce.
Depois de ganhar uma mulher e descobrir o tempo e sua mortalidade, Adão descobriu seu próprio corpo. Que semana!

Carlos Ruas






Comunicação  


Casais com problemas de comunicação têm um antecedente antigo. Adão e Eva, segundo Genesis.
Pode-se imaginar o clima quando Adão acordou e levou dois sustos: estava sem uma costela e com uma mulher. Especula-se que os dois levaram dois dias para se falar. Para começar, não tinham sido formalmente apresentados. E que assunto poderiam ter, naquele primeiro encontro?
– Como foi seu dia?
– Nem me fale. Até a hora da sesta estava tudo normal. Depois eu sofri uma cirurgia e mudei de estado civil e a população da Terra duplicou, tudo em questão de horas.
– E eu? Há horas eu nem existia. Agora estou aqui, mulher feita, nua e falando aramaico.
Minha tese é que Adão e Eva só se falaram no terceiro dia, e assim mesmo porque Adão foi levado por uma necessidade premente.
– Me coça atrás?
E Eva coçou suas costas, e Adão finalmente compreendeu os desígnios do Senhor ao criar a mulher. Embora nos anos que se seguiram não fossem poucas as vezes em que pensou em dizer a Deus que preferia sua costela de volta.
Quando passaram a ter assunto, Adão e Eva despertaram o ciúme de Deus.
Porque tinham uma coisa em comum da qual Deus não compartilhava: a humanidade, suas glórias e suas misérias. Os banhos de riacho e o medo do escuro, o cafuné e o furúnculo. E Deus providenciou o pecado para ter um motivo nobre para expulsá-los do Paraíso, já que não podia só alegar tagarelice. E quando a prole de Adão e Eva deu sinais de entendimento, pois falavam a mesma língua e celebravam a mesma humanidade, Deus decretou a destruição de Babel e a confusão das línguas. E assim duas vezes usou Deus o demônio para criar a desarmonia entre os homens. Primeiro na forma da Serpente. Depois na forma do Mau Tradutor.
Mas tudo que é humano quer se comunicar. Sem a mulher, Adão arranjaria outro jeito de coçar as costas. Talvez encontrasse até uma maneira de se reproduzir sozinho. Afinal, anos depois, um descendente seu inventou o xerox. Quando Deus lhe deu a mulher não lhe deu uma fêmea, uma companheira ou alguém para cuidar das suas camisas. Deu o que ele precisava para progredir, a precondição para o autoconhecimento e a razão, sem falar na literatura.
Um interlocutor.

Bob Thaves


 
Orlando Pedroso



Quino 

Vaccari 


Coça-coça


Ele: — Me coça atrás?
Ela: — Aqui?
— Um pouco mais para a direita.
— Aqui?
— Para a direita. Para a direita!
— Calma. Aqui?
— Aí, aí. Um pouco mais pra cima.
— Assim? — Aí!
— Pronto.
— Agora um centímetro pra baixo.
— Você acha que eu não tenho mais o que fazer?
— Benzinho, só mais um pouquinho.
— Tá bom... Assim?
— Pra cima!
— Não precisa gritar.
— Eu não estou gritando. É que você...Aí. Bem aí. Agora coça.
— Assim?
— Aaahn... Sim, sim...Maravilha...
— Chegou?
— Não. Mais um pouquinho.
— Chegou.
— Não para. Você não sabe que este é o momento de maior intimidade de um casal? Mais do que o sexo, mais do que tudo? A fêmea coçando as costas do macho. Não é bonito isso?
— E o macho coçando as costas da fêmea?
— Também é bonito. Menos comum, mas bonito. Não para! E tem sido assim desde sempre. Desde a pré-história. Nós ainda éramos macacos e um coçava as costas do outro. As fêmeas catavam piolhos no pelo dos machos — e comiam os piolhos! Não é lindo? Comiam os piolhos. Isso é que é amor.
E você ainda se queixa porque eu só peço para você me coçar as costas. Não estou pedindo que cate piolhos. Coçar as costas do parceiro ou da parceira foi o primeiro gesto de solidariedade e empatia do mundo. A civilização partiu daí. Mais pra cima um pouquinho. Aí, aí! Deus não criou Eva para que Adão tivesse companhia no jantar e os dois eventualmente procriassem. Deus criou Eva para coçar as costas de Adão.
— Chega.
— Só mais um pouquinho. A estabilidade de um casamento pode depender da disposição da mulher para coçar as costas do marido. Para catar os seus piolhos, metaforicamente falando.
— Vem com essa...
— Você não acredita? Sei de homens que recorrem a amantes para coçar suas costas. Tem sexo com a mulher mas procuram uma intimidade maior com amantes que cocem as suas costas. Na prospecção de possíveis amantes o que mais conta para o homem não é a beleza do rosto ou das formas, e o comprimento das unhas. Sabia? Não para! A recusa da mulher a coçar as costas do marido é motivo para divórcio em qualquer tribo ou sociedade avançada do pla... Mais para a direita!
— Sabe de uma coisa? Vá arranjar outra para coçar as suas costas. Pode arranjar. Só não traga para dentro de casa.
— Benzinho... 
— Pra mim, chegou!

André Dahmer

Estela May

ADÃO ITURRUSGARAI





 Venes









Imagine por um momento que Deus criou o gato à sua imagem e semelhança
Eu te amo, Eu te amo de Alain Resnais (trecho)

Filhos

Os filhos nunca acreditam que crescer é perigoso. Não adianta avisar para continuarem crianças. Eles crescem e vão embora. E depois se queixam. 
Tem a história daquele pai que concebeu dois filhos do barro, Adão e Eva. Naquele tempo não precisava mãe. O pai fez o que pôde pelas crianças. Elas tinham tudo, nunca lhes faltou alimento ou agasalho. Se queriam um cachorro ou um macaco para brincar, o pai fazia. Se queriam uma pizza, o pai criava, ou mandava buscar. Se queriam saber como era o mundo lá fora, o pai dizia que não precisavam saber. Eles não eram felizes não sabendo nada, ou só sabendo o que o pai sabia por eles? A felicidade era não saber. As crianças eram felizes porque não sabiam. 
O Adão ainda era acomodado, mas a Evinha... Um dia o pai a pegou descascando uma banana. Nem ele sabia o que a banana tinha por dentro, mas a danada da menina descobriu, e antes que ele pudesse dizer “Dessa fruta não co...” ela já tinha comido. E gostado. Foi então que ele decidiu impor sua autoridade paterna, pelo menos na área dos hortifrutigranjeiros, e determinar que frutas do quintal podiam e não podiam ser comidas, e escolheu uma fruta como a mais proibida de todas, pois se comesse dela a menina saberia. Saberia o quê? O pai não especificou. Só disse que o que saberia seria terrível, e que depois não se queixasse. E Eva comeu da fruta mais proibida, claro, e o pai foi tomado de grande tristeza. E disse a Eva que agora ela sabia o que não precisava saber, e que nunca mais seria a mesma.
– O que eu sei de tão terrível que não sabia antes? – perguntou Eva, ainda mastigando a fruta proibida.
– Que você pode desobedecer. Que você pode escolher, e pensar com sua própria cabeça, e me desafiar. 
E então o pai disse a frase mais triste que um pai pode dizer a um filho:
– Que você não é mais uma criança.
Eva cresceu diante dos olhos do pai, e no momento seguinte já estava dizendo que queria ir morar sozinha em São Paulo ou apreender inglês em Miami e saber como era o mundo lá fora. E o pai suspirou e disse que ela podia ir, e que levasse o palerma do Adão com ela.
E que os dois jamais voltassem e pedissem a sua ignorância de volta. 
Quando contou esta história a outro pai, no clube, o pai abandonado ouviu do outro que sua história não era nada.
– Pior aconteceu comigo e com o meu Prometeu. Ele era um ótimo filho. E como me admirava e respeitava! Para ele era eu no céu e eu na terra também. Ele tinha tudo em casa, e eu o protegia com o meu poder. Ele também era feliz e não sabia, ou era feliz porque não sabia. E não é que um dia descobri que ele tinha roubado o meu fogo para dar aos amigos? Logo o fogo, o símbolo do meu poder e da minha autoridade, distribuído entre outras crianças ingratas como cigarros roubados.
– Você o expulsou de casa, como eu?
– Não. Eu sou da escola antiga. Amarrei-o numa pedra, para os abutres comerem o seu fígado. 
– Tem que dar o exemplo...
– Tem que dar o exemplo. Senão, não demora, estarão todos os filhos achando que sabem mais do que nós, e roubando o nosso poder.
– E depois, quando não dá certo, se queixando.
– Exato.

Carlos Ruas


Cartilhas

À ANTIGA: Eva viu a uva. O vovô viu a Eva
MODERNA: O vovô viu Eva vendo a uva.
PÓS-MODERNA: Eva viu a uva vendo o vovô.
CAPITALISTA: Eva vendeu a uva ao vovô.
SOCIALISTA: Eva e o vovô dividiram a uva.
COMPETITIVA: Eva viu a uva primeiro, o vovô ficou sem uva.
SOCIAL-DEMOCRATA: Eva e o vovô acabariam dividindo a uva, mas só depois de um longo processo de conscientização, sem recorrer à violência.
TRÁGICA: Eva tirou a uva da boca do vovô à força e depois engasgou-se com ela, enquanto o vovô tinha um ataque cardíaco.
ERÓTICA: Eva chupou a uva fazendo “mmmm” enquanto o vovô fingia que não via.
AMERICANIZADA: Eva viu the book on the table enquanto o vovô recebia o delivery da uva.
FILOSÓFICA: Eva viu a uva, logo existe. O vovô viu Eva vendo a uva, mas não pode dizer com certeza que viu mesmo Eva vendo a uva ou apenas uma projeção conceitualizada da sua imagem no seu sistema neurológico, o que não comprovaria sua existência.
NOIR: Eva pressentiu a presença da uva na escuridão, mas antes que pudesse virar-se e vê-la sentiu a ponta de uma arma nas suas costas e ouviu a voz do vovô dizendo: “Esta é minha, baby”.
SURREALISTA: Eva ouviu a vulva do vovô.
CULINÁRIA: Eva viu a uva, cortou a uva em pedaços, botou no molho do peixe junto com alcaparras e vinho branco – e o vovô só olhando.
SIMBÓLICA: Eva ver a uva significa a reiteração de um ato de conhecimento do mundo que está na origem da cultura humana. Eva, a primeira da sua espécie; uva, a coisa a ser entendida, a realidade extra espécie que, inaugurando a relação gente/mundo, é precondição para o desenvolvimento das artes fabris e da agricultura e, portanto, da civilização. Já o simbolismo do vovô não é tão claro.
TEATRAL:
Eva – Oba, uma uva.
Vovô – Cuidado.
Eva – Por quê?
Vovô – Você sabe, os agrotóxicos.
Eva –Ora vovô, fazer um drama só por causa de...
Vovô – Não. Conheço gente que comeu uma uva e morreu na hora. Uma uva pode ser tão mortal quanto os punhais que abateram Cesar, na peça de Shakespeare.
Eva – Não vou comer. Só vou olhar.
Vovô – Citando de novo o bardo: também nos envenenamos pelos olhos.
Eva – Shakespeare disse isso?
Vovô – Não sei, mas soa como dele.
Eva – De qualquer jeito, não vou comer.
Vovô – Vou ficar de olho em você, menina.
APOCALÍPTICA: Eva verá a uva, o vovô verá a Eva, e este será o último acontecimento na História do mundo antes de começar a chover enxofre.








Criação

Deus criou o céu e a terra e tudo que continham, embora diga que o rinoceronte não foi ele. E criou o homem, e chamou o homem de Adão, mas o homem não gostou e disse que preferia se chamar Heitor. E Deus viu que tinha criado um problema.

– A criação é minha e sou eu que dou nome a todas as coisas – disse Deus. E acrescentou: – Menos ao rinoceronte, que eu não sei de onde saiu.

– Fred.

– O que?

– Fred. É o nome do rinoceronte.

E Deus viu que precisava criar uma distração para o homem, que ameaçava anarquizar sua obra, e logo no primeiro dia. E, como já tinha criado o Tempo, Deus criou o Passatempo. Uma mulher, que apresentou ao homem.

– Esta é Eva.

– Elvira – corrigiu a mulher.

– Elvira – suspirou Deus. 

*

É preciso dizer que Deus era da velha guarda, que só sabe pensar em mulher como passatempo, ou serva, do homem. E Deus não demorou a descobrir que a mulher era pior do que o homem. Mais opiniática (mudou o nome de tudo, inclusive do Fred, que chamou de Brogadão) e mandona (trocou o nome do homem umas cinco vezes, até decidir que seria Fofice e pronto). E Deus concluiu que, em vez de criar uma solução, criara outro problema.

Era preciso controlar Eva, ou Elvira, ou que nome ela mesmo se dera, antes que ela abrisse uma rede de butiques e acabasse banindo Deus do Éden e tomando o poder. Deus chamou o homem para uma conversa homem a homem. Bolara um plano: convenceriam a mulher a provar a fruta da Árvore do Saber, de onde ela tiraria varias ideias para seus empreendimentos, e a fruta estaria envenenada. Fim da mulher. O que o homem achava do plano?

– Não sei... – disse o homem.

– Como não sabe? Nos livraríamos dela. Isto aqui voltaria a ser um paraíso.

– Ela me chama de Fofice. Entende? De noite, na cama. “Vem, Fofice”. E pede pra eu chamá-la de “sweetie”, que é docinho em inglês. Entende? Docinho, Deus.

E Deus desistiu. Fez a sua mala e emigrou para o Leste do Éden. 











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