quarta-feira, 3 de julho de 2024

Tio Silas e o pequeno fotógrafo - Denise Fraga

 Toda família tem um médico, um padre e um louco. Tivemos os nossos, ainda que fajutos. Nosso médico, não; foi grande clínico e cuidou de nós gratuitamente durante toda a sua vida. Nosso padre não chegou a terminar o seminário e provavelmente esqueceu de rezar por nós criando os seus cinco filhos. E nosso louco comportou-se muito bem, trabalhando na pacata prefeitura de sua pequena cidade. Era meu tio Silas.

Não chegava a ser louco, é difícil estabelecer tal fronteira. Não namorou, não se casou, não teve filhos. Vivia só, em companhia de sua velha mãe, minha avó. Depois que ela morreu, só Deus sabe de sua exata rotina vivendo sozinho na velha casa da cidadezinha mineira, que nos orgulhávamos de não achar no mapa. Lia muito, escrevia sonetos, decorava verbetes do dicionário, ficava dias tomando só leite e mandava escrever com tinta azul textos de grandes filósofos pelas paredes da casa. Fazia verdadeira arquitetura com os números, arregalando os olhos ao descobrir grandes coincidências como que a metade da idade de fulano dava o número da porta de cicrano. Nós, crianças, o achávamos muito engraçado.
Certo dia, caiu no banheiro e, a partir de então, passou a tomar banho de capacete. É mesmo uma imagem para não esquecer a de um tio magrela de toalha enrolada na cintura e capacete na cabeça passando pela sala em direção ao banheiro. Tinha uma letra linda com que escrevia cartas imensas para minha mãe, sua cunhada, talvez a pessoa desse mundo que lhe tenha destinado mais os ouvidos. Lia-lhe novas poesias por horas ao telefone, enquanto ela, com os olhos virados de santa paciência, continuava a nos dar ordens por sinais.
No fim de uma de suas cartas, assinou com um "ósculo santo". Me lembro de, menina, mais me preocupar com o porquê do "santo" do que me alegrar com o significado de ósculo, que corri a buscar no dicionário. Talvez o velho e louco tio Silas fosse mesmo platonicamente apaixonado por minha mãe.
Esta semana, no meio de uma sessão de fotos, o jovem fotógrafo me perguntou:
—Você tem alguma coisa a ver com uma cidade em Minas que se chama Carangola?
Contou que morou alguns anos por lá quando criança e que conversava com um senhorzinho da vizinhança que lhe dizia ser meu tio.
Meu tio Silas ficou perdido no tempo para mim. Depois que minha avó morreu, a força dos dias e a separação de meus pais foram nos afastando e eu nunca mais o vi. Me lembro da notícia de sua morte, mas não era capaz de dizer se, no lusco-fusco de sua sanidade, saberia que sua sobrinha tinha virado atriz e que carregava seu sobrenome por aí. Sim, ele sabia. E contava pro menininho na calçada. Precisei de um lenço para continuar a fotografar.

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