terça-feira, 13 de agosto de 2019

Artes de cama & mesa - Humberto Werneck

"Cada qual com sua manha: uma, para amolecer o feijão, outra para garantir a atenção do Criador."
Grazie, prego.
Feijoada mais completa do que aquela, impossível: tinha até os pais do noivo, distinto casal que a família da noiva iria finalmente conhecer. Gente de certa cerimônia, desconfiava a futura sogra – e toca remexer na panela onde o feijão borbulhava.
O problema era este: borbulhava, mas nada de amaciar. Logo com ela, famosa por sua feijoada, e logo naquele dia, com o risco de fazer feio para os pais do moço! Como é que foi me acontecer uma coisa dessas, meu Deus? – se lamuriava, e cravava o dente em mais um grão obstinado em não amolecer.
Ao lado, a cozinheira saboreava a aflição da patroa, uma ingrata que nas ocasiões especiais, quando poderia brilhar, lhe dava um chega pra lá e assumia o fogão, rebaixando-a a coadjuvante. Quem manda?, tripudiou para si mesma. Mas, diferentemente do feijão empedernido, aos poucos seu coração amoleceu, e ela se dispôs a conceder um de seus segredos de cozinha: 
– O jeito é botar prego – receitou.
Botar prego?! – reagiu madame, horrorizada, como se não conhecesse aquela fulana. Ah, conhecia! Toda cheia de truques e manias, incapaz de fazer pipoca sem batucar na tampa com a colher, desenhando imaginárias cruzes, para não dar piruá – e não sobrava um grão por estourar! Na hora de bater a maionese, aquele ritual de ligar e desligar rapidamente o liquidificador, cinco vezes, para a pasta não desandar – e não desandava mesmo. Já quando era a dona da casa a pilotar o liquidificador...
Católica e instruída, a patroa se irritava com aquela macumbeira cheia de reza braba e simpatias. Fosse apenas a multidão de santos populares lá no quartinho de empregada – mas não, era na sua cozinha! E o pior é que, no fim, invariavelmente dava certo para a danada. Foi por isso que, em desespero de causa, um olho no relógio, outro no caldeirão, lá pelas tantas entregou os pontos e topou a maluquice dos pregos na fervura.
E agora quem comandava, triunfante, era a danada. Catou três pregos meio enferrujados, que lavou mal e mal antes de amarrar em feixe com um barbante – e mergulhou aquilo no feijão. Seja o que Deus quiser, suspirou a patroa.
Mistério para Ele ou a ciência explicar: em pouco tempo estava pronta a feijoada, acondicionada agora na melhor sopeira, louça da Companhia das Índias, triunfante no centro da mesa. O pai do noivo, médico ilustre, não resistiu e avançou o narigão, inebriado.
E não é que, na hora de servir, o feixe de pregos foi desabar, com inconfundível baque metálico, justamente no prato do doutor? Ela vai ver comigo, rosnou para dentro a dona da casa, coberta de vergonha socioculinária. Só relaxou quando o futuro consogro, achando graça no desastre, depois de dar cabo de dois pratos transbordantes, louvou a feijoada e mais ainda as macumbas da cozinheira. Quanto ao feixe de pregos, parece ter servido de exemplo para os noivos, pois anos depois seguem atados um ao outro, felizes da vida.

Fogosa ao pé do fogo

Quando foi atrás de cozinheira, ela não esperava que lhe aparecesse uma exuberante morena de novela, e menos ainda uma jovem como aquela empregada do poeta Paulo Mendes Campos que não só lia Drummond como, ao pedir as contas, surrupiou do patrão um exemplar de A Rosa do Povo com dedicatória. Nestes tempos de apagão, brincava a calejada senhora, estava disposta a conformar-se com alguém de poucas luzes – desde que a candidata atendesse a uns tantos requisitos, a começar por este, eliminatório: 
– Cozinheira tem que ser bem fogosa. 
Nem precisaria explicar:
– Mulher que não está em dia com o sexo não tem gosto pra temperar.
Nesse particular, não há dúvida de que madame acertou na escolha, pois a nova cozinheira, na sua avaliação, tinha bem resolvidas as questões do “hemisfério sul”, cujo mau funcionamento, como se sabe, pode comprometer as coisas cá em cima, no “hemisfério norte”. (Para quem estranha essa cartografia humana, seja dito que a linha do Equador passa em torno da cintura.) 
Não era esse, felizmente, o caso daquela moça, como a patroa pôde constatar já no primeiro papo, ocasião em que a jovem, desinibida, se pôs a reclamar do namorado: 
– Ele não faz volume, a senhora sabe como é? 
(A outra, vivida, sabia muito bem como era, mas não passou recibo.)
Nesse quesito, acrescentou a cozinheira, o atual titular de seu coração e tudo o mais não era páreo para o antecessor: 
– Ah, o outro ficava logo todo enfeitado... – suspirou ela, sublinhando o adjetivo e abrindo as mãos em leque como cauda de pavão, nostálgica sabe Deus de que entreveros carnais. Não que fosse uma devassa – nem havia segundas intenções quando anunciava, em seu português saboroso: 
– Vou no espermercado. 
A moça tinha lá seus momentos de messalina tropical, que tratava de contrabalançar com os antídotos de uma interesseira fé religiosa: com a mesma proficiência com que limpava o fogão depois da janta, apressava-se em passar na alma um detergente espiritual para remover suas sem-vergonhices. 
Aos domingos, com os hormônios em ebulição, botava a melhor roupa, afogava-se em perfume e se jogava no mundo, à procura, vai ver, de um bom “volume” – mas não deixava o dia se fechar sem missa e comunhão, certa de assim estar zerando seu deve/haver junto às Altas Instâncias. Como quem leva o carro a um lava-rápido, submetia a alma a periódicas faxinas, sob a forma de confissões no capricho. Chegava a anotar os pecados num papelzinho que, ajoelhada no confessionário, consultava com um rabo de olho, para não correr o risco de vir a sonegar ao Senhor o menor de seus escorregões morais. 
Apesar disso, um dia se deu conta de que suas preces deixaram de ser atendidas. O que estaria acontecendo? – e a pecadora arrependida se martirizou, até matar a charada: o problema era a superlotação espiritual na casa do Senhor.
– Na igreja tem gente demais rezando – explicou à patroa –, e nisso Deus acaba confundindo.
Desde então, trata de comparecer quando não haja muito movimento, e de pedir audiência privada com o Criador, cuidando sempre de se apresentar, para que o Interlocutor não se confunda: 
– Olha, Deus, aqui é a Maria José, filha do Luís e da Zoraide, neta do Expedito...
Não é que voltou a ser atendida?

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