terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Furacão em Copacabana / Barbas e não barbas - Humberto Werneck

Furacão em Copacabana


Nestes tempos de nerds e startups, fica difícil imaginar as condições para lá de amadorísticas em que surgiu e vicejou, quase 60 anos atrás, um empreendimento vitorioso como a Editora do Autor, marco na história da edição no Brasil, de vida breve mas capaz de fazer a cabeça de uma geração de escribas e leitores. Para que se tenha ideia do grau de improvisação em seus começos, basta dizer que o primeiro lançamento, Furacão sobre Cuba, improvisada coletânea de escritos jornalísticos de Jean-Paul Sartre, levou apenas 7 dias – isto mesmo, uma semaninha – para ser organizado, traduzido, impresso e lançado, com enorme sucesso, no Rio de Janeiro.
Nem Rubem Braga e nem Fernando Sabino, criadores da editora, teriam acreditado, duas semanas antes, naquele furacão editorial sem precedentes, em cujo rastro viriam livros, entre outros, de Drummond, Vinicius, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, João Cabral, Jorge de Lima, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e, claro, de seus editores. 
Rubem, com numerosas seleções de crônicas, e Sabino, com o romance O Encontro Marcado, já eram escritores conhecidos e reconhecidos. O primeiro, contemplativo e de poucas palavras, estava quieto no seu canto, até que Sabino, seu oposto no temperamento, lhe introduziu na cabeça umas indóceis minhocas editoriais. 
Dez por cento sobre o preço de capa dos livros era remuneração curta demais para um escritor, insistia o cronista e romancista mineiro – e, antevendo a caixinha de música que seria o tilintar de moedas na conta bancária, propunha ao Braga: por que não editamos nós mesmos aquilo que escrevemos? A ideia, naquele ano de 1960, lhe viera numa conversa com o jurista Walter Acosta, que se dava bem com um esquema de editar por conta própria seus escritos sobre direito processual penal. 
Cutucado por Sabino, Rubem se animou – e se puseram os dois, e mais Acosta, a formatar (verbo que então nem existia, pois, segundo o Houaiss, só chegou aos dicionários em 1964) a Editora do Autor. Além deles mesmos, mandariam para as livrarias, de saída, obras de amigos como Vinicius de Moraes e Paulo Mendes Campos, que cobriam os respectivos custos. Para tanto, alugou-se espaço no 70 da rua Araújo Porto Alegre, grupo 413. “Acho meio exagerado chamar aquelas salinhas de ‘grupo’”, escreveu o Braga, “mas o Acosta disse que isso dá boa impressão no interior.”
Estavam as coisas ainda meio informes quando, na casa de Jorge Amado, em Salvador, Rubem Braga conheceu Jean-Paul Sartre – e, entre uma birita e outra, na companhia também de Simone de Beauvoir, propôs a ele reunir em livro uma série de artigos que escrevera depois de recente estada em Cuba, onde a Revolução de Fidel e Guevara mal completara um ano no poder. Sartre nem pestanejou seu olho torto: não só deu sinal verde como abriu mão de seus direitos, generosidade que, segundo o Braga, faria dele, do ponto de vista de qualquer editor, “o autor ideal”. 
O cronista, que nas memórias de Simone de Beauvoir é apresentado como “un journaliste de Rio” (melhor do que Sabino, não mais que “um dos amigos” do Braga e “un catholique de gauche”), voou de volta ao Rio, levando aos comparsas a boa nova – mas também um problema: como aprontar o livro a tempo de que o autor pudesse estar no lançamento? 
Os 17 textos de Sartre foram traduzidos no galope, num mutirão para o qual foram mobilizados amigos dos editores, e entregues sem tardança à goela de uma gráfica – tudo, como se disse, em não mais de uma semana. Não se sabe se para encorpar o volume ou pegar carona em Sartre, a Furacão sobre Cuba se acrescentaram reportagens de Braga e Sabino que, meses antes, na comitiva de Jânio Quadros, candidato à presidência da República, tinham visitado a ilha de Fidel.
O livro seguiu direto das máquinas para a noitada de lançamento, dia 17 de setembro, no Super Shopping Center, hoje Shopping Cidade Copacabana, na rua Siqueira Campos, cuja construção ainda nem estava terminada. Houve o sufoco adicional de que, passando já da hora marcada, Sartre não aparecia.
A multidão, impaciente e ruidosa, fora engrossada por um magote de estudantes simpatizantes da revolução cubana. “Estamos fritos”, suava frio Acosta. Sabino, por sua vez, se preocupava com a inexistência de eventual rota de fuga, pois, como contou em crônica três dias mais tarde, os responsáveis pela construção tinham mandado “cercar de tábuas as saídas todas”. Quanto ao Braga, sorrateiramente se escafedera, constatou Sabino, que foi encontrá-lo longe dali, pendurado a um telefone. “Não nos deixe lá sozinhos”, suplicou o sócio, “vem ajudar a aguentar a mão, se acontecer alguma coisa”. 
Felizmente não foi preciso, pois Sartre finalmente deu as caras. Sobre ele, em tietagem frenética, abateu-se a multidão, no que hoje seria um tsunami de selfies. Noite adentro, entre cachimbadas, teve ele que botar seu jamegão em nada menos de 800 exemplares de Furacão sobre Cuba – e não é impossível que, de si para si, tenha confirmado então, na própria pele, sua frase famosa segundo a qual o inferno são os outros.

Barbas e não barbas

Foi dito aqui, na última conversa, que Rubem Braga e Fernando Sabino, na improvisada estreia de sua Editora do Autor, em setembro de 1960, adicionaram escritos seus ao livro Furacão sobre Cuba – coletânea de artigos de Jean-Paul Sartre a propósito de visita que fizera à ilha de Fidel Castro, onde a revolução tomara o poder fazia pouco mais de um ano. Lembrou-se ainda que os dois cronistas também tinham estado em Havana, em março daquele ano, acompanhando, como jornalistas, uma comitiva de Jânio Quadros, então candidato à Presidência da República. Na volta, publicaram suas impressões – Braga na revista Senhor, Sabino no Jornal do Brasil. E, na amalucada aventura de organizar, traduzir e botar na praça – tudo isso em sete dias – a prosa jornalística do filósofo francês, decidiram acrescentar a ela as suas próprias reportagens. 
A crônica da semana passada ateou em vários leitores – sim, os há! – a vontade de saber dos textos que ajudaram a encorpar o lançamento inaugural da Editora do Autor, escritos que, por decisão de Braga e Sabino, não tardaram a desaparecer das reedições de Furacão sobre Cuba. Os motivos da subtração editorial não foram revelados, mas é possível imaginar o que levou a ela. Primeiro, tratava-se de textos jornalísticos, por sua natureza escritos para o dia, para no máximo o mês seguinte. Depois, a radicalização do regime cubano, cada vez mais embicado para a esquerda, pode ter levado os dois cronistas, no início simpáticos à novidade, como tanta gente, a concluir que era hora de tirar o time.
Quase seis décadas depois, quem quiser ler o relato de Rubem Braga terá que garimpar nas hemerotecas a edição de junho de 1960 da Senhor, ou recorrer a uma seleta da revista editada por Ruy Castro para a Imprensa Oficial paulista. O texto, sob título morno – “Cuba: o assunto é revolução” –, não demorou a se cobrir de pátina. Mesmo quando em tinta fresca, aliás, a reportagem quase nada tinha da graça daquele que Stanislaw Ponte Preta apelidou de “O sabiá da crônica”. Talvez um pio no quarto parágrafo, no qual o Braga alfineta Fidel Castro por não ter cumprido a promessa de raspar a barba tão logo tomasse o poder. 
A explicação, arrisca o cronista, poderia estar no fato de que o movimento não estava ainda suficientemente firme nos arreios; e também na constatação de que o jovem (33 anos) Fidel, embora dono de “testa bonita e um invejável nariz grego”, tinha “o queixo curto”, imperfeição da natureza que uma barba viera camuflar, de modo a conferir “dignidade” à cabeça do cabeça da Revolução. 
Tão escaldado quanto cético, Braga observou que Cuba estava sendo “governada por jovens inexperientes”, sendo de admirar que não tivessem praticado “um maior número de tolices”. E reproduziu o que ouvira de um brasileiro estabelecido no país havia décadas: “Você bota um Carlos Lacerda esquerdista de presidente da República e os rapazes da UNE formando o ministério, e terá uma ideia do governo de Cuba”. 
Ao contrário de Rubem Braga, Fernando Sabino, passados alguns anos, não viu problema em exumar sua reportagem cubana – “A revolução dos jovens iluminados” – e incluí-la em livro. Competente editor que era, não o fez sem antes barbear e escanhoar o texto, tosando aqui e ali madeixas que a empolgação da hora fizera por demais assanhadas. Ladino, viu que o assunto renderia mais de uma abordagem, para publicação em diferentes coletâneas de escritos (De cabeça para baixoO gato sou eu e o interessante e pouco lido Livro aberto), nas quais encaixou também histórias colhidas nas franjas da reportagem. 
Dessas, uma das mais saborosas ocorreu numa recepção na embaixada brasileira, durante a qual Fidel conversou com jornalistas. Antes do papo, alguém o convenceu a tirar o cinturão em que levava seu intimidador Colt 45. Mais tarde, nas despedidas, o comandante distraiu-se, e bom tempo se passou até que, longe dali, desse pela falta da arma. 
Uns gatos pingados remanesciam na embaixada quando, sem avisar, Fidel irrompeu no salão. Não encontrando mais que o cinturão, mandou às favas a diplomacia: “Detesto ladrões”, rugiu ele, acrescentando que preferia “levar um tiro a ser roubado”. 
Único jornalista presente no esgarçado fim de noite, Sabino chegou a temer que as suspeitas recaíssem sobre ele. Se isso acontecesse, programou, nada lhe restaria senão sacar a frase célebre de Fidel ao ser condenado, em 1953, pela ditadura de Fulgencio Batista, que ele poria abaixo poucos anos mais tarde: “A História me absolverá!”. 
Nunca se soube quem surrupiou a pistola do timoneiro da revolução cubana – “presente de Che Guevara”, registrou Sabino, “chapeada a ouro na culatra, com o seu nome gravado”. Teria sido a mesma criatura que ele viu catar como relíquia um toco de charuto deixado pelo comandante num cinzeiro? O mistério do Colt 45 se somaria a outro, igualmente insolúvel, o do sumiço de um terno que Jânio Quadros confiou à lavanderia do Hotel Riviera e nunca mais recuperou. 
Em outra ocasião, Sabino por pouco não se meteu numa enrascada. Durante uma coletiva, perguntou a Fidel o que tinha acontecido a Camilo Cienfuegos, romântico herói da revolução, desaparecido na queda de um aviãozinho do qual jamais se encontrou um só destroço. “Esta pergunta é ofensiva aos ideais da revolução”, fulminou o comandante, encerrando abruptamente a entrevista e desafiando Sabino a levar a provocação “ao povo cubano”. Num momento em que a televisão exibia a execução de adversários no paredón revolucionário, o perguntador, mineiramente, achou prudente pôr de molho as barbas que não tinha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...