Estávamos indo à padaria quando vimos a mulher sentada no chão. Negra, jovem, obesa, com sua mochila, mãos no rosto. Ficamos angustiados, mas, na nossa pressa, seguimos reto. Na volta ela estava sentada em outra esquina. Seu rosto era só angústia, Filipe foi perguntar se ela precisava de algo.
Ela nos perguntou o caminho para Loures. Começamos a explicar como se ia de metrô. Ela disse que, não, que era a pé. Dissemos que eram quase 20 km. Ela começou a chorar e perguntou se tínhamos água. Mais de 30 graus, ela toda de preto. Filipe foi comprar uma garrafa. Me sentei no chão ao lado dela.
Seu nome era Ana, 24 anos. Filha de uma angolana e um ganês, cresceu na Inglaterra. Mãe de dois filhos, de 2 e 6 anos, mostrou a foto no fundo de tela de um celular velho. Não tem emprego. Vive num quarto de pensão. O dinheiro acabou e o marido, pedreiro, só volta da obra em Caldas da Rainha na terça.
Não tinha para onde ir com as crianças. Disse que já chegou a dormir com elas uma vez na rua e que assistentes sociais levaram as crianças para um abrigo. Foi seu pior pesadelo. Só poderia pegá-los quando comprovasse que tinha emprego e casa. Tinha pavor de passar por isso de novo. Conseguiu deixar as crianças com uma vizinha para ir até Loures pedir dinheiro a uma amiga. Não tinha dinheiro pro metrô. Pedi que ela ficasse com os 5 euros que eu tinha no bolso. Ela não queria. Eu insisti. Filipe perguntou quanto ela precisava pra poder ficar na pensão até a volta do marido: 25 euros. Ela ia a pé até Loures tentar conseguir 25 euros. Tiramos mais 20 euros do bolso, ela colocou a mão no rosto, chorava, dizia que não podia aceitar. Insistimos. Ela disse que nos pagaria quando conseguisse um emprego.
Depois de uma meia hora conversando, os três no chão, pedimos para que ela fosse caminhando conosco. Trocamos um abraço demorado. No caminho, uma senhora brasileira nos para e pergunta se ela aceita uma ajuda e tira 40 euros da carteira. Ana desata num choro envergonhado, pede o telefone dela para pagar a ela depois. Ela diz que não precisa. A mulher também abraça Ana com calma.
Seguimos caminhando. Ana pergunta se o segurança do shopping a deixaria entrar pra usar o banheiro. Digo: “Ana, você tem 65 euros, ninguém tem que deixar nada, você é uma cliente. Entre e vá”. Ela nos agradece mais uma vez e chora. Diz que hoje vai poder comprar sopa pras crianças.
Voltamos pra casa em silêncio. Nada no nosso dia faz mais muito sentido. Chegamos e fizemos o que deveria ter sido feito há muito tempo: roupas, sapatos, brinquedos, malas, tudo. Tanta coisa que sobra, que não faria falta, que pode fazer falta, mas ser mais bem aproveitada por outras pessoas. Enchemos 5 sacolas grandes. Vamos procurar a Ana. Ou outras Anas – o que mais tem nesse mundo é Ana. É mãe que não come pra dar comida pros filhos. Mãe desesperada. Gente procurando emprego. Gente que vai andar 20 km pra tentar que os filhos não durmam na rua.
A real é que a gente é muito merdinha. Nossas bolsas de marca, nossos pares de sapato excedentes, nossos jantares fora, nossos filhos com seus brinquedos intermináveis. Nossos probleminhas ridículos que transformamos em grandes. Nosso jeito de caminhar na rua, sem olhar pra Ana nenhuma. Desconfiados, apressados, egoístas. Deve ser doida, deve querer dinheiro pra droga, por que não tá trabalhando? Por que teve filhos?
A verdadeira miséria está na gente, que fica mais cega e mais anestesiada a cada dia que passa, gastando em brunch o que poderia evitar a fome da família toda por uma semana. Dizendo que não sabe como ajudar, que não há instituições confiáveis. A gente escolhe todo dia, quando acorda, ser egoísta e dormir em paz. Sei lá, eu não quero mais ser assim não. Amanhã é segunda-feira. Talvez dê pra repensar umas coisas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário