sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Sobre o aborto - Contardo Calligaris / Mariliz Pereira Jorge

Mariza Dias Costa/Folhapress



A questão do aborto - Contardo Calligaris


O Supremo Tribunal Federal está ouvindo argumentos a favor e contra a descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação.
Na Folha de 29/6: de 2008 a 2017, no Brasil, 2,1 milhões de mulheres foram internadas por complicações de abortos clandestinos. O custo para o SUS foi de R$ 486 milhões. Que o leitor calcule o custo da morte, do desespero e do desamparo dessas mulheres.
Essa realidade à parte, tento resumir minha posição:
1. Ninguém é "a favor" do aborto —só se discute para decidir se ele tem que ser considerado um crime ou não;
2. Para alguns, o aborto é um crime contra a vida do feto. Para outros, a interdição do aborto é um crime contra a vida da mulher que engravidou contra sua vontade. Um aborto deixa cicatrizes psíquicas dolorosas na mulher que abortou, mas uma gravidez indesejada e levada obrigatoriamente a termo também deixa cicatrizes dolorosas —na mulher e no seu rebento.
3. A partir de quando há vida (e, para os religiosos, alma)? Para permitir a fecundação in vitro, decidimos que o embrião inicial não é um ser completo e pode ser descartado. A 12ª semana de gestação é o limite aceito nos países onde o aborto voluntário não é crime: tempo suficiente para a mulher descobrir que está grávida e que não deseja ter filhos (não naquele momento ou não com aquele pai).
3. Quem "defende a vida" deve se lembrar que estão em jogo aqui duas vidas: a do feto e a da mulher que engravidou.
Nesta altura da conversa, se não antes, sempre alguém comenta: "Ela devia ter pensado nas consequências antes de transar".
É bom, porque isso me leva imediatamente ao que mais me importa dizer hoje sobre a questão do aborto.
Declaro-me impedido de opinar sobre esse assunto. E acho que qualquer pessoa honesta e instruída deveria se declarar impedida de opinar sobre o assunto: todos impedidos, salvo as mulheres que abortaram ou que estão atualmente procurando um aborto.
Cuidado: não acho que, em geral, só devam legislar as pessoas interessadas na legalização de seus atos passados ou iminentes. Nada disso.
Mas o fato incontestável, no caso do aborto, é que todos, homens e mulheres, há 2.800 anos, absorvemos uma cultura que situa na mulher e no seu desejo a origem do mal, do pecado e da tentação —começou na mitologia grega, com a figura de Pandora, e piorou com a de Eva, na Bíblia judaico-cristã.
Em relação ao desejo feminino, nossa cultura adota várias estratégias de defesa.
Negamos que esse desejo exista e preferiríamos que a mulher se expressasse só na maternidade (sonhamos com uma mãe virgem, e qualquer maternidade nos parece "santa" porque "justifica" a nossa lubricidade —transamos, mas, veja bem, foi para procriar).
Paradoxalmente, para ilustrar a luxúria e sua punição no inferno, a figura que nossa cultura usa é quase sempre feminina. E a luxúria sequer é o fruto da relação da mulher com um homem, mas da mulher com um diabo (como no famoso tríptico "A Luxúria", de Bruegel, o Velho, 1538).
O desejo feminino, caso ele se manifeste, é responsável por nossa própria lubricidade, pois a mulher nos tenta —como o demônio.
Precisamos controlar o desejo feminino —pense na fantasia masculina trivial de ser aquele que "sabe" fazer gozar as mulheres, quanto, quando e como ele quiser.
Se não conseguirmos controlar o desejo feminino, precisamos reprimi-lo: os homens de nossa cultura inventaram sua "inocência" violentando, torturando e assassinando centenas de milhares de mulheres "incontroláveis". Como teria dito Adão: não fui eu, "foi a mulher que me deste por companheira".
Em 2016-17, em Paris, houve uma linda exposição da qual me chegou o catálogo: "Présumées Coupables", presumidas culpadas. Em tese, os humanos são inocentes até prova do contrário, mas as mulheres são CULPADAS até prova do contrário —pois, de partida, elas são a encarnação do mal.
A exposição de Paris propunha centenas de originais de processos contra mulheres —de Joana d'Arc até as criminosas célebres dos séculos 19 e 20. Desfilavam assim as figuras canônicas do desejo feminino culpado: a encantadora, a maléfica, a sedutora e, claro, a infanticida.
Moldados por um ódio plurimilenar ao desejo sexual feminino, que quisemos exorcizar e controlar pela maternidade, como teríamos legitimidade para opinar sobre a criminalização ou não do aborto? Por pudor, meus amigos, declarem-se impedidos.


A culpa é sempre da mulher - Mariliz Pereira Jorge

Parecemos um país civilizado ao discutir se cabe ao Supremo Tribunal Federal descriminalizar o aborto ou se esta discussão deve passar por consulta popular e ser examinada pelo Congresso. Como se as questões centrais para que tal debate aconteça fossem levadas a sério pelo povo e pelos parlamentares. 
No ano passado, deputados aprovaram na surdina uma PEC que criminalizaria o aborto nas situações já previstas em lei. Em 2015, o então deputado Eduardo Cunha apresentou PL que dificultava a compra de pílula do dia seguinte, criminalizava profissionais da saúde e exigia exame de corpo de delito como prova de estupro. Mas o problema não são só os parlamentares mal-intencionados, guiados por interesses religiosos. 
Nesta quarta (1º), a revista Marie Claire fez um post em suas redes sociais em defesa do aborto. É ali, num ambiente feminino, que fica claro que a batalha que precisa ser travada para assegurar que o assunto seja discutido, com argumentos sólidos, talvez esteja perdida. Percebe-se, pelo bate-boca, que há outra questão, além da calamidade que enfrentamos, a ignorância e a falta de solidariedade de parte das brasileiras. 
De novo, ninguém é a favor do aborto, mas de sua descriminalização, por causa do número de procedimentos ilegais, das mortes, do gasto público com as internações decorrentes de intervenções feitas na clandestinidade, do problema social, da saúde da mulher. Tudo é ignorado.  
As razões contra a legalização não eram apenas superficiais, mas egoístas. É só se prevenir. Feto é vida. Aborto é assassinato. Quem mandou abrir as pernas? É só dar pra adoção. Não quer ter filho, não transe. É esse o nível do “diálogo”. A culpa é sempre da mulher.  
Se parte da ala feminina não entende por números a tragédia em curso, poderia ter mais empatia. Vemos o oposto, o desejo que a mulher seja tratada como criminosa. Deveríamos nos unir, mas nos viramos umas contra as outras. Perdemos todas.

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