Sete da manhã de sábado. Pessoas levam seus cachorros para o passeio matinal. Xixis pelas calçadas. Na padaria, sem pressa, leio meu jornal, tomo meu café, um chapado, ou pão na chapa, com suco de mamão e laranja. Não leio tablets, ocupo o espaço de duas pessoas, porque abro o jornal, me estendo, sou espaçoso. O tempo para, vou para a fila do pão.
Na fila, me vi atrás de uma senhora aflita, que mal alcançava o balcão, apontando para a prateleira onde a funcionária Jô, célebre pelo batom vermelho impecável e um riso desse tamanho, acabara de despejar uma cesta de pães perfumados, saídos do forno há dois segundos. O perfume de pãezinhos assados mexe com sentimentos profundos. Sob o olhar risonho da outra funcionária, a Ada, a mulher aflita explica:
“Veja se me entende. Olhe. Aquele ali, à direita, ao fundo. Não, esse não. Abaixa um pouco, o outro. Isso, esse aí. Pode pegar”.
Jô coloca o escolhido em um saquinho. A senhora aponta para o meio:
“Agora aquele lá! Conte, é o décimo primeiro da esquerda para a direita. Está seguindo meu dedo? Menina, não sabe contar? O décimo da esquerda para a direita. Não, minha filha, da esquerda para a direita e não da direita para a esquerda”.
Jô, tem a paciência de Jó, como dizia minha mãe. Atrás de mim um sujeito de óculos escuros, lentes negras, traduz:
“Ela quer dizer o onzimo. Conte, dez, onze. Esse é o onzimo”.
Nós, clientes, nos entreolhamos. Onzimo? A freguesa prossegue, indiferente:
“O moreninho, não. Deus me livre! Quem gosta de pão moreninho? O outro. Pra lá, pra lá, um pouquinho mais. Pelo amor de Deus, também não precisa ser branquinho assim. Quem come um pãozinho desses? Está cru. Olhe aqui. Mire a partir do meu dedo. Tem dois chamuscados, não sei como colocam pão assim para vender. Me chama aí o José, preciso reclamar, defender o direito do freguês. Tem um moreninho, um pouco claro, ali, isso, aí, esse, esse mesmo! Perfeito, acertou. Parabéns menina”.
Nós, atrás, quase começávamos a nos irritar, mas preferimos saber onde aquilo ia dar. Ada e Jô, as funcionárias, se entreolhavam, pareciam acostumadas, pacientes, viravam-se para nós na fila, sorríamos para elas, ainda que um mal-humorado tenha dado um qual é:
“Vê se vai logo com isso aí, estou atrasado”.
Outro entrou na história:
“Atrasado para o quê? Você é aposentado há dez anos. Nunca mexeu uma palha nem quando trabalhava. Te conheço desde que essa padaria era do Zé Maria”.
Um personagem o Zé Maria, antigo proprietário, antes do José, o atual. Passeava pela padaria, nunca o vi atrás do balcão, vinha com um sorriso, um aperto de mão e a expressão que o definia: “É só alegria”. Um mantra. Há anos repetido. O que era bom de ouvir. A mulher aflita pensou um minuto, apontou:
“Está vendo ali?”.
O dedo é vago na indicação. Aquele ali está dentro de uma caixa com um metro de largura, contendo talvez 200 pães.
“Não, não, o compridinho não. Está esquisito esse pão, diferente dos outros. Onde acharam essa forma?”.
Lá de trás da fila vem uma explicação:
“Pãozinho francês não tem forma, dona!”.
A mulher vira-se, lança um olhar de desdém, pede:
“Escuta menina, olhe ali, tem um montinho de quatro, juntos. É daqueles que quero, ao pé deles tem um deitado. Não, não, esse não! É dois para lá dele. Será que estou falando japonês?”.
O homem atrás de mim fez sua intervenção:
“Se estiver falando japonês, melhor chamar o Fernando, o japonês, ele chegou, está na mesinha lá fora, com o cachorro quieto ao pé da mesa”.
O cachorro de Fernando deve estar comendo pão de queijo, trazido pelo José, o dono, este outro José, sempre correndo, atarefado, atento, dá a mão, com um sorriso, pergunta: “E o mestre? está bem?”. Respondo, como é meu hábito: “Sim, bem, até agora”. Ele me oferece um brioche, ou um bolo Bem-casado, em seguida entrega como brinde um bolo de panela a um cliente mais assíduo, ou dá de graça uma média a um carente, pão de queijo para outros pedintes. Com mimos como bolachas e folhadinhos salgados, atende pessoalmente a mesa das professoras aposentadas, que batem ponto aos sábados e domingos e são extrovertidas.
Penso nessas coisas e a senhora ainda escolhe seus pãezinhos: este aqui, aquele lá, preto, nunca, nem branco demais, crocante. Finalmente, dá-se por satisfeita e se vai. Chega a minha vez, vejo que os pães esfriaram, aponto o dedo: “Quero aquele ali, a 12 centímetros da lateral direita, terceira fila de baixo para cima, junto daquele casadinho, grudado no outro, veja, na diagonal, isso, quero os dois, espera aí vou decidir se quero uma rosca ou uma trança doce pulverizada com açúcar”.
Jô me interrompe:
“O senhor não quer nada disso, sei o que quer, vai levar os três pães de sempre”.
Coloca no saquinho e me entrega.
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