RESUMO Avanço da tecnologia tornará cada vez mais fácil falsificar áudios e vídeos, levando as fakenews a uma nova e mais preocupante fase. Autores debatem eficácia de iniciativas para combater esse tipo de manipulação. Sugerem ser necessário discutir o que deu errado com a internet e repensar o contrato social para a informação.
O vídeo chama a atenção. Michelle Obama, ex-primeira dama dos Estados Unidos, veste uma blusa decotada, sorri e começa a se despir para a câmera. Parece real, mas não é; trata-se de exemplo de "deep fake" (falsificação profunda), produzida com auxílio de inteligência artificial.
O leigo talvez demore a aceitar que aquelas imagens não são verdadeiras e não foram filmadas, mas sintetizadas digitalmente. Essa tecnologia, antes acessível somente para Hollywood, está cada vez mais à disposição.
Pode-se aplicar o rosto de alguém em cenas de sexo ou em qualquer situação comprometedora. O mesmo vale para a voz. Com amostras da fala de uma pessoa, um software faz com que ela diga qualquer coisa, com timbre, cadência e entonação próximos da perfeição.
Ou seja, a divulgação de textos com conteúdo de algum modo mentiroso representa apenas o começo do fenômeno das fake news. O próximo passo parece ser a era das deep fake news. Será cada vez mais difícil separar a realidade da manipulação digital —e há quem diga que estamos vivendo os últimos dias da própria ideia de realidade, como fazem Claire Wardle e Hossein Derakhshan em recente relatório do Conselho da Europa.
Zé Otávio
Uma outra dupla de autores (Danielle Citron, da Universidade de Maryland, e Robert Chesney, da Universidade do Texas) publicou em fevereiro um artigo na revista Lawfare no qual discutem como as "deep fakes" tornam a manipulação ainda mais perniciosa.
Diante de vídeos ou gravações que parecem reais, qual reputação resistiria a um ataque? Como saber que é falsa a cena em que um político diz coisas odiosas ou recebe propina?
Essa não é uma ameaça apenas para indivíduos, mas para os próprios pilares do convívio democrático. Um vídeo falso pode ser usado para provocar convulsão social. Por exemplo, ao mostrar um policial atirando num civil inocente, ou um bandido assaltando transeuntes numa dada localidade.
Antes de haver tempo para denunciar a falsificação profunda, as imagens talvez tenham suscitado reações bem reais, como o linchamento de um inocente.
Dado o perigo crescente que as fake news representam, não surpreende que cada vez mais atores se mobilizem para combatê-las. O fenômeno em si, contudo, não é novo.
Há registros de manipulação de informação com o objetivo de influenciar o processo político desde ao menos o Império Romano. Num passado menos distante, o jornal New York Sun fez sucesso em 1835 com a publicação de artigos alardeando a descoberta de vida na Lua. Mais recentemente, em 2006, uma rede pública de TV na Bélgica afirmou que o Parlamento flamengo havia declarado a independência da região.
CLASSIFICAÇÕES
Os fatores por trás da desinformação são diversos. Vão da simples negligência (como a disseminação de boatos ou matérias jornalísticas mal-apuradas) à busca de vantagens políticas ou financeiras, passando pela tentativa de destruir reputações.
Levando em conta essas gradações, o Conselho da Europa classificou as fake news em três categorias dentro um quadro maior que chamou de desordem informacional, um conceito relevante por abranger diversas nuances da manipulação.
Uma delas é a desinformação ("disinformation"), que consiste em notícias falsas deliberadamente criadas e espalhadas para prejudicar uma pessoa, um grupo social, uma organização ou um país.
Outra é a notícia falsa propriamente dita ("misinformation"), compartilhada por uma pessoa desavisada que a princípio não tinha a intenção de prejudicar alguém. Como aqui o critério não é a má-fé, incluem-se até reportagens com erros causados por falhas na apuração.
E, por fim, o que chamou de "mal-information" (malinformação), notícias que, embora tenham bases reais, são editadas e disseminadas com a finalidade de causar danos —por exemplo, revelando publicamente temas da esfera privada.
Essas categorias poderiam descrever o fenômeno das fake news em qualquer período da história, mas dois elementos fundamentais são específicos da atualidade: a velocidade com que as notícias falsas se espalham e a capilaridade que elas têm.
Zé Otávio
Hoje, plataformas como o Facebook, Twitter, Google e YouTube, entre outras, possuem alcance global instantâneo (ao menos no Ocidente).
A combinação dessa arquitetura com embates políticos nacionais, disputas geopolíticas globais e modelos de negócio baseados em publicidade comportamental criou as condições para que se aprofundasse o fenômeno da desordem informacional.
Vários países vêm desenvolvendo estratégias para enfrentar esse desafio contemporâneo. As dificuldades são inúmeras: além da necessidade de delimitar o problema (como definir o que é falso?), é preciso lidar com as diferentes características da rede. Cada nação consegue agir somente em relação ao seu próprio território.
Muitas soluções propostas conflitam diretamente com direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e de informação ou o devido processo legal.
Algumas postulam mecanismos de intervenção na rede que não raro resvalam na censura. Outras propõem tratar notícias falsas geradas em outros países como tema de segurança nacional, o que autorizaria retaliação militar. Mesmo medidas extremas, contudo, podem se revelar inócuas.
É possível dividir as propostas em pelo menos dois grupos: as soluções de "hard power", com as quais governos miram os mecanismos de circulação da informação, e as de "soft power'", com estratégias de longo prazo capazes de vacinar a sociedade contra esse tipo de manipulação, em cooperação com diversos setores (universidades, governos, empresas privadas, sociedade civil etc.).
Em qualquer das hipóteses, a batalha contra a desordem informacional será travada sobretudo em dois campos distintos: ciência e tecnologia de um lado, direito e regulação de outro.
PESQUISAS
A ciência vem tendo papel importante. Estudos de Deb Roy (professor do Massachusetts Institute of Technology, o MIT) e colegas, publicados na revista Science, comprovam, por exemplo, que as notícias falsas circulam muito mais depressa e de maneira mais abrangente do que as verdadeiras.
Eles também constataram que a mentira possui um estilo de redação distinto da verdade —a mentira usa linguagem simples e direta e apela para sentimentos básicos, como medo e raiva.
Reações às notícias falsas tendem a expressar desgosto, temor e surpresa. Por sua vez, notícias verdadeiras costumam gerar comentários de apreensão, tristeza, alegria ou confiança.
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