segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Futebol e Literatura

                            
Lev Yashin, o quíper Aranha Negra, da extinta URSS, em uma das milhares de vezes que impediu que a bola tocasse a bochecha da rede


                        Bola na bochecha da rede - Ruy Castro

Volta e meia alguém faz um dicionário de futebol, incorporando as últimas expressões. E é bom que assim seja, porque poucos universos são tão ricos em dizer coisas velhas de um jeito novo. Um torcedor de 1999 que tenha dormido na virada do milênio e só acordado agora não entenderá metade do que os narradores e comentaristas dizem hoje ao microfone na transmissão de uma partida. Para o benefício desse hipotético, embora improvável, torcedor, aí vai um pequeno glossário das falas atuais.

A bola de futebol não é mais o velho balão de couro, que alguns chamavam de redonda, outros de menina e às vezes ia dormir no véu da noiva, digo rede. Aliás, a bola nem é mais de couro. Continua redonda, mas ganhou uma riqueza facial digna de uma diva do teatro. Entre outras coisas, tem cara e orelha —ou assim os locutores se referem a um chute certo, "na cara da bola", ou torto, que pegou "na orelha da bola". A rede, por sua vez, agora tem bochecha —um chute bem colocado é o que vai para a "bochecha da rede".

Ninguém mais joga bem —"faz bom jogo". Ninguém mais entra em campo —"vem pro jogo". E ninguém mais sai —"vai embora". A "marcação alta", de que tanto se fala, é só a antiga marcação por pressão, quando os nossos atacantes vão infernizar a saída de bola do adversário. A "marcação baixa" é a velha retranca ou o velhíssimo ferrolho. O críptico "jogar entre linhas" é apenas receber a bola nas costas do adversário.

Garrincha, hoje, não seria um ponta, mas um "extremo" ou, coitado, um jogador "de beirada". E "camisa pesada" não é mais aquela antiga, de pano, que, quando chovia durante o jogo, absorvia água à beça e o jogador penava para carregar no corpo. Agora é apenas a camisa de qualquer time grande, talvez pesada de títulos.

São só novas frases feitas, como se vê. E, como sói, em breve tão antiquadas e fora de moda quanto chamar goleiro de quíper.




Rafael Campos Rocha - "Deus, Essa Gostosa"



2014: noves fora, sete - Antonio Prata (04/01/2015)


Logo depois da tragédia, foi aquele Deus nos acuda. Parecia que ia cair o presidente da CBF, a presidente da República, iam cancelar o "Domingão do Faustão", mudar o Carnaval pra agosto e transferir a capital brasileira pra Buenos Aires (ou Berlim?). Nos últimos meses, contudo, o choque foi passando e deixamos de tocar no assunto, mas tenho certeza de que lá longe, num futuro distante, quando olharmos pra trás e nos perguntarmos "E em 2014, hein? Que que aconteceu mesmo?", não lembraremos da Dilma nem do Aécio, do início da abertura em Cuba ou da pá de cal no Orkut, do pouso da sonda Rosetta ou da ascensão do pau de selfie: engoliremos em seco e diremos, ainda aflitos diante da recordação, "Ah, foi o ano do 7 x 1".
Naquela terça terçã, 8 de julho, havia no Mineirão cinquenta e oito mil cento e quarenta e um torcedores –e esse um era eu. Quando saí do estádio –perplexo, atordoado–, meu telefone começou a tocar. Eram amigos, primos, tios, meu pai. Perguntavam como tinha sido a experiência, in loco, mas queriam mesmo era conferir, desconfio, se eu estava vivo. A coisa tinha sido tão absurda que não seria fora de lugar se um daqueles chutes da Alemanha, em vez de fazer o oitavo gol, houvesse me acertado a testa.
Absurdo: essa talvez seja a melhor palavra pra descrever o que se passou naquela tarde. Quando, aos 29 minutos do primeiro tempo, Khedira recebeu livre próximo à marca do pênalti e chutou no canto direito do gol brasileiro, marcando o quinto tento teutão, eu senti uma aflição profunda e não inteiramente desconhecida. Fechei os olhos, folheei mentalmente meu caderninho de angústias e descobri o que era: uma bad trip de ácido. Você sabe que está embarcando numa viagem ruim, sabe que vai piorar e sabe que não há nada que possa fazer para alterar o destino. Resta render-se aos entulhos mais fedidos do seu subconsciente e esperar que passe o efeito. Num estádio, no entanto, não há a alternativa da rendição. Afinal, ali, cada torcedor tem a ilusão delirante de ser capaz de mudar o destino do jogo. Tudo bem, em casa você também acha que pode influenciar no resultado passando do SporTV pra ESPN e da ESPN pra Band e da Band pra Globo e da Globo pro rádio AM, trocando de cueca ou comendo amendoins com a mão esquerda, mas todo ser racional sabe que a mandinga funciona bem melhor de corpo presente do que via cabo ou satélite. E se trocássemos de lugar? E se cantássemos o hino de novo? (Ou Aquarela do Brasil?) E se vaiássemos?
Durante os 60 lodosos minutos que se seguiram ao quinto gol, cada torcedor fez o que achou necessário, criando uma cacofonia bisonha. O Mineirão parecia um gigantesco formigueiro mijado. O equilíbrio só se restabeleceu nos últimos minutos: a torcida brasileira vaiava em uníssono, enquanto a torcida alemã cantava, a plenos pulmões: "Brasil! Brasil! Brasil!" –e tenho certeza de que eles não estavam sendo irônicos, estavam era com pena, tentando dar uma força.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete –e um nosso, no finalzinho, como a azeitona no dry martini (deles). Absurdo.


Malvados - André Dahmer


Inesquecíveis - Luis Fernando Vereissimo

O Estado de S. Paulo -  28 de junho de 2020

Tivemos a seleção brasileira de 70 e tivemos as suas circunstâncias – ou seus mitos. Que mitos resistiram ao tempo e quais foram desmentidos ou esquecidos? O técnico João Saldanha disse mesmo que não convocaria o Pelé porque o Pelé era míope? Saldanha largou a seleção que iria ao México porque os militares no poder, a começar pelo presidente Médici, estavam se metendo demais no seu trabalho, inclusive pedindo a convocação do centroavante Dario? Ou não foi bem assim? 
Não importa. O que deixou mais saudades foi o inédito anúncio feito pelo Saldanha, como primeiro ato do seu mandato, do time que ele tinha pronto na cabeça, do goleiro ao ponta-esquerda. O time que acabou ganhando no México não foi o do Saldanha, foi o do Zagallo, que o substituiu, mas isso também não importa. 
Entre o time que o Saldanha tinha na ponta da língua e o que jogou no México, tudo virou mito.

Tivemos a seleção brasileira de 70 e tivemos as suas circunstâncias – ou seus mitos. Que mitos resistiram ao tempo e quais foram desmentidos ou esquecidos? O técnico João Saldanha disse mesmo que não convocaria o Pelé porque o Pelé era míope? Saldanha largou a seleção que iria ao México porque os militares no poder, a começar pelo presidente Médici, estavam se metendo demais no seu trabalho, inclusive pedindo a convocação do centroavante Dario? Ou não foi bem assim? 
Não importa. O que deixou mais saudades foi o inédito anúncio feito pelo Saldanha, como primeiro ato do seu mandato, do time que ele tinha pronto na cabeça, do goleiro ao ponta-esquerda. O time que acabou ganhando no México não foi o do Saldanha, foi o do Zagallo, que o substituiu, mas isso também não importa. 
Entre o time que o Saldanha tinha na ponta da língua e o que jogou no México, tudo virou mito.
Na opinião de muitos, os dois melhores times do Brasil foram os das nossas derrotas mais pungentes, as seleções de 50 e de 82. Qual seria o resultado do encontro entre essas seleções brasileiras de diferentes épocas? Muita gente opina que os dois melhores times do Brasil de todos os tempos foram justamente os das nossas duas derrotas mais inesquecíveis (esquecendo-se, misericordiosamente, dos 7 a 1 de 2014). 
Um jogo da seleção de 58 com a seleção de 70 seria um encontro de Pelés, o Pelé com 17 anos e o Pelé com quase 30. Um Pelé começando e um Pelé experiente. Time por time, sei não. Uma comparação jogador a jogador não seria fácil, fora obviedades como o Nilton Santos comparado com o Everaldo. A superioridade do Garrincha sobre o Jairzinho, mesmo levando-se em conta a enormidade que o Jairzinho jogou no México, seria incontestável. 
Em outros casos, nem caberia comparação. Vavá e Tostão? Tostão, claro. Rivellino também era um falso ponteiro, como o Zagallo, mas tinha os recursos do drible curto e do chute forte que Zagallo não tinha. Enfim, quem ganharia?
Acho que o jogo seria decidido por um dos dois Pelés. Eu apostaria no Pelé maduro.
*
A seleção de 82, de Junior, Cerezo, Sócrates, Zico, Falcão e etc., talvez fosse a melhor das quatro. Mas aquela foi uma geração brilhante, sem apoteose. Ficou faltando a apoteose.

Akira S. e as Garotas que Erraram - O Futebol


https://youtu.be/_mSlBFfH7yE?t=96


Duke




                                               Xororô - Luis Fernando Verisssimo


O Pedrão é o mais velho do time e, só por isso, o capitão. Acha que a principal função de um capitão é pressionar o juiz e que juiz deve ser pressionado sempre. Tem que ouvir reclamações quando apita qualquer coisa, certo ou errado. E o encarregado de reclamar é o capitão. Respeitosamente, alto nível. Mas sempre.
Segundo Pedrão, o juiz precisa saber que estão de olho nele. Que ele não está enganando ninguém. E a missão de expressar essa desconfiança constante e implacável é do capitão. Que, afinal, também é uma autoridade em campo. Uma autoridade menor, mas autoridade. Por isso, as torcidas se acostumaram a ver o Pedrão conferenciando com o juiz, às vezes longamente. Alguns juízes não querem conversa e mandam o Pedrão se afastar. O Pedrão se afasta, mas reclamando.
E quando o juiz é estrangeiro? Em que língua o Pedrão reclama? Que se saiba, o Pedrão é monoglota convicto. Como ele faz? Um dia, o Pedrão contou para um grupo de amigos. Com instruções para jamais revelarem seu segredo. Não importava se o juiz era brasileiro, castelhano, alemão ou coreano. Quando pressionava o juiz, o Pedrão só dizia “xororô”. Nenhuma palavra inteligível, só “xororô, xororô, xororô”.
O importante não eram as palavras, era a cena. Era o juiz se sentir pressionado, e a torcida ver o Pedrão pressionando o juiz, cumprindo sua obrigação de capitão. “Xororô, xororô, xororô”, só variando o tom e gesticulando muito. Alguns juízes já conheciam o Pedrão e quando ele se aproximava diziam “ih, lá vem xororô”. Outros davam risada. Mas alguns não entendiam. Diziam “O quê?”. E o Pedrão: “Xororô, xororô, xororô”.
– O quê?! – Xororô, xororô, xororô. Sempre com muito gesto.
Um dia, contou o Pedrão, o juiz era da Guatemala. Dois minutos de jogo, falta contra o time do Pedrão. O juiz em cima: piiii!. E o Pedrão em cima do juiz: “Xororô, xororô, xoro...”. Não completou sua argumentação. Foi expulso de campo antes do último “rô”. Cartão vermelho. O juiz da Guatemala dando pulos. Se houvesse cartão roxo, mostraria o roxo.
Até hoje, o Pedrão não sabe o que quer dizer “xororô” na Guatemala. Imagina que seja algo envolvendo a mãe ou algum exótico hábito sexual. Hoje, antes do “xororô”, ele testa o juiz, recitando um verso de música sertaneja ou um trecho do Hino Nacional para ver sua reação. Mas sempre gesticulando.

Fernando Gonsales


As família - Luis Fernando Verissimo


No meu tempo... Pronto. Só com este começo espantei metade dos meus 17 leitores. Lá vem ele com reminiscências enquanto Roma arde, devem ter pensado. Nostalgia é fuga. Buuu. Mas como eu dizia quando me interrompi tão rudemente, no meu tempo de torcedor de arquibancada o futebol já não era mais um esporte fino, assistido por moças de chapéu.

O futebol tinha se transformado em coisa para homem, literalmente. Era raro ver-se mulher num estádio. Quem levava a namorada a um jogo (irmã, filha, esposa ou mãe, nem pensar) tinha que estar preparado para ouvir de tudo, do fiu-fiu protocolar a comentários lúbricos sobre a sua anatomia. E pronto para brigar, no caso de mão extemporânea na bunda ou alhures.

Mas no meu tempo sobravam alguns resquícios da época em que o futebol começou. Por exemplo: palavrões gritados pela torcida já eram comuns, mas sempre que se ouvia um palavrão ouvia-se outra voz alertando:

– Olha as família...

Era pouco provável que houvesse alguma família por perto, mas os guardiões da moral nunca deixavam de se manifestar. Não se esperava que, em consideração às hipotéticas famílias no estádio, as especulações sobre a filiação do juiz fossem substituídas por algo como “tá cego, seu rameiradescendente?”, mas havia um consenso de que certas palavras não podiam ser ouvidas pelas famílias, ou ao menos pelas mulheres.

Hoje, claro, as famílias vão juntas ao estádio e gritam, juntas, os palavrões. Não há nenhum que elas não conheçam, e já devem ter inventado alguns. E fico pensando naquela voz solitária dos meus dias de torcedor de arquibancada, alertando:

– Olha as família...

Deviam ser homens antigos, os guardiões. Homens fora do seu tempo. Ou talvez se vissem como os últimos resistentes de um mundo em vias de extinção, moralistas já obsoletos desafiando o ridículo de uma causa perdida, as família. Sei lá.

André Dahmer - Malvados

Skank - É Uma Partida De Futebol


Prioridades - Luis Fernando Verissimo


Futebol de praia. Sete para cada lado, perdedores pagam a cerveja. Todos amigos, tudo em paz. Mas o homem não teria chegado aonde chegou, na sua trajetória sobre a Terra, se não fosse um animal orgulhoso. Com a possível exceção do pavão, nenhum outro animal se ama como o homem. E aconteceu o seguinte: o Américo passou a bola pelo meio das pernas do Célio. Não uma, mas duas vezes.

Nenhum amor-próprio resiste a uma bola pelo meio das pernas. Que dirá duas. O homem aprendeu a conviver com as agruras da existência preservando o seu amor-próprio. Insucesso nos negócios, frustrações privadas e públicas – tudo faz parte dos desafios da vida moderna que o homem enfrenta com seu orgulho intacto, confiante em que os superará.

Ou pelo menos que saberá explicá-los. É exatamente o orgulho que faz o homem vencer os grandes infortúnios e as pequenas indignidades e seguir em frente. Tudo pode ser absorvido ou justificado. Menos duas bolas pelo meio das pernas no mesmo jogo. Ainda mais as pernas de um brasileiro.

O Célio reclamou para o Américo:

– Não faz mais isso. – Qual é, cara?

– Pelo meio das pernas, não. – É brincadeira!

– Faz isso de novo e eu vou na sua pleura.

O Célio não sabia exatamente onde ficava a pleura, mas era onde bateria se o Américo passasse a bola pelo meio das suas pernas outra vez.

É preciso saber que os dois trabalhavam na mesma firma e o Célio era o superior do Américo. Poderia botar o Américo na rua. Pior do que um pontapé na pleura.

– Está bom, está bom – disse o Américo. – Não faço mais.

E foi jogar do outro lado, onde seu marcador seria, de preferência, um hierarquicamente inferior que ele pudesse driblar à vontade.

Mas aconteceu de o Américo ser lançado num contra-ataque pelo meio e ver pela frente, como último defensor do adversário, o Célio. E aqui entra outra característica do homem brasileiro, o seu peculiar senso de prioridades. De certa forma, um corolário ao seu pânico congênito de levar bolas por entre as pernas. E também uma questão de amor-próprio. Pois, se todos os homens se amam, o homem brasileiro ama algumas coisas em si acima de todas as outras.

Não se diga que Américo apenas seguiu seu instinto, sem pensar. Pensou muito, enquanto corria com a bola dominada na direção do Célio. Pensou no seu casamento, que teria de ser adiado se ele perdesse o emprego. Pensou nas vantagens para o seu bem-estar e o seu futuro se ele perdesse a bola para o Célio.

E o Américo enfiou a bola entre as pernas do Célio e foi buscá-la lá na frente, para fazer um gol espetacular, escapando do pontapé que Célio tentava lhe dar por trás. O que é mais importante? Diga lá, brasileiro: a vida, o emprego, o salário garantido no fim do mês, o casamento, ou um gol perfeito? Um gol perfeito, claro.

Mas o Américo, afinal, não foi despedido. Célio não apareceu na firma na segunda-feira. Não foi mais visto. Levar três bolas pelo meio das pernas num único jogo é, parece, uma espécie de limite extraoficial da humilhação. Dizem que ele emigrou.

André Dahmer - Malvados


Fio Maravilha(Jorge Ben) 1972



As aventuras da família Brasil
Aquela bola - Luis Fernando Verissimo


Na volta do jogo, o pai dirigindo o carro, a mãe ao seu lado, o garoto no banco de trás, ninguém dizia nada. Finalmente o pai não se aguentou e falou:

— Você não podia ter perdido aquela bola, Rogério.

— Luiz Otávio... — começou a dizer a mãe, mas o pai continuou:

— Foi a bola do jogo. Você não dividiu, perdeu a bola e eles fizeram o gol.

— Deixa o menino, Luiz Otávio.

— Não. Deixa o menino, não. Ele tem que aprender que numa bola dividida como aquela se entra pra rachar. O outro, o loirinho, que é do mesmo tamanho dele, dividiu, ficou com a bola, fez o passe para o gol e eles ganharam o jogo.

— O loirinho se chama Rubem. É o melhor amigo dele.

— Não interessa, Margarete. Nessas horas não tem amigo. Em bola dividida, não existe amigo.

— E se ele machucasse o Rubem?

— E se machucasse? O Rubem teve medo de machucar ele? Não teve. Entrou mais decidido do que ele na bola, ficou com ela e eles ganharam o jogo.

— Você está dizendo para o seu filho que é mais importante ficar com a bola do que não machucar um amigo?

— Estou dizendo que em bola dividida ganha quem entra com mais decisão. Amigo ou não.

— Vale rachar a canela de um amigo pra ficar com a bola?

— Vale entrar com firmeza, só isso. Pé de ferro. Doa a quem doer.

— É apenas futebol, Luiz Otávio.

— Aí é que você se engana. Não é apenas futebol. É a vida. Ele tem que aprender que na vida dele haverão várias ocasiões em que ele terá que dividir a bola pra rachar e....

— Haverá – disse Rogério, no banco de trás..

— O quê?

— Acho que não é “haverão”. É “haverá”. O verbo haver não...

— Ah, agora estão corrigindo meu português. Muito bem! Eu não sou apenas o pai insensível que quer ver o filho quebrando pernas pra vencer na vida. Também não sei gramática.

— Luiz Otávio...

— Pois fiquem sabendo que o que se aprende na vida é muito mais importante do que se aprende na escola. Está me ouvindo, Rogério? Um dia você ainda vai agradecer ao seu pai por ter lhe ensinado que na vida vence quem entra nas divididas pra valer.

— Como você, Luiz Otávio?

— O quê?

— Você dividiu muitas bolas pra subir na vida, Luiz Otávio? Não parece, porque não subiu.

— Ora, Margarete...

— Conta pro Rogério em quantas divididas você entrou na sua vida. Conta por que o Simão acabou chefe da sua seção enquanto você continuou onde estava. Conta!

— Margarete...

— Conta!

— Eu estava falando em tese...

André Dahmer - Malvados


Benett



Marco Jacobsen





O Futebol - Chico Buarque




Eu vi - Luis Fernando Verissimo


É puro exibicionismo, eu sei, mas gosto de contar (e contar, e contar) que vi o Domingos da Guia jogar, o Charlie Parker tocar, o Fellini filmar e o ataque do Real Madrid com Kopa, Puskas, Di Stéfano e Gento atuar.

O Domingos da Guia, para quem nasceu ontem, era um beque, do tempo em que ainda se dizia “beque”. Tinha uma estampa majestosa. Era famoso pelos dribles que dava dentro da sua própria área, com o risco de perder a bola – o que nunca acontecia – e que ficaram conhecidos como “domingadas” e quase causavam enfartes nos torcedores do seu time.

Domingos encerrou sua carreira no Corinthians.Vi-o em ação quando o Corinthians jogou em Porto Alegre no fim dos anos 40. “Em ação” talvez não seja o termo certo. Ele já era uma relíquia, jogando de memória e movendo-se o mínimo possível. Mas a majestade ainda estava lá.

O saxofonista Charlie Parker eu vi tocar em 1954, no “Birdland” de Nova York, com o Dizzy Gillespie no trompete e acho que o Bud Powell no piano. Nós morávamos em Washington e, sempre que dava, eu pegava um ônibus e ia para Nova York, ouvir música. Até hoje não sei como me deixavam entrar, com 16 anos, no “Birdland”. Entrava e sentava numa seção só para ouvintes, sem dinheiro nem para uma Coca. Parker também já estava perto do fim, como o Domingos, só que ninguém sabia. Morreu em 1955, com 35 anos de idade.

Em 1959 eu caminhava pela noite de Roma quando dei com um set de filmagem. Identifiquei o Marcelo Mastroianni, que recebia instruções de Federico Fellini sobre como encaracolar uma mecha de cabelo, um gesto típico do próprio diretor. Depois surgiu, como uma deusa nórdica de tomara-que-caia preto, a Anita Ekberg. Acompanhei toda a cena do Marcelo e da Anitona na Fontana di Trevi, de A Doce Vida, até a madrugada.

No mesmo ano, na capital da Espanha, fui ao estádio Santiago Bernabéu ver o Real Madrid jogar. Não me lembro contra quem, nem qual foi o resultado. Mas me lembro de Puskas em grande forma e, acima de todos e de tudo, o magnífico Di Stéfano, que morreu há poucos dias. Fizeram um minuto de silêncio em honra do mestre, antes do jogo Argentina e Holanda, na quarta. Mesmo quem nunca o viu jogar ou sabia da sua existência se uniu na homenagem para dizer “Gracias, viejo”.

AMELY - PRYSCILA VIEIRA

Um a Zero - Pixinguinha


Homem-surpresa - Luis Fernando Verissimo

O jargão do futebol se renova. O que antigamente era chamado de “cabeça de área” hoje é o mais elegante “volante de contenção”. Outro neologismo é “marcação alta”, quando o time com a bola é marcado ainda no seu próprio lado, antes de cruzar a linha divisória do campo. E já existia e só não tinha nome o “homem-surpresa”: um defensor, meio-campista ou até volante de contenção que, volta e meia, surge na área adversária, de surpresa, para finalizar um ataque. Quem fazia isso com frequência na seleção do Tite era o Paulinho. 
*
Dar nome às práticas e táticas do futebol pode esconder apenas a necessidade de complicar o que é simples e torná-lo mais esotérico, para afastar os que não entendem o que estão vendo no campo dos que entendem. O treinador Flávio Costa ficou marcado pela derrota da Seleção Brasileira, que ele treinava, para o Uruguai, na final da Copa de 1950. A decepção do público brasileiro com aquele desastre foi como se tivessem nos aplicado 7 a 1 ou coisa parecida, algo inconcebível. Mas apesar do fracasso de 50, Flávio Costa continuou sua carreira vitoriosa de técnico, que incluiu longos períodos como treinador do Flamengo e outros clubes cariocas e temporadas no Porto, de Portugal. E ele descrevia a tática que usava, com sucesso, nos seus times como “diagonal”. 
*
Ninguém, fora o próprio Flávio Costa – e, suspeita-se, nem ele –, via sua diagonal em campo. Comentaristas esportivos diziam que a viam, mas não viam. Era só para mostrar que pertenciam ao pequeno grupo de iluminados que enxergavam futebol, ao contrário de você e eu, que só vemos o óbvio. 
*
O “homem-surpresa” pode aparecer em várias situações, além da área adversária. Nossa história política está cheia deles. Jânio Quadros surpreendeu muita gente, renunciando à Presidência. Os militares não tinham se dado conta que o vice do Jânio, se este fizesse alguma loucura, seria – surpresa! – o Jango Goulart. Tomaram providências para impedir sua posse, mas não contavam com outro “homem-surpresa”, o Brizola, que se rebelou contra o golpe o quanto deu. O maior partido do Brasil, o PMDB, com todos os seus conchavos e conluios, nunca conseguiu produzir um candidato viável para a Presidência da República. Sempre dependeu de homens-surpresa de partidos menores, como o Collor.
*
O “homem-surpresa” do Tite não funcionou, na Copa da Rússia. Nas poucas vezes em que entrou na área inimiga, inibiu-se. Deve ter pedido desculpa aos defensores adversários por estar ali, mas era só uma visita. Não aconteceria mais. Desculpem a intromissão, gente. Desculpem a surpresa!
Jota

Sem exagero - Luis Fernando Veríssimo 

Fizeram um encontro meu com o Abel Braga quando ele estava treinando o Internacional, e descobrimos uma coincidência. O primeiro jogo que ele viu no Maracanã, ainda garoto, ao lado do pai, foi o último que eu vi, já nada garoto, perto de me casar. Santos e Milan, novembro de 1963. Até então eu não perdia jogo do Botafogo, da seleção ou do Santos no Maracanã. Morava no Leme e pegava o ônibus Leme-Triagem, atravessava a pé a Quinta da Boa Vista e ia para a arquibancada. Sim, o Santos jogava suas partidas decisivas no Maracanã. O Maracanã enchia para ver o Pelé. Mas no jogo que o Abel, eu e uma multidão vimos o Pelé não jogou. O herói da noite foi o Almir. O Pelé da noite foi o Almir.

Volta e meia, vem a discussão. Pelé era mesmo tudo que se diz dele? O Maradona era melhor? O Messi é melhor? Meu testemunho não interessa. Ele reinou quando já havia videotape. Seus feitos estão bem documentados. Você não precisa recorrer à literatura para contar às crianças como era o seu futebol - ao contrário das façanhas de gente como Ademir e Zizinho, que ficaram na memória dos velhos e em filmes desbotados, nenhuma das duas coisas muito confiáveis. E o grande mérito de Pele é que ele resiste ao videotape completo. Se tivesse ficado só em filme, só os seus grandes momentos estariam registrados. Já o videotape completo traz tudo: o passe errado, o tombo sentado, a chuteira desamarrada. E Pelé resiste aos detalhes. Ele era bom até amarrando a chuteira.

Com o futebol aconteceu um pouco do que aconteceu com a guerra: quanto mais realista a sua reprodução, mais difícil romanceá-la. Quando só se via cenas de guerra em quadros épicos em que até os cadáveres colaboravam na composição, ela podia ser glorificada sem contestações, salvo as estéticas. Fora as gravuras de Goya, não se conhece um quadro sobre a guerra, antes da invenção da fotografia, que não a exaltasse. A fotografia primitiva roubou da guerra a cor e a composição artística, o filme e o tape dinamizaram o horror, o "zoom" destacou o detalhe. Ainda há quem ame a guerra mas nunca mais a percepção dela foi a mesma.

E o futebol também mudou, o que só aumentou a dificuldade em julgar jogadores antigos pelas precárias imagens que ficaram deles e pelo que contam - com o inevitável toque romântico do exagero - os que os viram jogar. Algumas das grandes reputações do passado sobreviveriam aos cinco no meio e à marcação no campo todo de hoje? Pelé pegou o começo do futebol sem espaço. Não só se impôs como deixou o exemplo de como sobreviver no sufoco. A extrema objetividade (nunca se viu um drible do Pelé apenas pela satisfação do drible, era sempre um espaço conquistado), a antecipação da jogada seguinte antes mesmo da jogada presente começar, a solidariedade, a simplicidade. Melhor do que Maradona, melhor do que Messi, e dou fé.



Duke

Olha a bola! - Luis Fernando Verissimo



Para um brasileiro, não existe vergonha maior do que errar em bola
Você está caminhando pela rua e vê uma bola de futebol vir quicando na sua direção. Uma bola de tamanho regulamentar que escapou de uma pelada de calçada improvisada por um grupo de garotos. Você ouve um dos garotos gritar:
— Olha a bola, tio!
Você, como faria qualquer brasileiro, prepara-se para chutar a bola e devolve-la à pelada. Chuta - e erra. Em vez de voltar para onde veio, a bola vai na direção oposta, impulsionada pelo seu pé. Você ouve a mesma voz gritar:
- Aí, hein tio? Show de bola. E outras vozes gritarem: - Põe o pé na forma! - Ó, ruindade! - Perna de pau!

Para um brasileiro, não existe vergonha maior do que errar em bola. Todos nós temos a mínima obrigação congênita de saber dominar uma bola. Ainda mais uma bola fácil, que vem quicando. Você precisa escolher o que fazer para disfarçar seu vexame. Pode apelar para:

1) Fingimento. Continuar caminhando, mas mancando. Será que os desalmados não viram que você é ruim de uma perna, o que explica seu chute torto? Você fez o que era possível, e com sacrifício. Eles que fiquem com seu remorso por terem caçoado de você.

2) Congraçamento e simpatia. Abanar para os garotos, abrir os braços, dar risada e reconhecer que você é ruim mesmo, fazer o que? Você pode ser um perna de pau, mas pô, é um cara legal.

3) Explicações. Contar para os garotos que você está passando por uma fase difícil, problemas em casa, preocupação com dinheiro... Por isso errou em bola. Estava distraído, quem pode chutar uma bola direito com tanta coisa na cabeça? Se eles quiserem você pode mostrar uma foto sua no time de futebol da escola, uniforme completo, lateral direito, prova de que é bom de bola, que não pode ser julgado por um único lance fortuito com a cabeça cheia de problemas, e que merece outra chance.

4) Intimidação. Enfrentar os garotos. Exigir respeito. Ameaçar fazer queixa às autoridades. Onde se viu ocupar uma calçada com uma pelada daquele jeito? Você chutou a bola para o lado errado não por ruindade mas de propósito, para acabar com aquele abuso. Será possível que os garotos não veem que estão atrapalhando o trânsito das pessoas, inclusive deficientes físicos como você? E sair mancando.

Will Tirando


Lembra futebol?  - Luis Fernando Verissimo

Lembra? Uma bola, 11 jogadores de cada lado... O objetivo era um time botar a bola dentro do gol do outro time e evitar que o outro time botasse a bola dentro do seu. Parecia fácil, mas não era. Os times precisavam avançar trocando passes, driblando os jogadores adversários, que tentavam tirar a bola deles, chegando o mais perto possível do gol e chutando a gol, acertando o gol, festejando o gol, desaparecendo sob uma pilha de companheiros que também festejam o gol, agradecendo a Deus e fazendo uma dancinha ensaiada para comemorar o gol (não necessariamente nesta ordem) ou então, claro, errando o gol, chutando a bola para longe, ou acertando o gol, mas o goleiro pegando a bola com as mãos ou rechaçando a bola com as mãos já que ele podia, o desgraçado.
*
Lembra como um jogo de futebol bem jogado era bonito? Nada se igualava à plasticidade de um jogo de futebol bem jogado. Mesmo um jogo de futebol mal jogado tinha sempre a redimi-lo um ou outro lance de graça desajeitada, como num ballet de hipopótamos. E como no céu do anoitecer ou em qualquer outra manifestação artística, no futebol algumas estrelas também brilhavam mais do que outras, lembra? Vi jogar, modéstia à parte, algumas dessas fulgurações inesquecíveis. Dois pontos.
*
Quando quero impressionar alguém, se não com minha cultura futebolística pelo menos com minha idade, conto que vi jogar o Domingos da Guia. Eu com 14 ou 15 anos, ele em fim de carreira, no Corinthians. Não tinha mais futebol, mas ainda tinha majestade. Quando quero passar por olheiro científico conto que estava no estádio quando o Santos veio jogar em Porto Alegre e, no segundo tempo, botou em campo um garoto que não podia ter mais do que 16 anos e, soube depois, se chamava Pepé ou Pelé ou coisa parecida. E sentenciei: “Esse guri vai longe”. Só metade da história é mentira. O Santos foi jogar em Porto Alegre, eu estava no estádio, o garoto entrou no segundo tempo, mas não tenho a menor lembrança da sua figura, da sua atuação ou da minha opinião a seu respeito.
*
Meu ídolo era o Tesourinha, ponteiro direito do Internacional no tempo em que ainda existiam ponteiros direitos. Tesourinha chegou à seleção, e só não participou da final do mundial de 50 contra o Uruguai porque estava lesionado, se não teria vencido o jogo sozinho. Era tão bom que uma vez vi um juiz (inglês, Mr. Barrick, contratado para apitar no campeonato gaúcho porque nem Grêmio nem Internacional acreditavam na isenção de juízes locais) fazer uma coisa inédita: depois de uma jogada espetacular do Tesourinha, não se conteve e foi apertar sua mão.
*
Era bonito o futebol. Será que ainda o veremos de novo, algum dia?

Genildo


Paulo Batista


Ricardo Manhães


Futebol de Rua - Luís Fernando Veríssimo


Pelada é o futebol de campinho, de terreno baldio. Mas existe um tipo de futebol ainda mais rudimentar do que a pelada. É o futebol de rua. Perto do futebol de rua qualquer pelada é luxo e qualquer terreno baldio é o Maracanã em jogo noturno. Se você é homem, brasileiro e criado em cidade, sabe do que eu estou falando. Futebol de rua é tão humilde que chama pelada de senhora.
Não sei se alguém, algum dia, por farra ou nostalgia, botou num papel as regras do futebol de rua. Elas seriam mais ou menos assim:

DA BOLA : A bola pode ser qualquer coisa remotamente esférica. Até uma bola
de futebol serve. No desespero, usa-se qualquer coisa que role, como uma pedra, uma lata vazia ou a merendeira do seu irmão menor, que sairá correndo para se queixar em casa. No
caso de se usar uma pedra, lata ou outro objeto contundente, recomenda-se jogar de sapatos.
De preferência os novos, do colégio. Quem jogar descalço deve cuidar para chutar sempre com aquela unha do dedão que estava precisando ser aparada mesmo. Também é permitido o uso de frutas ou legumes em vez da bola, recomendando-se nestes casos a laranja, a maça, o chuchu e a pêra. Desaconselha-se ouso de tomates, melancias e, claro, ovos. O abacaxi pode
ser utilizado, mas aí ninguém quer ficar no golo.

DAS GOLEIRAS : As goleiras podem ser feitas com, literalmente, o que estiver
à mão. Tijolos, paralelepípedos, camisas emboladas, os livros da escola, a merendeira do seu
irmão menor, e até os eu irmão menor, apesar dos seus protestos. Quando o jogo é importante, recomenda-se o uso de latas de lixo. Cheias, para agüentarem o impacto. A distância regulamentar entre uma goleira e outra dependerá de discussão prévia entre os jogadores. Às vezes esta discussão demora tanto que quando a distância fica acertada está na hora de ir jantar. Lata de lixo virada é meio golo.

DO CAMPO : O campo pode ser só até o fio da calçada, calçada e rua,
calçada, rua e a calçada do outro lado e nos clássicos o quarteirão inteiro. O mais comum é jogar-se só no meio da rua.

DA DURAÇÃO DO JOGO Até a mãe chamar ou escurecer, o que vier
primeiro. Nos jogos noturnos, até alguém da vizinhança ameaçar chamar a polícia.

DA FORMAÇÃO DOS TIMES O número de jogadores em cada equipe varia,
de um a 70 para cada lado. Algumas convenções devem ser respeitadas. Ruim vai para o golo. Perneta joga na ponta, a esquerda ou a direita dependendo da perna que faltar. De óculos é meia-armador, para evitar os choques. Gordo é beque.

DO JUIZ : Não tem juiz.

DAS INTERRUPÇÕES : No futebol de rua, a partida só pode ser paralisada
numa destas eventualidades:
a) Se abola for para baixo de um carro estacionado e ninguém conseguir tirá-la. Mande o seu irmão menor.
b) Se abola entrar por uma janela. Neste caso os jogadores devem esperar não
mais de 10 minutos pela devolução voluntária da bola. Se isto não ocorrer, os jogadores devem designar voluntários para bater na porta da casa ou apartamento e solicitar a devolução, primeiro com bons modos e depois com ameaças de depredação. Se o apartamento ou casa for de militar reformado com cachorro, deve-se providenciar outra bola.
Se a janela atravessada pela bola estiver com o vidro fechado na ocasião, os dois times devem reunir-se rapidamente para deliberar o que fazer. A alguns quarteirões de distância.
c) Quando passarem pela calçada:
1) Pessoas idosas ou com defeitos físicos.
2) Senhoras grávidas ou com crianças de colo.
3) Aquele mulherão do701quenunca usa sutiã.
Se o jogo estiver empate em 20 a 20 e quase no fim, esta regra pode ser
ignorada e se alguém estiver no caminho do time atacante, azar. Ninguém mandou invadir o campo.
d) Quando passarem veículos pesados pela rua. De ônibus para cima. Bicicletas e Volkswagen, por exemplo, podem ser chutados junto com a bola e se entrar é golo.

DAS SUBSTITUIÇÕES Só são permitidas substituições:
a) No caso de um jogador ser carregado para casa pela orelha para fazer a
lição.
b) Em caso de atropelamento.

DO INTERVALO PARA DESCANSO: Você deve estar brincando.

DA TÁTICA : Joga-se o futebol de rua mais ou menos como o Futebol de
Verdade (que é como, na rua, com reverência, chamam a pelada), mas com algumas importantes variações. O goleiro só é intocável dentro da sua casa, para onde fugiu gritando por socorro. É permitido entrar na área adversária tabelando com uma Kombi. Se a bola dobrar a esquina é córner.

DAS PENALIDADES ; A única falta prevista nas regras do futebol de rua é
atirar um adversário dentro do bueiro. É considerada atitude antiesportiva e punida com tiro indireto.

DA JUSTIÇA ESPORTIVA : Os casos de litígio serão resolvidos no tapa.


Floreal





Mort Walker


O Sexo e o Futebol - Luis Fernando Veríssimo


No que se parecem o sexo e o futebol?
No futebol, como no sexo, as pessoas suam ao mesmo tempo, avançam e recuam, quase sempre vão pelo meio, mas também caem para um lado ou para o outro, e às vezes há um deslocamento.
Nos dois é importantíssimo ter jogo de cintura.
No sexo, como no futebol, muitas vezes acontece um cotovelaço no olho sem querer, ou um desentendimento que acaba em expulsão.
Aí um vai para o chuveiro mais cedo. Dizem que a única diferença entre uma festa de amasso e a cobrança de um escanteio é que na grande área não tem música, porque o agarramento é o mesmo, e no escanteio também tem gente que fica quase sem roupa.
Também dizem que uma das diferenças entre o futebol e o sexo é a diferença entre a camiseta e a camisinha. Mas a camisinha, como a camiseta, também não distingue, ela tanto pode vestir um craque como um medíocre.
No sexo, como no futebol, você amacia no peito, bota no chão, cadencia, e tem que ter uma explicação pronta na saída para o caso de não dar certo.
No futebol, como no sexo, tem gente que se benze antes de entrar e sempre sai ofegante. No sexo, como no futebol, tem feijão com arroz, mas também tem o requintado: a firula e o lance de efeito. E, claro, o lençol.
No sexo também tem gente que vai direto no calcanhar. E tanto no sexo quanto no futebol o som que mais se ouve é aquele "uuuuuuu".
No fim, sexo e futebol só são diferentes, mesmo, em duas coisas.
No futebol, com a devida exceção ao goleiro, não se pode usar as mãos.
E o sexo, graças a Deus, não é organizado pela CBF.





Outros tempos – Luis Fernando Verissimo


Eu sou do tempo em que crônicas que começavam com “eu sou do tempo”, eu, pelo menos, não lia, pois sabia que eram escritas por velhos para velhos e não teriam nada que me interessasse. Só para dar uma ideia de quanto tempo faz.

Eu sou do tempo em que torcedor de futebol olhava em volta antes de gritar palavrão nos estádios. Para ver se não tinha “família” por perto. “Família” era eufemismo para mulher, difícil de encontrar em estádios de futebol brasileiros daquele tempo. Raro era o homem que levava a “patroa” ao futebol. Mais raro ainda o que levava a filha ou a namorada. Que, quando um palavrão era gritado nas suas imediações, tinham que fazer cara de quem não ouvira. Ou não sabia o que era. Quando alguém ouvia um vizinho de arquibancada gritar um palavrão, era comum advertir, preocupado: “Olha as famílias.” Hoje, claro, as famílias se unem no palavrão gritado em coro.

No caso de um time estar dominando o jogo sem deixar o adversário contra-atacar, invariavelmente ouvia-se o grito:

— Aluga-se meio-campo!

Balão para o alto?

— Viva São João!

E o admirável era que as frases sempre faziam sucesso. Sempre provocavam risos e

olhares de aprovação, como se tivessem sido improvisadas na hora. “Aluga-se meio-campo...”

Boa, boa. Muito engraçado também era, depois que o jogador errava um chute, mandá-lo pôr o pé na fôrma. O pessoal tinha cada uma... Lembro uma frase de que eu gostava muito. Quando um jogador apelava para uma jogada mais rude, maltratando a bola ou o adversário, ouvia-se o grito indignado:

— Olha o recurso!

Significava que faltava recurso técnico ao jogador e por isso ele estava cometendo aquela barbaridade.

— Olha o recurso!

Um chamamento aos brios — que, pensando bem, também é uma frase antiga. Afinal, o futebol está cheio de recursos. Quem jogava feio era porque não os tinha, e portanto nem deveria estar em campo.

Nunca mais ouvi o “olha o recurso!”. Talvez porque se a frase ainda estivesse em uso, nos jogos de hoje não se ouviria outra coisa.

Eu sou do tempo em que se chamava aos brios.

 Nani

Arionauro



Meu coração – Luis Fernando Verissimo

No fim, desculpe a literatura, é tudo entre nós e o nosso coração. Depois do dito e do feito, depois da paixão e da razão, depois da vida das células e da vida social e da vida cívica e das idas e das voltas, e da História e da biografia, e do que os outros fizeram conosco e do que nós fizemos com os outros, é tudo entre nós e ele. Segundos fora. Nós e ele. A única conversa que vale, a única intimidade que conta.

O coração não tem nada a ver com nada, fora a sístole e a diástole e a sua fisiologia medíocre. Ele nem nos daria conversa, se não dependesse de nós, se não precisasse da embalagem, dos terminais e de alguém que cuide dele. Tudo que lhe atribuem, do mais romântico ao mais calhorda, é falso. Trata-se de um mero músculo, e de um músculo egoísta, que só quer saber da sua própria sobrevivência. Da qual, por uma cruel coincidência, depende a nossa.

Fala-se do “time do coração”. Mentira. O coração não tem time. O coração não se interessa por futebol. Só hoje, por exemplo, o meu se deu conta de onde estava. Paris, Nantes, Marselha ou qualquer outra cidade, é tudo o mesmo para ele, desde que ele tenha um lugar seguro onde possa bater e cuidar da sua vidinha. Mas de repente ele se deu conta e pediu satisfações. Para onde eu o tinha trazido?

Expliquei. A França, a Copa, o Brasil, os jogos, a beleza dos jogos...

Meu coração não quis ouvir falar da beleza dos jogos. Ele não tem nenhum senso estético.

Quis saber que história era aquela de morte súbita.

— É uma maneira nova de decidir as partidas que acabam empatadas. Há uma

prorrogação e o primeiro gol quem marcar ganha.

Meu coração não quis acreditar.

— Quer dizer que, se esse time pelo qual você torce, como é mesmo o nome?

— Brasil.

— Quer dizer que se o Brasil empatar com algum outro time, tem prorrogação com

morte súbita?

— É...

— Você sabia disso quando me trouxe para cá?

— Sabia.

— Você deliberadamente me trouxe a um evento em que eu posso parar de repente,

mesmo não tendo nada a ver com isso? Não era para ser um campeonato de futebol, um esporte, um divertimento, enfim, nada que me dissesse respeito?

— Desculpe. Eu tentei substituí-lo pelo distanciamento crítico, mas...

— Só me diz uma coisa. Se a prorrogação terminar sem que ninguém marque gol, o que acontece?

— Aí decidem nos pênaltis.

— Me leva pra casa.

— O quê?— Me leva pra casa imediatamente. E pare de me envolver nos seus divertimentos. Você  parece que não tem coração.

— Mas nada disso vai acontecer com o Brasil. Prorrogação, pênaltis, nada disso.

— Quase aconteceu contra a Dinamarca!

— É, mas...

— Me tira daqui!

 

Arionauro


Choque Cultural - Luís Fernando Veríssimo

 

        Todos ficaram preocupados quando o Márcio e a Bete começaram a namorar porque cedo ou tarde haveria um choque cultural. Márcio era louco por futebol, Bete só sabia que futebol se jogava com os pés, ou aquilo era basquete? Avisaram a Bete que para acompanhar o Márcio era preciso acompanhar a sua paixão e ela disse que não esquentassem, iria todos os dias com o Márcio ao Beira Mar, se ele quisesse.

        - Beira Rio, Bete...

        Naquele domingo mesmo, Bete estava com Márcio no Beira Rio, pronta para torcer ao seu lado, e quase provocou uma síncope em Márcio quando tirou o casaco do abrigo.

        - O que é isso?!

        Estava com a camiseta do Grêmio, em marcante contraste com o vermelho que Márcio e todos à sua volta vestiam. Desculpou-se.

        Disse que pensara que se pudesse escolher uma camiseta que combinasse com a roupa e ...

Está bem, está bem – interrompeu o Márcio. – Agora veste o casaco outra vez.

- Certo – disse Bete, obedecendo. E em seguida gritou “Inter!”, depois virou-se para o Márcio e disse: - O nosso é o Inter, não é?

        - É, é.

        - Inter! Olha, eu acho que foi gol!

        - O jogo ainda não começou. Os times estão entrando em campo.

        Bete agarrou-se ao braço de Márcio.

        - Você vai me explicar tudo, não vai? Gol de longe também vale três pontos?

        - Não. Vale dois. O que que eu estou dizendo? Vale um.

        Mas Bete não estava mais ouvindo. Estava acompanhando um movimento no gramado com cara de incompreensão.

        - Pensei que em futebol se levasse a bola com o pé.

        - É com o pé.

        - Mas aquele lá está levando embaixo do braço.

        Márcio explicou que aquele era o juiz, e que estava levando a bola embaixo do braço para o centro do campo, onde iniciaria o jogo. Não, os outros dois não estavam ali para evitar que tirassem a bola das mãos do juiz, como no futebol americano. Eles eram os auxiliares do juiz. O que os auxiliares faziam?

        - Bom, quando um dos auxiliares levanta a bandeira, o juiz dá impedimento.

        - E o que o auxiliar faz com o impedimento?

        Márcio suspirou. Foi o primeiro dos 117 suspiros que daria até o namoro acabar duas semanas depois. Explicou:

        - Os auxiliares sinalizam para o juiz que um jogador está em impedimento, isto é, está em posição irregular, impedido de jogar, e o juiz apita.

        - Meu Deus!

        Márcio olhou para Bete. O que fora?

- O juiz apita?! – perguntou Bete, com os olhos arregalados.

        - É. O juiz sopra um apito. Aquilo que ele tem pendurado no pescoço é um apito.

        - Ah.

        Bete sentiu-se aliviada. Por alguns instantes, a ideia de um homem que apitava, sabia-se lá por que mecanismo insólito, quando lhe acenavam uma bandeira, parecia sintetizar toda a estranheza daquele ambiente em que se metera, por amor. Ele não apitava. Soprava um apito. Era diferente.

        Mas Bete notou, pela cara do Márcio quando ela disse “Ah”, que estava tudo acabado.

Myria



Vermelho – Luis Fernando Verissimo

Paulinho da Viola descreveu a primeira vez que viu desfilar a Portela. Aquele azul que passou em sua vida não era do céu, não era do mar. Era um azul só delas, da Portela e da sua lembrança. Um azul exclusivo, inexplicável, único, que nunca mais seria o mesmo. Mas não era o azul que jamais se repetiria — era a sensação de vê-lo pela primeira vez. A mesma sensação que eu tive na primeira vez em que fui a um jogo de futebol, um Grenal, e vi entrar em campo o Internacional. O vermelho da sua camiseta não era do sangue, não era do fogo. Eu nunca tinha visto um vermelho assim antes, e nos sessenta anos seguintes nunca o vi da mesma maneira outra vez. Um vermelho só reproduzível na memória. Um vermelho inaugural, inédito, como o de um rio de lava no começo do mundo. E o meu coração se deixou levar.

A família tinha voltado a Porto Alegre depois de dois anos passados nos Estados Unidos, e eu, com nove anos, precisava escolher um time como forma de me reintegrar nos hábitos da terra. O Inter era o time mais em evidência no estado na época. Ganhava todos os campeonatos e era apelidado de Rolo Compressor, tal a sua vantagem sobre os outros. Escolhi o time vencedor.

Mas não foi só isso. Nos Estados Unidos, eu tinha contribuído para a vitória das forças aliadas contra as forças do Eixo, matando japoneses e alemães aos milhares nos meus jogos de guerra solitários. O Grêmio, naqueles tempos, só aceitava jogadores brancos, e sua torcida era quase toda branca. Não escolhi torcer pelo Inter para continuar defendendo a democracia por outros meios, sem minha metralhadora, nem por qualquer manifestação precoce de consciência social — mas que era bom torcer pelo time dos negrinho contra o time dos alemão, era. Ainda mais que os negrinho ganhavam sempre. A política racial do Grêmio acabou com a contratação do Tesourinha, que fora o maior ídolo do Internacional e meu maior ídolo pessoal. Hoje os times e as torcidas de Inter e Grêmio se equivalem em variedade racial e social. Mas, quando fui ao meu primeiro Grenal, Tesourinha  ainda era do Inter (depois passou pelo Vasco) e o Grêmio ainda era o time dos alemão. Mas foi tamanho o deslumbramento com minha primeira visão das camisetas vermelhas entrando em campo que esqueci um fato importante daquele jogo: o Grêmio ganhou o Grenal e foi o campeão de 1946. Sempre convivemos assim: uma torcida esquecendo ou tentando diminuir as glórias da outra. Nunca reconhecemos o campeonato do mundo vencido pelo Grêmio emTóquio, por exemplo. Era outra competição, outro mundo. Tóquio passa a valer alguma coisa a partir de agora.

E já posso imaginar aquele vermelho entrando em campo, em Tóquio. Um vermelho como nenhum outro, um vermelho primal como o das minhas lembranças de menino, mas inaugurando outra história.

 

Genildo


Gilmar


Meus dois pedidos -  Luis Fernando  Verissimo

Agora posso contar. Fui eu que consegui a vitória do Internacional no campeonato mundial interclubes, no Japão, em 2006.

Foi assim. Recebi uma oferta do Diabo pela minha alma. Veio por e-mail, de sorte que nem vi a sua cara. Ele procurava na internet pessoas dispostas a trocar sua alma pelo que quisessem. Respostas para 666belzebu.com. A pessoa empenhava sua alma ao Diabo, para entregar na saída, e em troca poderia pedir duas coisas. Mas só duas coisas.

Perguntei como eu poderia ter certeza de que ele cumpriria a sua parte no trato. Depois da minha alma empenhada, contrato assinado com sangue etc., ele poderia simplesmente não atender os meus pedidos. Ele propôs que fizéssemos um teste. Que eu pedisse alguma coisa impossível. Que o meu pedido fosse um delírio, algo totalmente fora da realidade. Se ele cumprisse o prometido, eu saberia que sua oferta era para valer. E só então lhe entregaria a minha alma. Concordei.

Qual seria o meu primeiro pedido? Pensei imediatamente no Internacional. Está certo, antes pensei na Luana Piovani, mas aí achei que poderia dar confusão. Em seguida pensei no Internacional. Um campeonato do mundo para o Internacional! Decisão contra o Barcelona. Sua resposta veio num e-mail conciso:

— Feito.

E foi o que se viu. Vitória sobre o Barcelona contra todas as probabilidades. Inter campeão do mundo. O trato com o Diabo era, por assim dizer, quente. E eu podia fazer meu segundo pedido. Um bicampeonato do mundo para o Inter? Concluí que estava sendo egoísta demais. Estava pensando só na alegria dos colorados — e passageira, pois não poderia pedir vitórias do Internacional em todos os campeonatos, para sempre — e esquecendo o meu país.

Deveria pedir, pela minha alma, algo que desse alegria a todos, inclusive gremistas. O quê?

Quero que o Brasil se transforme num país escandinavo. Agora! Um país organizado, sem crime, sem fome, sem injustiça, sem conflitos, magnificamente chato. Era isso: minha alma por um país aborrecido!

Foi o que botei no meu e-mail para o Diabo. Ele respondeu perguntando se eu tinha pensado bem no que estava pedindo. Eu deveria saber que a adaptação seria difícil. A conversão da moeda, a língua, o frio, os hábitos diferentes... E que seria impossível preservar tudo o que nos faz simpáticos, e criativos, e divertidos — enfim, brasileiros no bom sentido — sem a bagunça e o mau caráter. Ou ser escandinavo só durante o expediente e brasileiro depois. Era mesmo o que eu queria? É, respondi. Chega desta irresponsabilidade tropical, desta indecência social disfarçada de bonomia, desta irresolução criminosa que passa por afabilidade, deste eterno adiamento de tudo. Faça-nos escandinavos, já!

O Diabo: “Tem certeza? Já?”

Eu: “Bom... Depois do carnaval.”

 

Arionauro


Infantilidades – Luis Fernando Verissimo

Só o futebol permite que você sinta aos 60 anos exatamente o que sentia aos 6. Todas as outras paixões infantis ou ficam sérias ou desaparecem, mas não há uma maneira adulta de ser apaixonado por futebol. Adulto seria largar a paixão e deixar para trás essas criancices: a devoção a um clube e às suas cores como se fosse a nossa outra nação, o desconsolo ou a fúria assassina quando o time perde, a exultação guerreira com a vitória. Você pode racionalizar a paixão, e fazer teses sobre a bola, e observações sociológicas sobre a massa ou poesia sobre o passe, mas é sempre fingimento. É só camuflagem. Dentro do mais teórico e distante analista e do mais engravatado cartola aproveitador existe um guri pulando na arquibancada. E esta nossa infantilidade compartilhada, de certa forma, redime tudo. Até o Eurico Miranda.

E também é a culpada pelo futebol profissional no Brasil ter vivido, até hoje, nesta doce irresponsabilidade sem cobrança e sem castigo. Nenhum clube de futebol precisa ser regido de uma forma legal e contábil porque nenhum existe no mundo real, adulto e fiscalizável. Todos contam com a tolerância carinhosa dedicada a crianças brincando de gente grande, ou de gente grande sendo criança. E a brincadeira fica cada vez maior e mais longe do controle. Nos últimos anos o comércio de jogadores de futebol, incluindo a repartição da propriedade do passe entre clubes e empresários e investidores, transformou-se num dos mais rentáveis negócios clandestinos do mundo, envolvendo trampas e tramoias que só podem ser imaginadas, já que muito pouco se torna público.

É muito saudável, portanto, que finalmente se investigue seriamente os negócios do

futebol e se exija comportamento adulto dos seus responsáveis e correção fiscal e transparência dos clubes.

Desde, claro, que seja dos outros e não do Internacional ou do Botafogo.

  

 


O menino dono da bola - Fabrício Carpinejar


A bola era cara antes dos anos 80. Não se reproduzia em série como hoje, não havia oferta do produto por diferentes marcas, não se adquiria a bola oficial da Copa, da Libertadores, do Campeonato Brasileiro e do Gaúcho, não podia ser encontrada em camelôs, muito menos tinha a aparência como a conhecemos: impermeável, sem costura, realmente esférica e de várias cores.

A bola tinha gomos de couro, que caíam conforme o uso. Ia se desfolhando como massa de pastel, até aparecer a bexiga, que saía para fora como uma espinha gigante pronta a estourar. Não durava muito. Costurada à mão, artesanal mesmo, exigia cuidados especiais, como esfregar sebo no couro, assim como um surfista passa parafina em sua prancha. Tudo para deixá-la mais resistente aos paralelepípedos e campos de terra batida.

O risco de perdê-la costumava ser imenso. Jogávamos também nas ruas, com traves de tijolos e, invariavelmente, diante do chute desesperado do zagueiro para desafogar o ataque, a bola quebrava uma vidraça ou parava no pátio de alguma residência, e os vizinhos não a devolviam, para compensar o prejuízo. Isso quando não terminava atropelada por um carro. O estouro ou a apreensão de uma bola poderia significar o término da brincadeira por meses, suspender o campeonato do bairro, pois a turma não desfrutava de condições de comprar outra.

Receber uma bola de presente costumava ser uma dádiva da classe média alta para cima. Coisa rara para nós, molecada descalça.

O que criou condições para o surgimento de uma figura odiada no meu tempo: o menino rico que dava carteiraço porque trazia a bola. Ele nunca jogava nada, inábil e desastrado, com alma perna de pau, mas mandava e desmandava nas partidas. Agia como um híbrido de gandula, técnico e cartola. Abusava da autoridade de sua posse. A pelada só começava quando ele autorizava, do lado do time que ele desejava, com o regulamento inesperado de seu humor.

Quando perdia, ele apitava o fim do duelo. Do nada, estragava a disputa, enervava o adversário dizendo que não havia vencedor já que o jogo foi suspenso e corria para casa com a desculpa de que a mãe o estava esperando. Queríamos bater em sua lata esnobe, enchê-lo de porrada devido a sua tirania, oferecer uma lição ao seu egoísmo filhinho da mamãe, porém pensávamos melhor e aceitávamos a cartolagem, passivos e obedientes, porque só ele possuía a bola, no raio de 10 quilômetros.

Todas as pessoas de que não gosto na vida, eu as imagino com uma bola debaixo do braço fugindo para casa. Nunca me recuperei dessa submissão na infância.

Bola - Fabrício Corsaletti




No lindo gramado diante do mar, a pousada tinha duas pequenas traves de PVC com rede e tudo, mas não tinha bola. Não jogo futebol há vinte anos, mas quando vi os golzinhos de bobeira fiquei com vontade de dar uns chutes. Pensei em comprar uma bola qualquer no centro da cidade. Depois lembrei de amigos com tornozelos e joelhos destroçados em peladas de fim de semana e desisti.

Certa manhã, ao lado da espreguiçadeira onde eu lia um romance deprimente, um pai e o filho de oito ou nove anos tratavam com excessiva delicadeza uma bola colorida. Pelo sotaque, eram argentinos. Quase levantei pra puxar conversa, contar que morei em Buenos Aires —com sorte me convidavam pra jogar. Mas tive pudor de atrapalhar aquele momento de intimidade entre pai e filho.

À tarde, porém, voltando de uma das praias do outro lado da ilha, topei por acaso com um saco de bolas em frente a uma papelaria. Pedi pro amigo que dirigia parar. Escolhi a mais firme, preta e branca, de borracha —um clássico—, e ao entrar no carro não era mais o mesmo.

Com aquela bola simples e perfeita sobre as pernas, senti todo o peso de ser um homem responsável (há quem duvide que eu tenha chegado a tanto) se evaporar no ar salgado e indiferente. Mudo, sem prestar atenção no papo dos três adultos que me acompanhavam, eu só queria saber dos gols que faria dali a pouco —numa alegria paralela à das ondas. Meus 12 anos renasciam das cinzas. Meu corpo pesado estava tinindo de novo.

Na pousada, deixei o chinelo e a mochila com a namorada e corri pro campinho com a bola embaixo do braço.

O menino portenho estava lá, perdido, procurando alguma coisa atrás do gol. Eram caracóis, que ele dispunha numa longa fila em cima da cerca de madeira que separava o gramado da praia. Perguntei se queria jogar. Não respondeu. Chutei a bola pra ele e ele chutou de volta pra mim.

Combinamos as regras: gol só dentro da grande área e defesa com as mãos só dentro da pequena área —marcamos as linhas com chinelos e camisetas. Cinco vira, dez acaba.

O moleque era melhor do que eu imaginava e em poucos minutos estava 3 a 1 pra ele. Mas eu não estava ali pra brincadeiras. Fiz, não me orgulho, algumas faltas quase graves. E não consegui evitar uma gargalhada abjeta após lhe dar um chapéu e marcar mais um. Placar final: 10 a 3 pra mim.

Então seus olhos se encheram de lágrimas. Foi até a cerca examinar os caracóis e na volta me desafiou a encarar outra partida. Disse que um dia seria jogador da seleção e que nunca perdia pros amigos do pai, velhos e barrigudos como eu. Devia ser verdade, pois dessa vez ganhou de 10 a 0.

Um dos meus melhores chutes ele defendeu com um salto de tigre digno de um Neuer, o goleiro alemão. Ao ficar em pé, disse:

- Piensan que soy arquero, pero soy jugador!

Esse momento de excessiva vaidade quase me fez reativar o modo agressivo-demente de antes. Mas agora o encanto estava quebrado e eu era apenas um tiozão à beira de um enfarte brincando com um menino corajoso nas férias de verão. Sua mãe apareceu, nos apresentamos, fiquei sabendo que o meu amigo se chamava Bautista. Um bom nome de jogador.


M. Schulz






Tadeu X Maria Angélica - José Roberto Torero
Ilustração: Fido Nesti


À primeira vista, Tadeu e Maria Angélica formavam um casal normal. Gostavam de cinema, de música e de viagens. Mas, acima de tudo, amavam o futebol. Só que, infelizmente, torciam para times rivais. 

No começo, isso não era um grande problema. Maria Angélica não se importava quando Tadeu comemorava as vitórias do time dele e Tadeu até dava parabéns para Maria Angélica quando o clube dela vencia. Mas talvez isso só acontecesse porque, na verdade, os dois times eram muito ruins, e as vitórias, muito raras. 

Então, no campeonato deste ano, as coisas mudaram. Novos reforços foram apresentados, técnicos foram contratados, as equipes melhoraram e as torcidas começaram a ter esperanças. 

As coisas mudaram tanto que os dois times chegaram à final do torneio. Tadeu comprou um uniforme azul e amarelo para ir ao estádio. Maria Angélica foi com uma enorme bandeira verde e branca. 

Os dois sentaram lado a lado durante a partida. Para evitar brigas, tentavam não vibrar demais quando seus times acertavam um lance, nem zombar do outro quando 
a equipe adversária cometia algum erro. 

O zero a zero vinha mantendo a paz do casal, porém, no último lance do jogo, quando o time de Tadeu marcou o gol da vitória, ele não se conteve e gritou: "Gooooooooool!" 

E assim mesmo, com dez letras "o". 

Mas ele não parou por aí. Começou a dançar em volta de Maria Angélica enquanto cantava "Ê, ô, ê, ô, o meu time é um terror, ê, ô, ê, ô, o seu time é perdedor". 

Maria Angélica ficou verde de ódio. Então disparou: 

- Tadeu, você passou dos limites. Cartão vermelho! 

- Como assim, Maria Angélica, você está me expulsando de campo? 

- E do casamento. Você pisou na bola! 

- Tá, eu exagerei, mas também não precisa entrar de sola. 

- Agora é tarde. Você chutou nosso amor para escanteio! 

- Calma, eu não quero tirar o time de campo. Vamos tentar um segundo tempo... 

- Não, senhor. Você já estava na marca do pênalti. Pode ir para o chuveiro! 

- Quem sabe uma prorrogação? 

- Não. Fim de jogo. 

Tadeu sentou na arquibancada, apoiou a cabeça nas mãos e disse: 

- Tudo bem, Maria Angélica, se você quer que eu pendure as chuteiras, é assim que vai ser. Mas isso me deixa muito triste porque a gente fazia uma tabelinha e tanto. Eu acho que você bate um bolão e sempre que eu chegava em casa corria para o abraço. Sabe, eu vestia a camisa do nosso casamento... Eu jogava por amor... 

Aquela declaração deixou os olhos de Maria Angélica encharcados como um Maracanã sem drenagem. Então ela jogou longe sua bandeira e pulou sobre Tadeu como se ele tivesse marcado um gol decisivo. 

Tadeu olhou fundo nos olhos de Maria Angélica e, com voz emocionada, cantou: "Ê, ô, ê, ô, nosso amor é um terror!" 

- Tadeu, foi a coisa mais linda que alguém já me disse. Então os dois beijaram-se, fizeram as pazes e viveram felizes para sempre. 

Ou, pelo menos, até a próxima final de campeonato.


Marcelo Martinez




Meninos goleiros possuem algo que às vezes escapa pelos dedos da torcida - Bia Braune

João era mais novo, mas um palmo e meio mais alto e ombrudo em relação aos outros moleques. Algo que dificultava na hora de atravessar o buraco que dava para o terreno baldio, mas sem abalar o garbo de pequeno gigante de 11 anos.

Deslocava-se pela grama falhada e repleta de poças com a ginga grandalhuda dos que já têm a solidez necessária. "Vai pro gol, João, tranca lá!", gritava um baixote de aparelho fixo, capitão do time menos por

mérito e mais por ser dono da bola. "Faz a muralha humana!" —e a isso se resumia sua preleção. João posicionado entre uma vassoura e um rodo cedidos pela avó, à guisa de traves.

No verão, todas as partidas se davam pontualmente entre o fim da "Sessão da Tarde" e o lanche, respeitando o fuso horário das férias. Sem prorrogações negociáveis com pai, mãe ou juiz, pois ao anoitecer os mosquitos faziam marcação cerrada nos gambitos juvenis. Poupavam os de João, que usava meiões reforçados e uniforme completo, com luvas, num profissionalismo que ia além da várzea delimitada por chinelos de dedo.

Seu quarto, que eu e uma prima costumávamos invadir, num esquema tático ultrassecreto de olheiras mirins, também refletia essa paixão pelo esporte bretão. Ao contrário de guris obcecados pelo próprio time, dormia num hall da fama com pôsteres de Pelé, Zico, Romário e recortes sobre Renato Gaúcho no infame gol de barriga pelo Fluminense.

Um dia, reparei na única foto de ídolo que não era atacante. Colado à cabeceira da cama, o goleiro Barbosa. Entre altivo e pesaroso, com o rosto coberto pelos quadradinhos da rede. Uma recordação triste da derrota de dois a um no Maracanazo.

Durante aquelas copas de bairro, jogo era jogo. Ninguém parava para pensar que a bola rola diferente para garotos feito João. Havia ali a estatura ideal para o posto, mas também uma convicção.

Um senso solitário de responsabilidade, típico de quem troca o sangue que corre nas veias do ataque pela tensão que desemboca na paz de espírito da defesa. Como se todo menino goleiro possuísse uma honradez e um altruísmo que escapassem por entre os dedos dos que consideram o gol —e apenas o gol dos artilheiros— o grande momento do futebol.

"João!", vibrávamos, enquanto o gigante espalmava suas glórias no filó. Fosse qual fosse o resultado, a taça mais importante estava garantida: um sundae do tamanho de sua categoria. Preparado pela avó e filado pela torcida lambuzada de marshmallow, orgulho e repelente.


Duke



Vontades - Luís Pimentel

- Tenho vontade de mandar tudo pro inferno - disse o menino descalço.
- Tenho vontade de jogar bola - falou o que calçava tênis.
_ Besteira, jogar bola, correr sem motivo - disse o menino que não tinha tênis.
- Não é sem motivo. É atrás da bola - insistiu o menino que tinha.
 Um olhou pro tempo. o outro espantou um gato.
- Você diz isto porque tem tênis - falou o menino descalço, depois de pensar um pouco. 

Achados e Perdidos - Gregorio Duvivier


Passei a vida perdendo. Perdi o celular umas sete vezes. Achei umas quatro. Perdi a carteira umas vinte. Achei umas três vezes, uma delas cheia, nas outras duas vazias. Óculos, perdi uns trinta, achei zero. Perdi os anéis, achei os dedos. Guarda-chuvas e canetas Bic já não faço ideia, mas são feitos pra isso: pra se perderem pra sempre. Perdi moedas. Achei cinquenta reais na rua. Perdi meus documentos. Achei o documento dos outros. Perdi a hora. Mais de mil vezes. Essas nunca achei de volta. Perdi uma hora no verão, achei ela de volta no inverno. Perdi o voo. Muitos. Achei outros voos, sempre mais caros. Perdi a diferença de tarifa, perdi dinheiro. Achei maneiras de me divertir no aeroporto, achei amigos no saguão, achei o portão de embarque depois de muito custo. Perdi cabelo, achei melhor tomar finasterida. Perdi quilos no futebol, mas logo os encontrei na cerveja pós-futebol. Perdi horas no cartório e no Detran, perdi dias no Facebook e no Instagram, perdi meses parado no engarrafamento. Achei amigos na fila do Detran, no Facebook, no Instagram; no engarrafamento não achei ninguém. Na UFF, perdi um período inteiro na ponte. Achei chato. Nas aulas, perdi o foco, não achei nada. Perdi o sono. Achei umas ideias. Perdi a manhã porque perdi a noite porque perdi o sono. Perdi a noite porque perdi a manhã. Achei um bar aberto. Bebendo, perdi a linha. Achei a ressaca. No teatro, perdi a vergonha, perdi o senso do ridículo, perdi finais de semana. Achei uma maneira de ganhar dinheiro e de fazer novos amigos. Mesmo que por uma noite só, achei graça. Falando, perdi o fio da meada. Achei as drogas. Perdi neurônios. Achei graça em coisas que não tinham tanta graça. Perdi coisas por medo: medo de perder a memória, medo de perder a vida, medo de perder tempo com medo de perder tempo. Acho que tenho medo de achar coisas demais. Perdi um gol feito, na cara do gol. Achei que fosse morrer. Perdi muitos jogos com o Fluminense. Perdi uma semifinal pro Santos, de virada, e de virada também uma final pro Boca Juniors. Perdi a chance de pegar a Série B. Achei que não gostasse mais de futebol. Escrevendo, perdi a chance de ficar calado. Achei um monte de coisas que já não acho mais. Já me perdi uma dúzia de vezes. E já me achei, até demais –me achei o máximo, me achei uma merda, e já achei que perdi tempo demais me achando. Perguntaram pro jogador João Pinto: "O que você achou do jogo?", e ele: "Eu não achei nada. O Aloísio achou um pente". Nunca achei um pente.



 Frank & Ernest - Bob Thaves     

Era Inveja - Maitê Proença  

(Revista Época – 2005)


No Brasil três coisas são indiscutivelmente democráticas. A praia, que debaixo de um sol junta madame e funkeira trajadas no mesmo uniforme. O futebol, que une o ladrão e o padre numa imensa fraternidade. E o trânsito, que bota o Zé do Chevete e João do Jaguar lado a lado, paralisados pela mesma encrenca. Das três brasilidades, o futebol é o que mais me intriga.

Tenho um namorado que ama a bola. É uma pessoa cheia de virtudes, mas se há uma constância em seu caráter, esta é a impontualidade. Não consegue chegar na hora, o mundo o atrapalha, a menos é claro no caso do futebol. Não falo aqui daquele jogo no estádio com hora oficial pra começar, refiro-me à pelada, ao racha, aquele bate-bola entre amigos, que no caso aqui de casa acontece três vezes por semana. O campo é longe, uma viagem, o sol a pino - não importa. Dia do compromisso logo cedo o moço fica ansioso, não pode atrasar e não há imprevisto que o segure. Nesses dias meu amor é um britânico!

Sábado desses resolvi acompanhá-lo. Os companheiros de partida não gostaram nadinha, mas gentis, fizeram que sim. Aquilo não é lugar de mulher eu já devia saber. Pra compensar o mal-estar, começa o jogo e eu bato muita palma, exagero o entusiasmo, assovio e tanto faço que o dono do campo a quem eu bajulava escancaradamente sentiu-se na obrigação de me dedicar um gol. Segue o embate com altos e baixos, a coisa aquece e pimba... um golaço, aquele chutão do meio do campo pra dentro da rede à Roberto Carlos.

As más línguas desmerecendo o artilheiro, dizem que o momento é histórico e não se repetirá - não acredito, foi jogada de mestre; vi e guardarei na memória. Continua a partida com bons momentos, outros nem tanto, uma contusão aqui, uma falta ali, um corpo caído no chão. De repente me bate uma estranheza e vou percebendo que acima da bola, das jogadas, do corre pra lá e pra cá, o que mais se via, na verdade, eram discussões, ofensas, xingamentos e uma roubalheira de fazer corar um palmito. A coisa chegou num ponto em que tive a certeza que terminado aquilo os adversários não voltariam a se falar. Acaba o jogo. Entre vitórias e desilusões, corre-se pro vestiário e devo dizer que nem na feira fala-se tão alto e ao mesmo tempo quanto num banheiro cheio de homens; eu não estava dentro, mas nem precisava... Fiquei quietinha do lado de fora esperando meu namorado, que, pela delonga, tomava um banho de Cleópatra. Assim, pude observar bem os outros rapazes que sorridentes e limpinhos iam saindo do vestiário qual amigos de infância. Aqueles mesmos que há pouco se juravam de morte agora pavoneavam-se uns pros outros aos tapinhas nas costas. Havia ali cantores, compositores, um sapateiro, o editor de um jornal, um empresário da música, atores, um jogador aposentado, dois médicos, e alguns moços das redondezas empobrecidas cuja competência em campo desequilibrara o jogo - tudo adversário de sangue na hora da bola e amigo do peito na saída pro chopp. Na pelada não há rancores, o que se passa em campo fica no campo. Nem pudores, ali são todos craques - o vírus da imodéstia ataca democraticamente. Uma beleza!

Fui-me embora com um vazio a futucar o espírito. O que nós mulheres temos de parecido, o shopping, o salão? Nem chegam perto. Não pode xingar, espernear, soltar os sapos da garganta - além do que, num e noutro, o máximo de exercício que se faz é com a língua na futrica da vida alheia - muito chato. Não havia como negar, o brinquedo dos rapazes é divertido como só, e meu vazio era de inveja.

Nós mulheres não temos nada que se compare.

Allan Sieber



Fabiane Langona - Viver Dói

Miguel Paiva

90 minutos - Martha Medeiros

A primeira Copa que recordo com clareza foi a de 1970, eu tinha oito anos. Assisti a todos os jogos do Brasil sentada no chão, lugar de criança. O sofá era reservado aos mais velhos (pai e mãe entrando na casa dos 30, uns fósseis), então a mim restava o parquet, que era bem limpinho.
Lembro que eu torcia, vibrava, não parava quieta, e esse não parar quieta incluía levantar e ir até o banheiro, depois ao quarto para escrever alguma coisa no diário, passar na cozinha para pegar um suco e uma bolacha Maria, voltar à sala, ver mais um pouco do jogo, e então dar uma descidinha até ali na rua para ver se tinha alguém com quem brincar, não tinha, voltar, assistir ao jogo mais um pouco, de novo ir ao quarto para ver se tinha tema para entregar na segunda-feira e, se tivesse, fazê-lo, e então voltar à sala a tempo de ver o Carlos Alberto fechando a goleada de 4 a 1 contra a Itália e o Brasil levantando a taça Jules Rimet.
Hiperativa? Não, isso nem existia. E também não era por causa do desconforto do chão que eu me levantava de tempos em tempos para me distrair com outras coisas. É que jogo de futebol, naquela época, demorava uma eternidade. Jogo de futebol durava umas quatro horas e meia no tempo regulamentar. Pensando bem, acho que cinco horas. Ou seis. Jogo de futebol engolia todo o domingo.
Quando o pai saía para o estádio com meu irmão, eu e minha mãe íamos a uma sessão dupla de cinema, depois dávamos uma passadinha na casa da vó, tomávamos um lanche no Joe´s e, quando voltávamos para casa, ligávamos o radinho e o jogo deles ainda estava no primeiro tempo.
Quando o pai dizia “hoje tem jogo”, eu ia para o sítio dos primos em São Sebastião do Caí, brincava, brincava, brincava e, quando voltava para casa, o juiz ainda não tinha apitado o fim da partida.
Jogo de futebol era algo tão longo, tão extenso que parecia iniciar-se na quarta e terminar na quinta, dava tempo de o edifício em obras ao lado do nosso ficar pronto, alguém podia se submeter a uma cirurgia no cérebro durante uma semifinal que receberia alta antes da decisão por pênaltis.
Dizem que jogo de futebol sempre durou 90 minutos. Imagina se caio nessa.
É só comparar com os jogos de hoje. O time dá o pontapé inicial, eu vou rapidinho até o micro-ondas para ver se a pipoca ficou pronta e quando volto para a frente da tevê os jogadores já estão trocando de camisetas com os adversários e cumprimentando o juiz. O jogo começa às 13h, eu tiro a mesa, vou escovar os dentes e, quando retorno para a sala, o Galvão Bueno e a Patrícia Poeta já estão dentro da noite escura mostrando a reprise dos gols.
Tudo anda muito ligeiro, antes nada terminava. Noventa minutos durava uma vida. Mas agora, pelo visto, quem está durando uma vida sou eu.

CACO GALHARDO

O dia em que virei santista - José Roberto Torero Fernandes Junior

Aos nove anos eu ainda não tinha escolhido para quem torceria. E isso era muito bom, porque criava uma certa disputa entre o pessoal de casa.

Meu tio Mauro falava que eu tinha que torcer para o Palmeiras, porque o verde era a cor mais bonita do mundo. Mas como essa cor me lembrava alface, chuchu, chicória e outras verduras que eu tinha que comer à força, seu argumento não era grande coisa.

Já minha avó era corintiana. E muito. Escutava os jogos em seu radinho de pilha e gritava quando saía um gol. Porém, como o Corinthians estava há muito tempo sem ganhar um título (eram os idos de 1974 e o deserto ainda duraria mais três anos), ela não possuía grandes argumentos para me convencer. Ela só dizia que, mesmo perdendo, era bom ser corintiana. Mas eu ainda era muito criança para a metafísica.

Meu pai, por sua vez, tentava ganhar minha simpatia dizendo que o Santos era o time da minha cidade. O problema é que uma criança não tem o sentimento bairrista desenvolvido e, assim, esse argumento também não ia muito longe.

Como ninguém conseguia me convencer com palavras, passaram a tentar comprar minha opinião com presentes. Eu ganhava montes de chaveiros, jogos de botões e figurinhas. Mas, como havia um equilíbrio entre os presentes, o empate permanecia.

Porém, um dia, ou melhor, uma noite, meu pai mandou que eu me arrumasse porque ele ia me levar até a Vila Belmiro. Disse que iria acontecer um jogo muito importante e que eu tinha que ver aquilo.

Achei o estádio uma coisa fantástica. Nunca tinha visto tanta gente junta. Nem tantas bandeiras, nem tantas luzes. Era uma mistura de música, fogos de artifício e gritaria. Uma coisa selvagem e linda ao mesmo tempo.

De toda aquela festa eu tinha gostado muito. Já o jogo não estava sendo grande coisa. Mas aí, de repente, um dos jogadores do Santos se ajoelhou no meio do campo e houve um instante de silêncio, como se ninguém acreditasse no que via. Logo depois os torcedores ficaram de pé e começaram a bater palmas.

O jogador abriu os braços e virou-se, de joelhos, para os quatro lados do estádio. Olhei para trás e vi que todo mundo estava chorando. Pior, olhei para o lado e vi que meu pai estava chorando. Meu pai chorando!? Aquilo era uma coisa que eu nunca tinha visto na vida. Nem visto, nem imaginado.

Perguntei-lhe o que estava acontecendo. Ele me explicou que aquele homem de joelhos ia parar de jogar futebol.

“Vai parar por que é muito ruim?”, perguntei.

“Não, ele é o melhor do mundo”, meu pai me respondeu com os olhos cheios de lágrimas.

Eu não entendi aquela lógica: “Se ele é o melhor do mundo, por que vai parar de jogar?”

Meu pai não me respondeu, só ficou olhando para o campo. Talvez ele também não tivesse a resposta. Nem ele, nem os milhares de homens que choravam na Vila Belmiro, transformando as arquibancadas em cascatas.

Depois, quando o jogo recomeçou, com meu pai ainda triste e calado, resolvi que tinha que fazer alguma coisa para consolá-lo. Pensei no que poderia deixá-lo mais alegre. Pensei, pensei e, quando tive uma idéia, falei:

“Pai, acho que vou torcer para o Santos.”

Ele olhou para mim, enxugou as lágrimas, pôs a mão no meu ombro, sorriu e não falou nada. Mas nem precisava. Naquele momento, eu vi que tinha substituído Pelé.

Foi assim, no dia mais triste da história do meu time, que eu me tornei santista.

 Tom Cartoon

  

A bola da vida, a vida da bola - Jaime Cimenti

É madrugada, o estádio está vazio e silencioso como um cemitério ou uma escola no domingo. Eu, a bola da vez, a da Copa de 2018, chamada de Telstar, acordo ao lado de outras bolas, neste frio armário de aço. 

Desde 1930, em cada Copa do Mundo, apareci de formas e cores diferentes. Já fui marrom escuro, marrom claro, branca, branca e preta, amarela, tricolor, branca e azul e bonita e colorida na África em 2010, quando me chamaram de Jabulani (celebração), com 11 cores, representando os dialetos e as etnias. Fui meio rebelde naquela Copa e fazia curvas inesperadas. E daí, qual o problema? No Brasil, em 2014, fui a Brazuca, em homenagem ao orgulho de ser brasileiro. Os alemães, educados, já se desculparam pelas sete vezes que me colocaram no filó. Só lembram de mim na hora do jogo. 

O juiz filho da mãe me bota no centro, apita e manda me rolarem. No início, vão me dar uns toquinhos carinhosos, depois virão os pontapés fortes, as cabeçadas vigorosas, os empurrões nas cobranças de laterais e os passes e os chutes "colocados", sem muita força, que de tão bem colocados me fazem entrar lá no ângulo superior da goleira, onde dorme a coruja e os goleiros não conseguem chegar. 

Aprendi a gostar dos tapas e beijos, vou levando minha vida de bola, sendo a bola da vida, para quem ainda gosta de metáforas clichês, tipo "o futebol é o jogo da vida". Uns acham que o futebol é só um jogo maravilhoso, outros metem sindicato, política e grandes interesses financeiros no meio, com aquela corrupçãozinha humana básica junto. Mas isso deixa para lá. Sou só uma bola que prefere ser redonda. É hora de festa. 

O livro do americano sobre as negociatas do futebol fica para depois. Os boleiros têm relações muito ambivalentes comigo, tipo assim amor e ódio. No fundo, me amam. Em certos momentos, me colocam com cuidado na marca do pênalti, perto das bandeirinhas de escanteio ou no lugar onde vou ficar para baterem a falta. Aí levo um chute forte, mas, mesmo assim, dependendo do jeito como for tratada, vou cair no fundo das redes. 

Ou vou levar um soco do goleiro, um golpe de mãos espalmadas ou um abraço, como se eu fosse um bebê. Se o goleiro me pegar, vai gostar. Se for gol, vai me odiar e dar um pontapé para eu ir ao centro do gramado. Modestamente, sei que sou o centro das atenções. O estádio todo me acompanha, e as máquinas fotográficas e câmeras de televisão me seguem. Quando o jogo termina, aí é a solidão do vestiário, com as bolas reservas até o próximo treino ou jogo. Treino é treino, jogo é jogo. 

Gosto mais do jogo, tem mais gente me dando atenção. Sempre assim, até eu murchar e me aposentarem. Óbvio que gosto quando os jogadores, geralmente em casa ou escondidos, me dão abraços e beijinhos. Me acho importantíssima quando o jogador do time que está perdendo faz um gol e, em vez de comemorar, me pega no fundo das redes e leva até o centro, para tentar outro gol.

a propósito... 

Odeio quando chamam de bola a propina em negócios públicos ou privados. "Fulano levou bola" - isso é falta de respeito comigo, uma senhora idosa, mundialmente conhecida. Vão se catar! O que é que estão pensando? Bola cheia, bola redonda ou bola murcha ainda aceito, e óbvio que não gosto quando me passam errado e fico quadrada. Vão treinar! 

Gosto quando os pés dos atletas me tocam como se fossem mãos, como os pés de craques como Pelé e Puskás, por exemplo. Ter as mãos no lugar dos pés não é para qualquer um. Gosto de ficar parada e também de rolar, tipo assim a vida, que é imobilidade e movimento. Não reclamo de quando me movimentam em linhas retas, mas prefiro as curvas do caminho, que, afinal, retas parecem mais a morte, e curvas parecem mais vida.


André Dahmer


Os pés e as mãos - Mário Corso


Quem quiser saber por que o futebol se tornou o esporte mais popular do planeta terá que rebolar. Certamente a causa é multifatorial, mas arrisco uma teoria.

O futebol é o reverso do mundo do trabalho. É o território do ócio, do esforço não produtivo, da competição brincalhona. No mundo prático, quem governa são as mãos, e elas são o símbolo do trabalho. Não dizemos: mão de obra, dar uma mão, botar a mão na graxa? A mão é produção e nobreza. É ela que escreve, opera máquinas e aperta botões. Os pés nos levam de um lado a outro, mas são meros coadjuvantes, estão a serviço das artes das mãos.

No mundo do avesso, são os pés que mandam, são eles que dançam, que jogam bola. No campo, a mão não vale, não entra no jogo, a não ser a de Deus, como naquele dia em que, entre tantos dos seus nomes, Ele resolveu usar Diego. Pudessem tirá-la, os demais jogadores o fariam, elas estão ali só para dar graça e harmonia à corrida.

Para não dizer que são completamente inúteis só servem para saída lateral, a cobrança mais rasa e insignificante do futebol. Quem pode usá-las é o goleiro, mas ele é a exceção e é o masoquista do time. Ele é o mediador entre esses mundos, é o único que não pode correr pelo campo, está fixo como um trabalhador no seu setor. Brinca mas não tanto, está no pior lugar. Indispensável, mas excêntrico ao grupo.

No fim de semana as mãos tiram folga e quem entra em campo são os pés. Nesse momento, eles são valorizados e podem mostrar sua força, sua pontaria, sua destreza. Enquanto a motricidade das mãos é essencial para qualquer diligência prática, a dos pés nunca é treinada. Mão é cultura, pé é natureza. Poderíamos ter duas pernas esquerdas que ninguém perceberia. Já no futebol, é a inteligência motora dos pés que vale. O pé, como parte mais baixa do corpo, está ligado à terra, e recebe seus encantos pela sua condição animal, sua força indomada. No campo, os pés estão livres para chutar, para correr, driblar, mostrar ao mundo e às mãos seu valor.

As mãos quase falam, os pés são mudos. As mãos são imperialistas, não basta trabalharem, são elas que afagam, que selam pactos. São elas que deslizam pelo corpo do ser amado. Os pés querem sua parte, seu quinhão de importância, para isso ganharam os gramados de domingo.

A cabeça encontra razão motora apenas no futebol, na vida não damos cabeçadas. Usamos a cabeça para pensar a vida, mas ela fica quieta sobre os ombros e no máximo segura um chapéu e ganha um afago. Só no futebol, ela pode ser animal e desferir um golpe fatal no inimigo. Com o futebol, e o uso lúdico dos pés e da cabeça, a democracia corporal se estabelece, o corpo se integra e vive a felicidade de um feriado com sol.





Henfil

Um dia inteiro na cama - David Coimbra


Vou passar um dia inteiro na cama, um dia desses. Não por doença, que por doença não tem graça. Por preguiça. Por opção. É uma das metas da minha vida. Tem de ser um dia de inverno frigidíssimo, de preferência com chuva deitada e vento assoviante. E não pode ser feriado. Tem de ser dia útil, as pessoas esperando que eu saia de casa para produzir conteúdo.
Mas, não. Nesse dia não produzirei conteúdo.
Ficarei até a noite sentindo o calor reconfortante dos cobertores, a cabeça deitada no travesseiro, sorrindo, satisfeito. Quando o dia terminar, aí sim levantarei e tomarei um banho quente, muito quente, de 45 minutos, cantando diga lá meu coração da alegria de rever essa menina. Depois, vou me repimpar com uma massa com molho vermelho e uma garrafa de tinto e vou sentar à frente da TV e ver filme até a última curva da madrugada, filme policial, é claro, um bom filme policial americano.
Pronto. Realizado mais um objetivo de vida.
Parcos prazeres
Sou um homem simples. Prazeres simples me satisfazem. Um bom livro, um bom filme, um bom jantar. A companhia dos amigos e da mulher amada. O sorriso do meu filho.
O que mais um homem pode querer? Já sei.
Sei o que mais um homem pode querer: as delícias da memória. Uma das maiores satisfações de um homem é repassar o passado. Porque, na verdade, o passado é o mais importante.
As pessoas gostam de imaginar o futuro, mas o futuro só pode ser imaginado com base no passado. Mesmo que você queria ter um futuro completamente diferente do que é o seu presente hoje e do que foi o seu passado ontem, essa diferença é baseada no que existe e no que existiu. O futuro é sempre construído em relação ao passado.
Logo, o passado é o que importa. Além disso, o futuro jamais existirá. Você nunca vive no futuro; você vive no presente. O futuro está sempre por vir, e não chega nunca. Por isso, recordar é viver.
O melhor de todos
Recordar é um dos prazeres do homem. E o futebol tem uma função importante, nesse prazer de recordar. O futebol nos oferece referências. Muitas das ocorrências importantes da vida são demarcadas por grandes partidas de futebol. Ou grandes jogadores de futebol.
Roberto Rivellino foi o primeiro astro da minha vida futebolística, e ainda hoje ninguém o superou. Lembro de jogadas inverossímeis de Rivellino, de partidas de sonho, ele com a 10, Zico com a 8. Como aquela Seleção não foi campeã do mundo?
Lembro de mim mesmo na inocência daquele tempo, vendo Rivellino jogar. Como é que toda gente não sabe que Rivellino foi o melhor de todos?
Meus amigos dizem que, quando afirmo isso, sou vitimado pelos truques da memória. Naquele tempo, tudo era mágico, então o jogo de Rivellino também se tornou mágico. Só que conto com um auxílio luxuoso. Maradona. O melhor jogador da Argentina de todos os tempos disse que seu ídolo é Rivellino. E, se você continuar teimando, arremato com um que só viu Rivellino jogar em filme, um que está jogando ainda e que é o melhor gaúcho que algum dia já amarrou uma chuteira: Ronaldinho.
Ronaldinho, que está prestes a se inscrever como maior herói em cem anos de história do Atlético Mineiro, Ronaldinho disse que queria ser um Rivellino com o pé direito. Se for campeão da Libertadores, fará história, se tornará referência e alguém, algum dia, no futuro, recordará e dirá: ele foi um Rivellino. Ele foi.

 


A Deusa e A Bola - David Coimbra


Nas TVs daqui (E.U.A) passa uma propaganda que é assim: os caras estão jogando uma partida de futebol americano. São todos uns grandões alimentados a bacon e scrambled eggs, muito vermelhos debaixo daqueles capacetes, com suas ombreiras e sua bola elíptica. De repente, um carro entra no meio do campo e interrompe o jogo. Eles ficam olhando, surpresos. Do carro, agora estacionado, surge um par de pernas morenas, longas e lisas, os pés delicados calçados com escarpins.

Os jogadores olham, cada vez mais boquiabertos. Veem, então, aparecer a dona das pernas: uma deusa longilínea, sinuosa, os olhos azuis faiscantes, o rosto perfeito iluminado por um sorriso de superioridade. É a baiana Adriana Lima, que carrega debaixo dos braços macios uma bola de futebol, o nosso futebol, o soccer. Ela caminha até o meio do campo, pisa em cima da bola e ronrona:

– No meu país, “isso” é futebol.

E dá, de chapa, um chute à meia-altura que um americano bufa para encaixar.

Desse jeito, não tem como os ianques não se apaixonarem pelo velho esporte bretão.





Eddie - Futebol e Mulher


Mafalda - Quino

Futebol na cabeça - Sérgio Augusto

Em que a gente pensa quando pensa em futebol?
Não sei a resposta para esta transcendental pergunta, e só a estou formulando porque acabei de ler um livro que se propõe a respondê-la: What We Think About When We Think About Football - minha frase de abertura sem o ponto de interrogação. O título, decerto inspirado em Raymond Carver, ganhou um inevitável “soccer” na edição americana, da Penguin, lançada no mesmo dia que a inglesa, editada pela Prentice Books.
Seu autor é o filósofo britânico Simon Critchley, que se criou ouvindo a palavra “football”, mas nada tem contra sua denominação ianque (soccer: abreviatura de “association”) por considerá-la ainda mais próxima da essência do futebol, esporte coletivo, associativo, por excelência. E que não é jogado apenas com os pés, mas com o corpo inteiro.
Critchley, que vive há tempos em Nova York e dá aulas na New School for Social Research, já escreveu sobre Heidegger, Desconstrucionismo, Emmanuel Levinas, Hamlet, suicídio e David Bowie, de quem é fã ardoroso, finalmente chegou ao futebol, sua maior paixão, “a que mais fundo e extensamente” mexe com ele. Torcedor do Liverpool, não pretendeu filosofar sobre ela. Nem de brincadeira, como fizeram o grupo humorístico inglês Monty Python e o jornalista patrício Mark Perryman.
Há 46 anos, o Monty Python promoveu um match inesquecível entre as seleções de filósofos gregos e alemães, com Platão, Aristóteles, Epicuro e Sócrates enfrentando Kant, Hegel, Nietzsche (e o reforço de Franz Beckenbauer no meio de campo), que era de rolar de rir; confiram no YouTube. Já Perryman imaginou um dream team filosófico, com Camus (no gol, claro), Simone de Beauvoir na lateral direita, Jean Baudrillard e William Shakespeare de zagueiros, Nietzsche de volante e Wittgenstein na lateral esquerda; no ataque, Oscar Wilde (ponta-direita), Sun Tzu, Umberto Eco, Gramsci e, na extrema esquerda, o craque do reggae Bob Marley. Os critérios dessa escalação estão detalhados em Filósofos Futebol Clube, traduzido em 2004 pela Disal Editora.
Critchley nem sequer en passant os menciona em seu livro. Quando vê futebol, ele pensa em outras coisas; mais sérias, porém sempre abordadas com graça e leveza coloquial, pois seu público-alvo não pertence ao mundo acadêmico. Ao assistir à eliminação da seleção inglesa da Eurocopa 2016 pela Islândia, pensou na vitória do Brexit, a autoexclusão do Reino Unidos da União Europeia, ocorrida quatro dias antes, e traçou os paralelos que lhe pareceram procedentes entre as duas debacle num artigo publicado no site da New York Review of Books.
Seu livro é uma ode ao esporte mais - todos os adjetivos são dele - popular, proletário (“é o balé da classe trabalhadora”), fluido, dinâmico, apaixonante, poderoso, hipnótico e globalizado que existe. Um esporte metódico, raramente tedioso, cheio de clímaxes e suspense; de certo modo, o que as discussões filosóficas deveriam ser, ainda segundo Critchley: “Um diálogo bem fundamentado, com base em fortes e genuínas emoções”.
Mas o futebol é também um esporte intrinsecamente sujo - além de corrompido, como o mundo em que vivemos - pois useiro e vezeiro em quebrar regras e estimular a malandragem. Na opinião do professor, o uruguaio Luís Suarez, “possuído por uma determinação absoluta”, sintetiza como nenhum outro jogador em atividade o binômio “sedução” e “repulsa”, desperta tanta admiração e tanta antipatia. Suarez foi, a seu ver, o melhor jogador do Liverpool dos últimos 15 anos. Também são estrangeiros os dois melhores de seu time, no momento: o brasileiro Firmino e o egípcio Salah. Nesta ordem.
Critchley abre suas divagações filosóficas num bar em Moscou, de onde acompanhou a final da Champions League de 2017, Real Madrid 4x1 Juventus. Enquanto a bola rolava no galês Millenium Stadium, ele, cercado de uma algazarra juvenil embalada por The Cure e Queen, antevia a Copa na Rússia, no verão seguinte, como a mais exemplar de todas, na medida em que nela se juntariam dois campeões mundiais da corrupção, a Fifa e o governo Putin.
O filósofo considera o futebol o espelho mais fiel dos “horrores do capitalismo financeiro, do autoritarismo, das ditaduras”, e, paradoxalmente, um oásis, o exemplo único de um espírito comunitário e igualitário invisível em outras atividades humanas.
Entusiasmado por essa visão, por um lado pessimista, por outro idealista, ele chegou a defender a tese de que o futebol talvez fosse o último vestígio do ideal socialista no Reino Unido. Depois, numa entrevista, admitiu ter exagerado um pouco, em parte induzido pela histórica ligação do futebol com sindicatos, associações de operários e a galera dos pubs, em parte por um wishful thinking que, pelo visto, nem a guinada conservadora de Margaret Thatcher conseguiu esmorecer de todo.
Critchley analisa muitos dos problemas (violência, racismo, sexismo) enfrentados pelos torcedores, dentro e fora dos estádios, critica o volume insano de dinheiro que corre nas federações e nos clubes, mas, aqui e ali, abre espaço para interlúdios algo líricos sobre a bola e sobre Zidane.

Ao lançar o livro, meses atrás, ele arriscou vaticinar que, malgrado o conluio Fifa-Putin, “algo maravilhoso e inesperado” aconteceria na Copa na Rússia. A Islândia conquistando o caneco? Isso não, outra coisa. Afinal ele tem sérias desconfianças de que a Alemanha sairá vencedora mais uma vez. 
Laerte

Mafalda - Quino



Futebol - Carlos Drummond de Andrade


Futebol se joga no estádio?
Futebol se joga na praia,
futebol se joga na rua,
futebol se joga na alma.
A bola é a mesma: forma sacra
para craques e pernas de pau.
Mesma a volúpia de chutar
na delirante copa-mundo
ou no árido espaço do morro.
São voos de estátuas súbitas,
desenhos feéricos, bailados
de pés e troncos entrançados.
Instantes lúdicos: flutua
o jogador, gravado no ar
— afinal, o corpo triunfante
da triste lei da gravidade.
Arionauro


O torcedor - Carlos Drummond de Andrade

No jogo de decisão do campeonato, Eváglio torceu pelo Atlético Mineiro, não porque fosse atleticano ou mineiro, mas porque receava o carnaval nas ruas se o Flamengo vencesse. Visitava um amigo em bairro distante, nenhum dos dois tem carro, e ele previa que a volta seria problema.

O Flamengo triunfou, e Eváglio deixou de ser atleticano para detestar todos os clubes de futebol, que perturbam a vida urbana com suas vitórias. Saindo em busca de táxi inexistente, acabou se metendo num ônibus em que não cabia mais ninguém, e havia duas bandeiras rubro-negras para cada passageiro. E não eram bandeiras pequenas nem torcedores exaustos: estes pareciam terem guardado a capacidade de grito para depois da vitória.

Eváglio sentiu-se dentro do Maracanã, até mesmo dentro da bola chutada por 44 pés. A bola era ele, embora ninguém reparasse naquela esfera humana que ansiava por tornar a ser gente a caminho de casa.

Lembrando-se de que torcera pelo vencido, teve medo, para não dizer terror. Se lessem em seu íntimo o segredo, estava perdido. Mas todos cantavam, sambavam com alegria tão pura que ele próprio começou a sentir um pouco de flamengo dentro de si. Era o canto? Eram braços e pernas falando além da boca? A emanação de entusiasmo o contagiava e transformava. Marcou com a cabeça o acompanhamento da música. Abriu os lábios, simulando cantar. Cantou. Ao dar fé de si, disputava à morena frenética a posse de uma bandeira. Queria enrolar-se no pano para exteriorizar o ser partidário que pulava em suas entranhas. A moça, em vez de ceder o troféu, abraçou-se com Eváglio e beijou-o na boca. Estava batizado, crismado e ungido: uma vez Flamengo, sempre Flamengo.

O pessoal desceu na Gávea, empurrando Eváglio para descer também e continuar a festa, mas Eváglio mora em Ipanema, e já com o pé no estribo se lembrou. Loucura continuar flamengo a noite inteira à base de chope, caipirinha, batucada e o mais. Segurou firme na porta, gritou: "Eu volto, gente! Vou só trocar de roupa" e, não se sabe como, chegou intacto ao lar, já sem compromisso clubista.

Jaguar

Um Sonho no Estádio Vazio -  Moacyr Scliar

Desde criança ele vivia o tradicional sonho brasileiro: queria ser um grande jogador de futebol, destes que fazem carreira meteórica, que são convocados pela seleção, que ganham grandes quantias em dólar ou em euro. Um sonho que o acompanhava constantemente mas que, infelizmente, seria difícil de realizar. Porque ele era muito ruim no futebol. Muito ruim, não: ele era espantosamente ruim. Como é que um cara pode ser tão ruim, perguntavam os amigos, espantados. Ele errava os chutes, ele tropeçava na bola, ele não sabia fazer um passe. Até um gol contra conseguiu fazer, e foi o único de sua vida. Desiste, era o conselho que lhe davam os pais, os irmãos, os colegas de escola. Mas ele não desistia. A sua vida teria, de qualquer maneira, um estádio de futebol como cenário.
O que acabou acontecendo, mas não da maneira como esperava. De família pobre, cedo precisou arranjar um emprego. Como entendia alguma coisa de gramados (trabalhara como ajudante de jardineiro) foi contratado por um grande time da capital para fazer exatamente isso, cuidar do gramado. No que era imbatível. O gramado era uma perfeição, elogiado por jogadores, por juízes, por torcedores, pela imprensa. Gratificante, mas insatisfatório. Ele não queria cuidar do gramado, queria correr sobre o gramado, usando o uniforme do clube.
E um dia resolveu fazê-lo. Tendo chegado muito cedo ao estádio viu-se absolutamente sozinho ali. Mais: no vestiário encontrou um uniforme que um dos jogadores tinha deixado ali, e que ainda cheirava a suor. Junto, uma bola. Uma mensagem do destino.
Ele não hesitou. Tirou a roupa, vestiu o uniforme, pegou a bola e adentrou o gramado. Colocou a bola no centro do campo e, ouvindo um apito imaginário, deu início à partida. Com alguma dificuldade (Deus, ele era ruim mesmo) mas incentivado pela torcida igualmente imaginária, partiu em direção ao gol adversário, guarnecido (imaginariamente, claro) por um gigantesco goleiro. E aí, de curta distância, chutou no canto esquerdo.
Errou, claro. Errou feio. A bola, fraca, passou a uns cinco metros da trave.
Naquele silêncio sepulcral, ele catou a bola e voltou com ela sob o braço para o vestiário. Vestiu as roupas de jardineiro e foi trabalhar. Grandes jogadores precisam de grandes gramados. Disso ele cuidaria. Era sua missão. Era a sua maneira de vencer a partida da vida.

Luscar

Rogerio


Meditações futebolísticas - Roberto DaMatta

1. Um dos mistérios da vida coletiva é justamente o sentido da vida coletiva. Movidos a individualismo, ficamos estupefatos diante do significado do coletivo que, a rigor, não deveria ter capacidade de criar as circunstâncias não previstas que nascem do previsto e do esparrado. Do café malfeito ao gol do adversário; da vitória mundial no futebol da chamada sub-raça, forçada a redefinir-se; da investigação policial que - eis o inesperado do inesperado - leva à prisão quem se pensava acima da lei e - eis outra ironia - torna republicano um sistema avesso à igualdade.
2. O coletivo não é uma soma de indivíduos. Ele tem sua realidade e os seus códigos - a língua, a geografia e a história. Suas constituições e palcos nos quais entramos sem sermos chamados. Tal conjunto se faz por determinações coletivas. Concordo com Lévi-Strauss quando ele, freudianamente, põe em dúvida a consciência individual. E com Louis Dumont quando ele denuncia o primado do indivíduo (e da parte) como um valor instituído pela modernidade.
3. O esporte é uma instituição social delimitada. Ao contrário da rotina que não tem fim, ele tem tempo, espaço, gestos, objetos, vestimentas e regras próprias. No futebol da Copa que me embriaga, tirando os goleiros, nenhum jogador pode tocar a bola com a mão. Mas no mundo público nacional, dentro do qual o futebol acontece, os poderosos podem meter a mão nos dinheiros públicos e é somente neste século 21 que se cogita em puni-los com as reações que todos conhecemos. De um lado, há os que querem uma igualdade de todos como no futebol; do outro, há os que querem mudar as regras ainda que isso custe o fim do jogo.
4. Há um elo óbvio entre esporte e democracia.
5. No futebol, há um dinamismo contrário às rotinas. Mas as regras ancoram tudo. Numa sociedade constituída pelo “jeitinho” para certas situações e pessoas, conforme revelou minha colega e querida amiga Lívia Barbosa, começamos a ter uma clareza futebolística. Sem limites, não há chance de viver democraticamente. A distribuição equitativa de justiça e bem-estar exige talento e, acima de tudo, respeito às leis.
6. No esporte não cabe populismo, embora os populistas, fascistas e seus simpatizantes possam tirar proveito dos seus resultados. O humano não é puro.
7. Imagine um jogo de futebol no qual os jogadores ricos, famosos e de talento pudessem seguir seus desejos.
8. A famosa “transparência” é simplesmente a coerência entre pessoa, papel e norma coletiva. Quando isso não ocorre, temos malandragem. E o malandro, conforme mostrei em Carnavais, Malandros e Heróis, é personificado por Pedro Malasartes - o rei do mal-entendido que desmantela o planificado. Mestre da ironia, Malasartes é uma saída para o trabalho estigmatizado pela escravidão e por um sistema dominado por um Estado opressor e juridicamente onipotente.
9. Tenho reiterado que a experiência inconsciente da igualdade é básica na popularidade desse esporte no Brasil e no mundo. A integração pela igualdade permitiu juntar pretos e brancos, ricos e pobres, analfabetos e letrados. Foi o futebol que permitiu redefinir nossa autoestima. Hoje, quando punimos os pênaltis cometidos pelos poderosos, ele ajuda a desmistificar o nosso enraizado populismo.
10. Condenar um goleiro que “engole frangos” - um “frangueiro”, como se dizia antigamente- é uma coisa. Outra coisa é saber que o “frango” foi proposital num jogo que envolve o País e demanda honestidade e altruísmo - serviço para a coletividade e não para si próprio. O esporte, como o teatro, o romance (e os mitos) não mentem porque eles são ficcionais. Num filme ou romance não há “fake news” porque tudo é “fake”. Nessa esfera da vida, há uma desigualdade de raiz entre o produtor e o espectador.
11. Situado entre ficção e realidade, o esporte é, para lembrar Victor Turner, um “liminoide” - um espaço entre a realidade inexorável do trabalho e o entretenimento que permite com ela lidar.
12. A crise brasileira tem tudo a ver com luta para aplicar no campo político essa honradez às regras que legitima e dignifica o futebol. 
*
PS: Atordoado pelo futebol, eu digo. Não adianta reclamar. Na vida, como no jogo, temos de sobreviver a todas as falhas: as nossas, as que fazem parte da partida e as dos juízes.

Uma questão moral - Cristovão Tezza

Tentou ajeitar o relógio no pulso - ou o cronógrafo, como ele gostava de frisar aos ignorantes -, com uma ansiedade que logo se transformou em tensão muscular, subindo pelo braço até se alojar discreta no lado esquerdo de suas costas, ele até poderia apontar com o dedo se a mão chegasse àquele ponto cego de si mesmo: é aqui, doutor, se eu mexo assim, o corpo torcido no esforço, a pontada exata na alma do nervo.
Apenas um rosto, praticamente um vulto que ele viu de passagem ao descer ao vestiário para se trocar, depois de cumprimentar os conhecidos com a gentileza contida que seu trabalho exigia, teve esse poder elétrico de acordá-lo no mau sentido: sim, era o Robertson, ou o Bets, apelido de infância, ele conheceu todas as versões do mesmo ser, acompanhou cada passo inicial de sua carreira quase fulgurante, que se estagnou como reserva do Corinthians, para daí cair e desaparecer com a mesma facilidade, o driblador, o pipoqueiro, o malandro, o goleador de lua, o criador de caso.
Nunca mais ouviu falar. Assim como nunca mais ouviu falar da Maria, que se evaporou mais fulgurante ainda. E agora (estaria com 38 anos, como ele?) reaparece neste fim de mundo e neste campo esburacado, exatamente com o mesmo sorriso, para tentar levar aquele timeco à série B, no penúltimo jogo da rodada, talvez o último da vida dele. Então é aqui que ele veio parar? Enfim conseguiu fechar a pulseira do cronógrafo, brilhante no seu braço, e sorriu cordial para os dois bandeiras, que, disciplinados no banco diante dele, aguardavam o momento de subir, orgulhosos no uniforme preto.
Um deles era conhecido, o Mauro, bom menino, frequentava a igreja, tinha futuro; o outro nunca tinha visto mais gordo, indicação sabe-se lá de quem, prazer, Edislon, disse o garoto, prazer, João Batista, disse ele, e trocaram algumas palavras, mas ele estava tenso e irritou-se mais por imaginar que talvez pensassem que a tensão viesse do medo do jogo e da torcida, esmagada como um bicho atrás da tela de arame a poucos metros do campo, eu já passei por isso milhares de vezes, teve vontade de dizer, eu seguro esse povo no grito e no apito, comigo não tem conversa: uma vez esmurrou um presidente de clube que chegou a ele num vestiário como esse com um envelope cheio e um sorrisinho sacana, o que lhe valeu uma suspensão interminável, que se fodam, eu não preciso dessa merda, eles é que precisam de mim, como agora, me desenterrando do limbo para esse jogo de vida e morte, isso aqui é o inferno, por isso que me chamaram.
E quem eu encontro no campo, ele se imaginou justificando-se ao Tribunal Desportivo, para onde com certeza será chamado, quem sabe à própria mulher e aos seus três filhos, não, isso não, que não merecem a culpa. Mas alguém teria de saber realmente o que houve, e ele conferiu a amarração do apito no seu pulso direito para não perdê-lo, a sua arma, é minha arma branca, um dia disse a um amigo com um raro sorriso, ele jamais fazia piada de seu trabalho, uma arma branca no bom sentido, corrigiu, que não pensassem que.
E lembra do velho amigo com quem rompeu só porque, chegando à sua casa nova no bairro Madalena, erguida com o suor do seu rosto desde o terreno em 60 prestações, e depois tábua a tábua, pintadas por ele mesmo em cada friso, para quem trabalha de segurança a vida é dura, e o cara dá aquele tapinha nas costas diante de sua obra e diz, vejam se isso é coisa que se deve ouvir, e diz, o sujeitinho, "Caramba, quantos pênaltis você teve de apitar pra construir essa casa? Só naquela varanda tem uns cinco impedimentos, ahah!", e o churrasco entre amigos azedou, como se ele de fato tivesse pênaltis nas costas, nenhum, seu vagabundo, nenhum! Calma, João Batista, foi brincadeira, pô, a gente se conhece há quantos anos?!
Ele olhou o cronógrafo (custou caro esse relógio, esse sim, veio com o travo do supérfluo, uma expressão que ele guardou de um sermão e agora repetia ao delegado, enfim era o orgulho aceitável da profissão bem exercida, mas a casa é sempre trabalho sagrado, ele que fizesse brincadeira com a mãe dele) e sugeriu aos dois novatos uma breve oração antes do jogo, e os três fecharam os olhos (ele não ouviu a voz do Edislon, que talvez nem tivesse mantido os olhos fechados em respeito, quem sabe não fosse católico), Pai Nosso que estais no Céu, e de novo se cumprimentaram, um pouco mais relaxados agora, e o rugido que chegava pelo pequeno túnel deste estádio metido a besta, ele pensou, parece que mais os estimulava que amedrontava, mas ele pressentia o temor dos dois jovens colegas, subir ao campo era descer ao inferno, o grande teste da nossa profissão, pensou em dizer, como o veterano que orienta, já quase esquecido do Bets, mas era o próprio mesmo, nenhuma dúvida, ele ainda tentava se persuadir do contrário para se livrar do que deveria enfrentar.
Era ele sim, o Bets, bem acabado para a idade, e conferiu ainda a moeda para o sorteio e os cartões no bolso da camisa, o amarelo na frente (uma vez trocou os cartões e não destrocou para não perder autoridade, uma falta ridícula punida com cartão vermelho, o pior erro de sua carreira), e ali estavam quatro policiais militares à espera para que a trinca de árbitros chegasse ao campo em segurança, uns poucos passos sob a torcida ululante, ele nem ouvia mais, conferindo num lado, depois no outro, a perfeita fixação das redes sob o gol (outra vez quase apitou um gol-fantasma, a bola entrando por fora e se aninhando vagabunda no fundo, não fosse o auxiliar erguer a bandeira, ele -).
Sim, o Robertson, perdeu tudo mas não perdeu a pose, faixa de capitão, mãos na cintura e o sorriso perpetuamente cínico, ele sabe o mal que ele faz, à espera do início no círculo central, desde já conferindo o lado em que o sol se punha para azar do goleiro, deu coroa, ele sempre teve sorte mas nunca soube o que fazer com ela, escolheu o lado e distribuíram-se os times, os cumprimentos de praxe (ele de fato não me reconheceu), e antes de esticar o braço e dar partida, o número 7 deles aguardava o início ostensivamente no campo do adversário; ao ser advertido, agachou-se para amarrar o cordão da chuteira, e ele não teve dúvidas, avançou com o amarelo, o primeiro do jogo, antes mesmo de o jogo começar, vá fazer gracinha na casa da sua mãe, quase disse, mas o tumulto foi breve, alguém empurrou o idiota reclamão de volta ao seu campo e o primeiro apito se perdeu sob a vaia ensurdecedora, e só então ele fez o sinal da cruz, já correndo de olho na bola: hoje ele paga.
O jogo estava lento mais de nervoso do que de estudo, o que lhe dava tempo para pensar, vendo as coisas de longe, mas que não se enganasse: uma panela de pressão chiando baixo naqueles primeiros dez minutos, e com o rabo do olho percebeu que Robertson só ficava no bem-bom, lá na frente, deitado na banheira, economizando gás, à espera de uma bola solta e perdida que faria sua glória diante do goleiro em pânico, mas o jogo não saía do meio, passes curtos e errados dos dois times, na dúvida o chutão para a frente e para os lados.
Talvez expulsá-lo logo, mas isso seria pouco para fazer justiça. Percebeu o lateral para o time deles, a bola raspou na canela da defesa antes de sair, mas Edislon, de boa-fé, sem ângulo para ver, deu o contrário, o que ele aceitou, e foi o bandeira que levou a vaia. A paixão que sentia por ela, nos 18 anos, em janeiro de 1992, mas ele não podia dizer agora, porque casou com outra. Não foi covardia. Que homem casaria com ela naquela situação? Eles não eram nem noivos, apenas apaixonados de mãos dadas, o que era melhor ainda, ele sonhou. Um ato de justiça a se fazer, não por dinheiro, que não sou disso, mas por justiça, ele teria de dizer em alto e bom som (na verdade, já livre, cochichou ao padre Zélio quinze dias depois, e ouviu na penumbra do confessionário um longo silêncio que ele imaginou compreensivo), e apitou com prazer o impedimento escancarado de Robertson, voltando dos cinco metros de banheira fazendo o "não" cínico e sorridente com a cabeça, ele é engraçadinho.
E não está mesmo me reconhecendo, o que facilita as coisas. Inverteu uma falta clara que o idiota do camisa 7 levou, mandou-o levantar-se logo, daqui a pouco ele leva o segundo amarelo, fez a marca no gramado e correu para a área inimiga, contando em passos generosos a distância da barreira, eles que levassem logo um gol nos cornos, mas a bola foi parar no último anel da arquibancada. O goleiro fez cera para cobrar o tiro de meta (o empate classificava o time deles), e ele fez vista grossa, ainda pensando numa estratégia. Talvez devesse odiar Maria, não Robertson, mas não conseguia. Ainda foi perguntar, dois dias depois da tragédia, se ela precisava de alguma coisa, humilde como um tatu, e ela abraçou-o tão carinhosamente, chorando feito criança, se ele tivesse forças para enfrentar a vergonha, mas não teve; ela ainda disse, fique comigo, por favor.
Humilde até certo ponto, certo? Tem um limite que. O senhor compreende, padre Zélio? Nenhuma resposta -algumas coisas são tão nossas que Deus não se mete. O problema era só meu, como agora: Robertson levou uma sarrafada na meia-lua, a primeira bola que chegou ali, e ele quase manda seguir o jogo, mas o urro da plateia como que apitou por ele. Faça a coisa bem feita, ele se disse, você tem um nome. Não deixe rastro. Ainda mancando, Robertson ajeitou demoradamente a bola no tufo de grama, um trabalho de relojoeiro, e olhou para a frente. Dez minutos de jogo e esse canalha vai fazer um gol, e ele procurou por alguém impedido para apitar já no chute e parar o lance, mas não havia nem com a dádiva da dúvida: um burro deles amarrado no segundo pau, ao lado do goleiro, dava condição escancarada, eles estão brincando, mas o chute bateu na barreira e voltou para ninguém.
Não se lembra bem do que houve, ele disse ao prestar depoimento, e foi sincero. Deu aquele branco. Mas se lembra de cada segundo da Maria, vinte anos antes, o vazio da revelação, e ele em seguida, meio cego, casou com outra, com quem vive até hoje e de quem tem três filhos, e quer saber de uma coisa? Jamais gostei da minha mulher e nem meus filhos me apaixonaram, um depois do outro, mas a gente vai levando o que é da natureza, pelo amor de Deus, eu nunca disse isso a ninguém, mas é o que eu sinto aqui no peito. E se fosse outra mulher e outros filhos seria tudo a mesma coisa. Só a Maria.
No intervalo, sob a tensão do zero a zero, voltando ao vestiário, pressentiu que também para ele aquele era um último jogo. Os bandeiras talvez estranhassem a concentração soturna do árbitro, ele não queria falar. Tentou lembrar as quatro situações marcantes do primeiro tempo em que ele poderia ter apitado errado, com fúria e determinação, provocando a reclamação também furiosa que o levaria no ato a puxar o cartão vermelho vingador, ele ensaiava mentalmente o gesto, um final melancólico para Robertson e uma vingança justa para Maria. Sairia desonrado de campo sob a dupla justiça da vaia e da suspensão automática no próximo e último jogo do torneio, enterrando a si mesmo e ao seu time, que só precisava de um único gol. Mas nenhum dos lances foi ambíguo: faltas claras como água e brutas como porretes, que eles sabiam do perigo daquele velho em fim de carreira, e ao apitar o lance o braço se esticava para o lado certo e justo, como se ele fosse pago pelo Robertson, que se erguia abraçando sedento a bola e reclamando cartão ao adversário, o cara nunca está satisfeito.
Uma hora essa bola vai entrar e ele vai sair carregado de campo, imaginou em pânico, e eu só tenho 45 minutos. Não dizia uma só palavra no vestiário, como se a vida lhe caísse nas costas de uma vez só: Maria confessando que estava grávida. "O Robertson." Como se, dizendo o nome inteiro e não o apelido de rua, as coisas ficassem mais dignas. Ele se afastou sem olhar para trás, subitamente bêbado, passos perdidos, a falta de ar, e quando ela começou a segui-lo suplicante, puxando seu ombro com a mão suada, ele correu três quilômetros até parar e vomitar, como se o filho estivesse na barriga dele. No dia seguinte, por mais que quebrasse a cabeça não conseguia imaginar o desenho de um mundo em que ele tivesse lugar. E eu sou uma pessoa boa. E no terceiro dia foi abraçá-la, mas terminou ali. Robertson há dois meses já estava contratado em Recife, o que prometia muito.
- Me jogaram uma garrafa de plástico - disse Edislon, sem ênfase. E, para que ninguém se incomodasse: - Nem me acertou. Aquele povo xinga muito.
- Eu vou anotar na súmula - ele disse enfim, maquinal, pensando em outra coisa: o Edislon poderia ser filho dela, a idade provavelmente bate, assim como Mauro. Todos pardos. E disfarçadamente conferiu mais uma vez a lista de jogadores: 10, Robertson. É ele sim.
Um jogo horroroso no segundo tempo, e ele continuava incapaz de ser injusto, só apitando errado, covarde, quando os bandeiras erravam, o que foi aumentando a irritação, principalmente com o cinismo daquele que era caçado em campo como um cão sarnento, sempre se levantando sorridente como se não fosse com ele e ajeitando a bola com a mesma determinação inútil. Ele está velho, não vê mais nada, o chute é torto e a partida da vida dele está chegando ao fim. Eu ainda posso apitar por alguns anos, mas ele não pode mais jogar nem meio tempo, e sabe disso. Só a piedade e o desespero o mantêm em campo.
Trinta minutos de jogo e um único chute a gol, do outro time. Robertson a vida inteira plantado no meio de campo com as mãos na cintura, esperando um milagre. Num momento, sobe a placa de substituição, e João Batista sentiu o frio na alma: vão trocá-lo, e ele vai fugir de novo, como se nada tivesse a ver com ele, nem mesmo este jogo. Mas não, era o grosso do camisa 2 que queriam, antes que levasse o vermelho. Olhou para o cronógrafo: vou dar mais quatro minutos pela cera.
Então aconteceu, ele se viu contando ao delegado como se fosse essa a questão, e não a outra: numa sequência de chutões desesperados a bola caiu na área exatamente ao longo do peito dele, inclinado caprichosamente para trás, de costas para o gol e braços abertos; e ele deu um chapéu como nunca na vida, levou um empurrão que, agora sim, eu não apitei, e o filho da puta conseguiu dar um segundo chapéu mesmo sem equilíbrio, já entrando na pequena área, e levou um pontapé no tornozelo que eu também não apitei porque uma hora aquilo ia acabar e ninguém conseguia ver nada, era só o que faltava eu apitar um pênalti ali, cinco jogadores erguendo um muro em torno dele, até que ele deu às cegas um toque de calcanhar sem saber o que fazia e o goleiro pego no contrapé caiu de boca na grama como um ganso bêbado, o braço inútil para o outro lado, e a bola devagar cruzou a linha parando mansa três palmos adiante, imóvel como um presente.

Aquilo me transtornou. Eu deveria ter apitado antes algum perigo de gol assim que a bola subisse em direção da área, mas agora era tarde, o idiota do Edislon correu feliz para o meio do campo como se fosse o filho dele, a torcida urrava e eu fiquei sem álibi. Vi ainda os dez jogadores fazendo uma pirâmide de alegria sobre o corpo magro e ruim de Robertson, que levaram carregado para o meio do campo, como eu previa. Voltei ao círculo central sem nem mesmo apitar o gol, que apitava a si mesmo, dispensando meus serviços. Olhei ainda para o cronógrafo, calculando o que faltava de tempo, que era nada, apitei fraco o recomeço e no segundo passe ergui os dois braços para acabar com a agonia. Quando Robertson veio me cumprimentar com aquele sorriso cínico eu. Não sei. Disseram que eu acertei um soco no nariz e outro na boca, mas quem desmaiou fui eu. Acordei no vestiário, com quatro meganhas, dois dedos quebrados na mão direita e essas algemas, como se o culpado fosse eu. Se foi mesmo isso que dizem, estou com a consciência tranquila, porque o injusto não pode ser recompensado - é apenas uma questão moral.


A realeza de Pelé -  Nelson Rodrigues

“O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés”.

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos.
Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau. Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a Fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.
 
Orlando Pedroso


Aluga-se Nelson Rodrigues – Xico Sá

Amigo torcedor, amigo secador, e não é que Nelson Rodrigues, além de servir de escudo ao governo, com seu patriotismo em chuteiras, também virou, da forma mais involuntária e oportunista possível, garoto propaganda de aparelho de telefone celular!
Com direito a moderníssima e freudiana cerquilha #NelsonExplica. Nelson estatizado, Nelson
privatizado no último, Nelson é a única unanimidade em torno da Copa 2014, logo ele que via na unanimidade a burrice por excelência.

O colega Ruy Castro, biógrafo de Nelson e de Garrincha, tratou, no artigo "Nelson Tse-Tung", do suposto mal-estar rodriguiano diante de uma coletânea de crônicas esportivas editada pelo Ministério do Esporte, cujo pendor marxista jamais foi algo clandestino.
Ao me deparar com o anúncio telefônico, graficamente muito bonito, fiquei imaginando o velho Nelson, que não aceitava, em matéria de nova tecnologia, sequer o videoteipe ("o videoteipe é burro"), diante de uma propaganda de velocidade 4G para celulares.
Vamos admitir: tudo em Nelson, na questão pública e na questão privada, era hiperbólico, aí está a beleza – estar no mundo sem exagero algum é quase desistir de nascença. "Onde os fracos não têm vez", caro Darwin, só os exagerados sobrevivem, aqui lembrando o título do derradeiro e mais genial dos faroestes.
No drama dos suburbanos corações das gostosas engraçadinhas ou na pelada mais erma na carioca Aldeia Campista. Mais valia, sem trocadilho marxista, o incêndio da frase. A tirada que repetiremos até a morte, independentemente da ordem e do progresso.
Como Nelson é minha religião de estepe contra o desconforto de existir, nem vou reclamar que o tio filosofal seja o tema dessa Copa. Bato palmas, até. Afinal de contas, seria ridículo que um mundial no Brasil não lembrasse de NR como a máxima nota de redação, o nome do jogo, o cara, revendendo ou não a pátria e a promoção dos celulares.
Lembrar do maior cronista, esportivo ou não, lembrar do nosso Shakespeare (eu prefiro Nelson mil vezes!) já vale mais do que todas as Copas do Mundo. Quem sabe, depois de passar isso tudo, Nelson não visite a escola, do pré-primário à universidade.
O pior é que acostuma acontecer o contrário. Passa a festa e o tio Nelson pode ser devolvido ao imoral tarado de sempre, proibido pela força política de católicos e evangélicos da situação ou ferrenhos oposicionistas. Daí o governo e a iniciativa privada, sempre entregues à negociação mediana, negarão o rodriguianismo qual um Pedro diante do bíblico canto do galo.
Quero ver o mesmo governo e a publicidade botarem o tio Nelson em todas as escolas e em algum anunciozinho de desodorante depois. Todo mundo aluga Nelson. É fácil. Quero ver é negociar com as contradições (essência do marxismo) que ele traz.

Pelada de Subúrbio - Armando Nogueira

Nova Iguaçu, quatro horas da tarde, sábado de sol. Dois times suam a alma numa pelada barulhenta; o campo em que correm os dois times abre-se como um clarão de barro vermelho cercado por uma ponte velha, um matagal e uma chácara silenciosa, de muros altos.

A bola, das brancas, é nova e rola como um presente a encher o grande vazio de vidas tão humildes que, formalmente divididas, na verdade, juntam-se para conquistar a liberdade na abstração de uma vitória.

Um chute errado manda a bola, pelos ares, lá nos limites da chácara, de onde é devolvida, sem demora, por um arremesso misterioso. Alguns minutos mais tarde, outra vez a bola foi cair nos terrenos da chácara, de onde voltou lançada com as duas mãos por um velhinho com jeito de caseiro.

Na terceira, a bola ficou por lá; ou melhor, veio mas, cinco minutos depois, embaixo do braço de um homem gordo, cabeludo, vestido numa calça de pijama e nu da cintura para cima. Era o dono da chácara.

A rapaziada, meio assustada, ficou na defensiva, olhando: ele entrou, foi andando para o centro do campo, pôs a bola no chão e, quando os dois times ameaçavam agradecer, com palmas e risos, o gesto do vizinho generoso, o homem tirou da cintura um revólver e disparou seis tiros na bola.

No campo, invadido pela sombra da morte, só ficou a bola, murcha.

Renato Peters




A igualdade social no boteco - João Ubaldo Ribeiro

O Estado de S.Paulo - 19/08/2012

- Tu tá com uma cara que eu vou te contar! Que foi que houve, isso tudo já é tristeza antecipada pela derrota? O jogo ainda é às seis e meia, até lá tu pode fingir que é feliz, pode até sonhar que o Flamengo vai se dar bem. E não precisa chorar, que não vai ser de goleada, o Vasco não está aí para humilhar ninguém, nem mesmo o Flamengo, não precisa.

- Eu não sei de onde você tira essa sua arrogância. O que é o Vasco?

- O Vasco é uma caravela gloriosa, desbravando os sete mares e navegando serenamente para ancorar no posto de campeão brasileiro!

- Ah, bom, campeonato de vela, isso eu não discuto. Eu pensei que você ia se referir ao vice-campeonato de futebol que vocês vão pegar, como é da tradição do teu time. Vocês do Vasco deviam computar o número de vice-campeonatos que já ganharam, de repente dá para criar uma nova categoria para consolar os vascaínos: campeão dos vices, o maior vice-campeão da história do futebol brasileiro. Brasileiro, não; mundial, acho que esse campeonato mundial é do Vasco. A não ser que vocês também sejam vices dos vices.

- Qual é, cara, tu, como representante de um urubu de asa despencada, um timeco que se daria mal na série C, um...

- Tudo bem, não vamos brigar por causa de futebol. A vida não se resume a futebol, tem muita coisa mais importante.

- Domingo, num boteco do Rio de Janeiro, não tem nada mais importante do que chope, futebol e mulher.

- É verdade, mas eu não posso evitar o que venho sentindo. Eu tenho pesadelos. Essa noite mesmo, eu tive, acordei suando. Sério mesmo, cara, eu acho até que vou consultar um psiquiatra, isso não pode ser normal.

- Ah, é por isso que você chegou aqui meio estranho hoje.

- É, eu agora dei para ficar minhocando esse negócio e dei para ter esses pesadelos, já é o terceiro ou quarto. É uma espécie de assombração, que resolvi chamar de cotismo. É o medo do cotismo.

- Do quê? É doença nova? Se for, não me conta, que eu começo logo a sentir os sintomas. Vou ter um AVC e um infarto a qualquer momento e amanheço de dengue todo dia.

- Não, doença não. É um problema sociopolítico.

- Ah, cara, não vamos entrar nessa de discutir o Brasil, o mensalão, a ladroeira, pelo menos no domingo vamos dar um tempo, ninguém aguenta.

- Não é o mensalão, é bem mais grave. O cotismo é o seguinte: é a nova política nacional para a eliminação das desigualdades.

- Pior do que comunismo, não? Eu só sinto falta deles quando é para botar a culpa em alguém. Era sempre culpa deles e pra mim continua sendo.

- Eles vão dizer que, com a adoção de cotas...

- Eles quem?

- Eles, eles, eles! Eles estão em toda parte, mandam na nossa vida e cada vez vão mandar mais! Eles! Agora eu tenho certeza de que, quando passar esse negócio do mensalão, eles vão adotar cota para tudo. Eu tive um professor, naquele tempo em que tinha professor, que dizia: "senhores, a sábia mão do homem ainda vai destruir o universo!" É verdade, é verdade!

- Mas não vai ser agora, podemos pedir uns pasteizinhos.

- Aí é que você se engana, já está começando agora e vai se estender a tudo. Ao futebol mesmo, por exemplo. Futebol rende muitos problemas por falta de proporcionalidade em vários aspectos e falta de oportunidades para todos. Primeiro eles vão regulamentar as escalações: tem que ter cota racial. Cada jogador declara sua raça e aí a escalação mantém o equilíbrio racial através das cotas. Poderemos ver o Wagner Love declarando que se chama Wagner porque é de família alemã de pai e mãe e o Loco Abreu alegando que é zulu. Mas aí isso não resolve a desproporção entre as torcidas, de maneira que eles vão implantar as cotas de torcida. Cada torcedor será cadastrado numa torcida, devendo apresentar seu cartão de torcedor juntamente com o ingresso. Quando uma torcida ultrapassar o número de torcedores previsto pela cota, o torcedor tem de escolher outro time, em benefício de paz social e, em última análise, em seu próprio benefício. É um assunto complexo, mas nós temos parlamentares à altura das necessidades. Uma coisa é certa: não será permitida uma desproporção gritante, como existe hoje, por exemplo, entre a torcida do Flamengo e a do Olaria, a lei garantirá a todos os times o direito de ter torcedores. E digo mais. Não tem crime de falsidade ideológica? Pois vai ter crime de falsidade clubista. O camarada que for pegado torcendo por um time, mas portando a carteira de outro, perde o registro e não pode mais frequentar estádios, precisamos de leis severas.

- Você está delirando outra vez, eu nunca sei quando você está falando sério.

- Eu não estou delirando nada. Nem falei sobre as outras cotas dos times de futebol. Uma das primeiras a entrar na pauta vai ser a cota dos originários de comunidades carentes, logo seguida das dos jovens infratores em recuperação, dos homossexuais, da terceira idade, dos nativos do Estado onde fica a sede do time e por aí vamos, inclusive na Seleção.

- Você não acabou o segundo chope e já está de porre. Não está vendo que esse tipo de coisa nunca vai dar certo?

- Eu estou. Mas eles não, é por isso que eu me apavoro. Vai ter cota de mulher, pode escrever. Pra cada cinco gatas com quem você sair, vai ter que encarar uma dragonete, é a justiça social.

Renato Peters


Cadê o futebol? - João Ubaldo Ribeiro

O Estado de São Paulo (em 20/07/2003)

Todo santo dia, os meios de comunicação publicam matérias sobre a decadência do nosso futebol. O futebol carioca, então, nem se fala, porque os grandes times do Rio estão em situação ainda pior do que a de outros Estados. E, de fato, mesmo os maníacos, que têm tevê a cabo, pay per view e parabólica e não perdem um jogo, ou os mais fanáticos, que ainda enfrentam os perigos que ameaçam os grandes estádios em dias de jogo, não podem negar que, atualmente, assistir a um jogo de futebol não é mais a mesma coisa e às vezes fica mais chato do que a exibição das fitas de vídeo que um casal de amigos fez de sua excursão pela Europa, onde os narradores são ela e ele discutindo e falando ao mesmo tempo e ele confundindo Bruxelas com Barcelona - "não sei por quê, deve ser por causa dos nomes, Barcelona, Bruxelas, para mim o som é parecido, só pode ser isso".
Não sou comentarista especializado, como todo mundo sabe. Pelo contrário, de futebol somente sei o que qualquer torcedor comum sabe, ou até menos. Nas Copas a que compareci como "comentarista", não só escrevi muito pouco sobre futebol, como devo ter sido objeto de vários jogos de porrinha, para ver quem teria a má fortuna de sentar-se junto a mim no estádio, porque eu só faltava perguntar qual era a equipe brasileira.
- Zinho? - perguntava eu a um companheiro de bancada.
- Sócrates - respondia o caridoso companheiro a meu lado, com a cara de quem havia obtido a dispensa de pelo menos uns quatro séculos de Purgatório.
- Sim, claro, é a semelhança física entre os dois que me confunde.
Dessa mesma vez, em Guadalajara, na concentração, eu, de crachá e sentimento glorioso de repórter esportivo (meu sonho de consumo profissional até hoje), cumprimentei, como acho que já contei aqui, o Falcão.
- Tudo de bom pra você, Falcão!
- Obrigado, mas eu sou Carlos, o goleiro.
- Ah. Sim, ho-ho, que mancada a minha. Eu não enxergo muito bem e assim, com esta luz contra os olhos...
Mas também não sou tão burro, eis que passei de primeira no vestibular da outrora rigorosíssima Faculdade de Direito da Bahia e me formei, hoje tendo alguns colegas de burrice ocupando altos postos na República. E, ainda assim, qualquer burro vê, há árbitros marcando impedimentos onde não houve ou vice-versa, pênaltis onde não houve e vice-versa, expulsando jogadores que não fizeram nada de errado e, de modo geral, melando o jogo todo. Por muito menos, nenhum desses juízes sairia do estádio de Itaparica sem receber um prato fundo de mingau de mandioca na cara.
Mas será que resolve, fazer da tevê uma fonte de referência para atos dos juízes, podendo-se vir a anulá-los? Continuo a protestar. Sem se poder xingar o juiz e dizer que tal ou qual falta foi roubada, o futebol perderia um dos seus grandes encantos, notadamente a choradeira. A má arbitragem continua a ser um problema grave, é certo, até por causa da covardia e da burrice de certas regras. A covardia consiste em não dar cartão amarelo ou vermelho em algumas circunstâncias, com a conseqüência, de que, por exemplo, uma tourada na Espanha aqui tem menos violência do que um jogo de bola de gude. Quem tenta quebrar o outro devia ser expulso. Quem xinga o juiz nessas circunstâncias devia ser processado. E por que se permitem táticas antiesportivas, tais como o uso de cartão amarelo para facilitar a escalação de um time? Fulano está pendurado no amarelo. Se tomar outro, será automaticamente suspenso, não participará de um jogo sem importância por causa do terceiro cartão e aí toma amarelo de propósito. E ainda, ligado a isso: se o sujeito comete uma falta merecedora de cartão amarelo, por que, na segunda, não pode tomar o segundo cartão amarelo, que se acumularia com os outros já recebidos? Muitas vezes, o juiz tem que dar cartão vermelho, embora não seja muito justo, só porque o infrator já tomou amarelo antes.
Devia ser possível dar um, dois ou três cartões amarelos no mesmo jogo, principalmente quando o time está participando de várias competições simultaneamente (copa disso, copa daquilo, taça disso, taça daquilo). A expulsão só devia vir quando fosse caso de cartão vermelho mesmo, ou quando os amarelos chegassem, por exemplo, a três ou quatro. Não deveria ser forçado o cartão vermelho somente porque o jogador tomou um amarelo antes, no mesmo jogo. Todo mundo já viu esse tipo de injustiça, um expulso por ter puxado a camisa de outro, pouco depois de ter chutado a bola para fora de campo num momento proibido. Não é a mesma coisa que expulsar um que quebra a perna do adversário de propósito.
Apesar de maus árbitros, é difícil ganhar um jogo em que o oponente é significativamente melhor. Mas nosso problema principal, pelo menos do meu ponto de vista de torcedor, não está nos árbitros, nos cartolas, nos calendários, nada disso. Nosso problema é que o pessoal anda arrumando cada vez mais times de pernas-de-pau, com um número incrível de pênaltis perdidos, passes errados e jogadas bisonhas. Quem faz duas embaixadas é logo chamado de craque. Botem jogadores bons nesses times, arrumem esses times direito. Futebol virou uma caixa sombria de bisonhice, e nem dar um driblezinho extra é mais permitido, é desconsideração ao adversário, Garrincha não poderia mais jogar. Não pode mais fazer gol de bunda! Por que não pode fazer mais gol de bunda? Desrespeito nada, diversão que pode voltar-se um dia contra seu perpetrador. Em resumo: o que falta em nosso futebol é futebol mesmo. Um dia deste minha turma de boteco aqui no Leblon se chateia e funda um time de beisebol. Pelo menos a gente tem mais tempo para dormir no estádio.

Renato Peters

Maria-voa! - Aguinaldo Araújo Ramos

- Um metro, cinqüenta e um e meio.
- E meio?... Você faz questão deste “meio”?... Por quê?... Não quer assumir que é baixinha?...
- Eu não!... É só questão de justiça. Não me incomoda, não... Se eu não fosse pequena, não voava...
- Voava?... Ah, você voa?... Já voou... Por acaso, você é bruxa?...
- Já voei... Podem não acreditar... Foi num jogo de futebol, no Maracanã. Jogo da seleção. Muita gente... Mais do que nos jogos de clube que eu tinha ido. Fui com um antigo namorado. Na rampa, um congestionamento de gente... Alguma passagem, parece que estava fechada, sei lá... Foi apertando... Meu namorado atrás de mim, um amigo nosso à frente. É, tem muita mão-boba nessas horas... Devagarinho, a multidão se moveu. Começou uma espécie de uivo, baixinho. O pessoal zoando... Crescia o som junto com o movimento. Quando vi, estava sendo transportada pela massa, em direção ao acesso à arquibancada. E não conseguia botar os pés no chão!... Tentava, mas não conseguia... Só aterrizei na arquibancada, quando já se via o campo lá embaixo. Esse tempo todo, estava voando... Foi incrível... Alguma de vocês, por acaso, já voou?...
- Maria, que história mais boba...
- É, pode ser... Mas, acontece que eu voei... Vocês, que são grandes, não...

Rafael Correa


Conheça a curiosa história do goleiro esquecido no campo de futebol
Era 25 de dezembro de 1937, e uma forte neblina tomou o campo do Stamford Bridge, onde o Chelsea enfrentava o Charlton pelo Campeonato Inglês. O fenômeno meteorológico ficou tão forte que os jogadores decidiram sair de campo. Só esqueceram de avisar Sam Bartram, goleiro do Charlton.
"Pessoas que eu conheço, que entrevistei e que estavam na partida disseram que estavam preocupados que o jogo não fosse acontecer porque havia uma neblina pesada em Londres, estava muito úmido e frio. Não estava tão ruim quando a partida começou, então pensaram: talvez possamos seguir em frente. Mas como é o clima nesse país - você espera 10 minutos e tudo muda - a situação piorou. Meus amigos que estavam lá na torcida do Chelsea não conseguiam ver o campo, não conseguiam ver o gol onde estava o Charlton", contou Rick Glanvill, historiador do Chelsea, ao SporTV em 2017.
Sem conseguir ver os outros jogadores, Bartram não soube que os companheiros e adversários retornaram aos vestiários aos 16 minutos do segundo tempo, quando o placar estava empatado em 1 a 1. A princípio, ninguém se importou em ir avisá-lo. Somente quinze minutos depois um policial foi notificá-lo da situação.
"O goleiro do Charlton ainda estava no seu gol, sozinho no campo, se movimentando para uma possível defesa, pronto para um ataque do Chelsea. E a torcida do Chelsea começou a rir porque claramente Sam Bartram não tinha sido avisado pelos seus companheiros de equipe nem pela arbitragem que a partida tinha sido interrompida. Dizem que um policial entrou no campo e acabou com a angústia dele - já que todos estavam rindo - e disse: "a partida foi interrompida, melhor você ir para o vestiário", relatou o historiador à rede de televisão brasileira.
Bartram atuou pelo Charlton entre 1934 e 1956, participando do vice do time no Campeonato Inglês na temporada de 1936-37, e do título da Copa da Inglaterra na temporada de 1946-47. Falecido em 1981, aos 67 anos, o arqueiro ganhou uma estátua em frente ao estádio do clube, 'The Valley', em 2005, provando que sua torcida lembra de muito mais do que de uma história engraçada de Natal.
Fonte: esportefera

Grã Decisão: Viradas - Aguinaldo Araújo Ramos

- Gol nada... É de lei. Tempo jogado: quem não faz, leva. Se arrebentou o América, danado. O diabo esfregava o olho e o Evaristo, o tal do..., ciscou – imagine, quarentetrês, segundo tempo –, sentou o pé, fora da área. Pompéia, contido no susto, atrasou o vôo do Constellation, o desespero no braço esticado. Um a zero: chorado, mas foi... Não me dissera isso meu pai, do Flamengo ganhar... Dos pintos, tá bem, o primeiro milho: deve ter dito...
Lembro não. Nem do jogo. Li no jornal, há pouco. Sô sabe, escasseiam os detalhes da mente. Cinqüenta anos agora, 1956 foi ano marcante mermo... Rosa até desabrochou, já li demais... Digo: sabia não, essa da final de 55 em 56... Vinha desd’Agosto, exagero de campeonato esticado, só ‘cabou em Abril. Três turnos e melhor de três. E o Flamengo na ganância do tri. Promessa de beira de caixão... Sério! Há pouco morria, em decisiva cesta vitoriosa de basquete, Gilberto Cardoso, o presidente. É... Paixão faz mal ao coração...
O tri do Fla, era treta?... Por meu pai morriam espetados no tridente. Achei que sim: endiabrado, o América. Me catequizava, nada esportivo, meu pai... Ganhei escudim. De alfinete grosso, pontudo, podia fazer furo no peito... Pai me espetava na camisa, jeitoso. Redondim, o escudim, o do América: farol vermelho, risco branco à volta, sigla AFC ajeitada dentro, letras retas mesmo nas curvas. Ah, ô... O do Flamengo, não. Travoso, ponta de faca afinando pra baixo, faixa preta e vermelha, e outra e outra, como se não parasse... No canto do canto um CRF engrunhado, pontas das letras entortadas pra dentro. Sincero? Uma angústia...
O segundo jogo? Domingo seguinte. Tempo, de algum jeito, passou no meio... Ouvi no paralelepípedo da rua, vizinho botava o rádio na porta. “Será diferente, pai?”... Olha só a virada! Acertaram em cheio: deram de cinco! Sô, cinco a um, num é muito?... Americão tinhoso, galhardo mermo!... Cinco... Cinco anos, eu... Ah, há cinqüenta... Se fiquei contente?... Lembro não. Se era América? Era?... É... Não de todo... Até não era. Meu pai me fazia ser.
Podia ser outra coisa... Lembro de raiva escondida. Penso no corte. Corte de cabelo, o senhor sabe, um topetinho. Cabeça raspada, o tufo de cabelo no cocuruto. Hoje, tanto faz. Pra mim, era castigo. Ranzinzice de pai velho, a cara amarrada... Eu? Quinto filho. Descrevo, se sei: olho vivo, dois dentões na frente, calção de elástico, camisa de botão e bolsinho, muito antes da camiseta... Os irmãos, nenhum americano. Escapuliram... Meu pai? Calça de pano riscado a giz, camisa apertada, mão calosa... Motorista. Caminhão.
Diabos!... Cinco a um. Os cinco gols, cada atacante carcou, menos, um: Canário, pianim, pisando leve; Romeiro, chegado nas graças; Leônidas, bom cabeceador, o que chamavam da Selva – não aquele da Silva, fera dos anos 40 –; Alarcón, azougue, de dez nas costas; e Ferreira, que batia forte.
Já era, o Fla?... Ou viraria o demo o Mengo, um demo crasso?... A final: quarta à noite. Não sei se ouvi, sei o que leio... No Fla, o “ténico” (a fala do meu pai...) Fleitas Solich, bruxo paraguaio autêntico, diz a Dida: "tu vás a jugar mañana". No gol, Chamorro ladrando a bola. Repete a defesa à direita, o cangaceiro Tomires e Pavão, espécie de lotação, sem pena. Entra Servílio, pra garantir pelo alto, e continua Jordan, no lado sinistro. A ponta extremada de Joel pra lá, a formiguinha recuada de Zagalo pra cá. Dequinha e Duca costurando pelo meio, o pivô Evaristo no miolo. E, então, à frente, Dida, de dez.
No América, dez é Alarcón, que azucrina. Só que Tomires, aos dezoito, indo com fome na bola – havia, no Flamengo, um pacto? – atomiza o tornozelo dele. Mário Vianna apita a falta: mas, que adianta pro América?... Inferno é onde o diabo cai: manquitola Alarcón, sai de campo aos trinta e poucos. É 4 x 1 no final. O Maracanã, cruel, ulula...
Outra virada! No futebol até Deus se aparvalha. Dado o dado, Dida vira o dito o cujo, do qual se ditam, por décadas, dicas? Deu o quê?... Que quê baixou no baixinho das Alagoas?... Dida, mal sabendo de si, se desembesta, o súbito. Dos gols, três dele. O outro quase, contra. E pronto: cai de quatro o América. Rubro de raiva, o Mequinha ainda viceja.
Pacto, se se preza, transpassa. Na noite, caminhos abertos, uniformes suados de bandeiras da vitória, a cambada do Fla (bem quista, diga-se) ruma a Botafogo. Perdem uns a cabeça, pulam do cemitério (São João Batista acata) o muro, jogadores deixam no túmulo do antecipado morto, presidente de coração fanático, arre!, as faixas de tri-campeão.
O coração é vermelho, o mundo não... Não pára de cambiar de cor, nem quando o sol se põe, um vermelhão... Rosa também, pintando o branco das nuvens. Negro, o que do outro lado se levanta. Daí, nuances, misturas, viradas... Decisão, pro mundo, pros tempos, é que: ser tão, tão vasto, é bom! (Ah, quê? Por que conto assim, por quê?... Homenagem a troar na cachola: o pai, o Guima e o espírito Mengo!... Essas coisas... Bizarrias.)
Manhãzinha, a cidade boba, dia doradim, Rio esbaldado, entendo melhor as viradas novas, até aprendo... Meu pai? Viajou, acho... Demorô... Eu queria saber: se o América é diabo, Flamengo é deus?... Lhe confesso, pergunto agora. Quando, então, não sabia. Foi decepção, nomeio assim?... Sei que: aos cinco anos, não se tem fé. Eu teria que ter?...
Meu pai quieto. Lembro que falei “Flamengo ganha...”. Cuidadoso, desenterrei do peito o escudim. Vermelho, devolvi. Não esqueceu, jamais, sempre dizia até se ir... Eu, se tanto mudei, por certo, também não esqueci: sigo flamengo.
No final, bem dissera o... , ele: “Existe é homem humano. Travessia.”

No ônibus, um goleador rebaixado -  Claudio Lovato Filho

Ele chegou de sandálias de couro e óculos escuros, camiseta preta e bermudão. Carregava uma mochila marrom, das grandes, e na mão direta levava uma sacolinha de plástico contendo uma revista semanal, o jornal do dia e um livro do Eduardo Galeano. A rodoviária estava movimentada e ele já esperava por isso. Dezembro já ia adiantado e ainda por cima era sexta-feira. Chegou às cinco para as cinco, vinte e cinco minutos antes do horário previsto para a saída do ônibus. Encararia uma viagem de 14 horas até sua cidade natal. Estava se sentindo muito bem. Passara o ano inteiro sem ver os pais e os irmãos. Um ano especial para ele. O ano em que fora o artilheiro do campeonato nacional da primeira divisão. Um ano esquisito, também: fora artilheiro do campeonato jogando num time que acabara sendo rebaixado para a segunda divisão. Havia feito quase 80% dos gols da equipe. Um goleador rebaixado. O que isso significava exatamente, ele ainda não sabia. De prático e concreto sabia apenas que o campeonato já havia terminado há mais de duas semanas, seu contrato estava para se encerrar e, até o momento, ele não tinha recebido uma proposta de renovação de seu clube, tampouco um convite para se transferir para outro. Seu procurador não recebera nenhum daqueles telefonemas capazes de alegrar o Natal de um jogador de futebol e fazer com que seu pedido de Ano Novo fosse um só: ter sucesso no novo clube.
Encostou a mochila e a sacolinha num banco no qual estavam sentados um casal de idosos e duas crianças que pareciam ser netos deles. Puxou o jornal e pôs-se a ler, começando pela editoria de esportes. Contratações e dispensas de jogadores. Cartolas fazendo anúncios grandiloquentes de reforços para a disputa da Libertadores do próximo ano. Técnicos – os recém-contratados e os que permaneceriam em seus clubes – fazendo balanços e falando de suas expectativas para o ano vindouro. E estatísticas, muitas estatísticas: clubes recordistas de público e renda, clubes com maior número de jogadores expulsos, clubes que mais vezes trocaram de técnico durante a competição, árbitros que mais expulsaram, etc etc etc.
Nenhuma linha sobre ele.
Paciência. Ele já estava acostumado a ser subestimado pela mídia. Não esquentava mais a cabeça com isso. Seu clube atual nunca estivera entre as principais forças do país, assim como os outros dois que defendera anteriormente. Além disso, jogava num estado que ficava fora do eixo das grandes redes de televisão e dos jornalões poderosos. Agora, por exemplo, tinha plena consciência de que o jogador que ficara em terceiro lugar entre os artilheiros, com oito(!) gols a menos do que ele, estava valorizado como nunca, em evidência na imprensa, presença certa nos programas de entrevista nos canais de TV a cabo e, provavelmente, em vias de assinar contrato com algum clube da Europa, do Oriente Médio ou do Japão.
Seu ônibus encostou na plataforma.
Ele guardou o jornal e foi para a fila do bagageiro. Aparentemente, ninguém o havia reconhecido até aquele momento, e ele, com sinceridade, não se importava com aquilo. Estava vivendo uma expectativa prazerosa, o pensamento cada vez mais concentrado no encontro com a família, a cerveja com os irmãos e os amigos, o chimarrão com o pai, a massa com galeto preparada pela mãe. Aos vinte e seis anos, sentia falta de tudo isso exatamente do mesmo jeito que na época em que, ainda um adolescente, saiu de casa para sua primeira temporada como profissional. A diferença é que agora sabia administrar a saudade e a ausência das pessoas amadas.
Entrou no ônibus, grande e bem refrigerado, e procurou sua poltrona. Quando chegou ao assento indicado no bilhete, puxou o livro de dentro da sacolinha, colocou-a no compartimento da bagagem de mão e sentou-se na janela. Abriu o livro do Galeano e começou a ler.
Não se passou muito tempo até seu companheiro de viagem se apresentar. Era um garoto de treze anos, quatorze, no máximo. Cabelo ruivo, sardas, gestos lentos, olhos inquietos. Sentou-se e logo colocou nos ouvidos os fones de seu aparelho de MP3. Ele observava o menino com o canto do olho e não pôde deixar de se divertir com seu comportamento adolescente. Era uma das crianças que estavam com os idosos no banco da plataforma de embarque. Virou discretamente a cabeça e viu que o casal de velhos estava sentado um pouco mais à frente, no outro lado do corredor. A outra criança, uma menina, devia estar em algum lugar mais à frente.
Concentrou-se na leitura das histórias da bola contadas pelo uruguaio Geleano. O ônibus partiu com um pequeno atraso. Através de sua janela, ele assistia a um pôr-do-sol majestoso, marcando o cair da tarde de um belíssimo dia no Sul do Brasil.
Não haviam rodado uma dezena de quilômetros quando o menino ruivo começou a olhar fixamente para o rosto do seu parceiro de viagem, que já havia percebido isso, mas tentava manter-se atento à leitura.
O garoto ruivo tirou os fones de ouvido. Continuava a olhar fixamente para o homem ao seu lado.
Com um meio sorriso, ele se virou para o garoto e disse:
“Tudo bem?”
“Tudo”, ele respondeu. E emendou de imediato: “Você é parecido com o Jonelson.”
“Eu sou o Jonelson.”
A reação de completa desconfiança ficou patente no semblante do menino.
“Ah, tá…”
O garoto ruivo então virou o rosto e recolocou os fones de ouvido.
O artilheiro do último campeonato, que se chamava Jonelson Martins Rizzo, tinha 26 anos e um pai que tomava chimarrão todos os dias, de manhã cedo e à tardinha, ficou sem saber se devia achar aquilo engraçado ou não. Depois de alguns segundos de hesitação, ele deu dois toques com o dedo indicador no ombro do menino, fez um sinal para que ele tirasse os fones e, tão logo foi atendido, disse:
“Você não acredita que eu sou o Jonelson?”
O menino não disse nada. O jogador ficou observado-o em silêncio. Então disse:
“Como é o seu nome?”
“João Eduardo.”
Mais silêncio.
“É porque eu estou viajando de ônibus, não é?”
O menino olhou para ele, em silêncio. Era isso. Claro.
“Você deve estar se perguntando por que eu estou viajando de ônibus e não de avião, certo? Não é isso?”
“É”, disse o ruivo.
Então o artilheiro sorriu. E balançou a cabeça.
“Bom, acho que eu estaria pensando a mesma coisa se estivesse em seu lugar.”
Ele pensou em mostrar a carteira de identidade ao menino. Mas não faria isso, logicamente que não.
O garoto colocou de volta os fones no ouvido e ele retornou ao livro enquanto a noite limpa, de lua crescente, avançava.
O ônibus foi avançando, comendo asfalto noite adentro. Jonelson, saboreando o livro, não deixava de perceber que o avô e o menino trocavam algumas palavras de vez em quando. Mais um pouco, e o garoto adormeceu. Olhando para fora, para os campos enegrecidos, Jonelson disse para si mesmo que talvez precisasse cuidar mais da sua imagem, mostrar mais a cara na TV, fazer marketing, essas coisas. Mas logo afastou esses pensamentos, porque se conhecida bem, sabia exatamente quem sempre fora e quem sempre seria: um sujeito simples, um interiorano, um eterno rapaz de pés descalços caminhando na beira do rio, apegado à família e aos amigos de infância, e que, por sorte ou por um desígnio de Deus, havia se tornado um jogador de futebol de talento.
Dormiu. Na parada para lanche e banheiro, pouco antes da meia-noite, ele preferiu não descer, diferentemente de seu companheirinho de viagem, que saiu e voltou com uma pacote de biscoitos recheados e uma lata de Coca-Cola. Jonelson voltou a dormir.
Quando o ônibus chegou ao seu destino final, eram pontualmente sete e quarenta e cinco da manhã. Mal havia desembarcado, Jonelson ouviu uma voz de mulher a pequena distância.
“Jonelson! Jonelson!”
Ele olhou em volta e localizou a autora dos gritos.
“Jonelson!”
Era uma morena alta, cabelos curtos, muito bonita. Apontou para a câmera no ombro de seu parceiro, na qual se podia ler “TV Planalto – Canal 11”.
O jogador de futebol lhe fez um sinal de positivo com o polegar da mão direita e depois, com um gesto rápido, transmitiu com clareza sua mensagem de que iria buscar a bagagem e então a atenderia.
O menino ruivo assistia a tudo isso atentamente, de olhos arregalados e boca semi-aberta.
A repórter se chamava Íris Franco, era famosa na cidade e na região, e logo se viu cercada por admiradores e curiosos que àquela hora estavam por ali.
Jonelson pegou sua mochila e foi ao encontro da repórter de TV, que, àquela altura, já tinha a companhia de um repórter e de um fotógrafo do principal jornal local.
O artilheiro do último campeonato viu aumentar o bolo de gente que se formou tão logo a entrevista com Íris Franco começara. João Eduardo, o ruivo, chegou à frente da aglomeração, e Jonelson dirigiu-lhe um rápido olhar antes de responder a uma das perguntas.
Íris agradeceu, desejou-lhe boa sorte e a câmera foi desligada. Jonelson ainda posou para fotos perto de uma placa com o nome da cidade. (Uma delas seria publicada na capa da edição do dia seguinte.) Depois, pegou a mochila e começou a caminhar em direção a Joedson, o irmão mais velho, que o tempo todo o observara a distância, divertindo-se e sentindo-se muito orgulhoso.
João Eduardo, o menino ruivo que passara a viagem toda com seu aparelho de MP3 no volume máximo, desconfiando de que aquele cara sentado ao seu lado no ônibus estava tentando lhe enganar, fazendo-se passar por Jonelson, ficou olhando o jogador se afastar.
Apesar de não ter percebido isso com clareza naquele exato momento (apenas mais tarde, bem mais tarde), aprendeu ali uma lição crucial que viria a lhe poupar de algumas frustrações no 
futuro. E então ele também foi embora, contando para o avô uma história incrível.

Paulo Batista



Pai e Filho - Claudio Lovato Filho

“E como vai ser na hora de um dar esporro no outro dentro de campo, hein?”
“O que é que tem?”
“Você vai querer me dar esporro dentro de campo, garoto?”
“Claro! Qual é?”
“E o diabo do respeito? Sou seu pai, porra!”
“Pai só até a gente entrar em campo. Depois você vai ser um companheiro de time igual a todos os outros. Boto o dedo na tua cara se precisar. Na tua cara!”
Os dois riram. Era a primeira vez na história do futebol profissional do país que pai e filho iriam jogar juntos no mesmo time. O pai tinha 39, era lateral-esquerdo. Era seu último ano de carreira. No fim da temporada, pararia, já havia decidido. Ou antes. Queria ter o gostinho de jogar com o garoto. O filho, de 19, jogava de volante.
“Porra, moleque, você vai dar cobertura para o seu velho, não vai não?”
“Se você está falando em cobertura normal, sim. Se está falando em te dar atenção especial, pode esquecer. Não vou ficar preso lá atrás só para te dar privilégio. Tenho de chegar lá na frente também, você sabe disso.”
“Você vai deixar o seu velho desprotegido, já senti. Vai me deixar na mão. Não quer ser acusado de proteger o seu velho.”
“É isso aí, coroa. Eu tenho um nome zelar. Foi você que me deu. Me desculpa aí, foi mal.”
Os dois soltaram o riso de novo. Estavam sentados à beira do piscina da casa onde moravam. Tinham acabado de comer um churrasco e agora assistiam às mulheres e as crianças da família se movimentando pelo enorme jardim.
“Se alguém baixar a porrada no teu velho você vai revidar? Hein? Diz para mim. Vai tomar as minhas dores?”
“Eu não! Não vou nem me meter. Não vou nem reclamar para o juiz! Eu, hein!”
“Mas que garoto safado, cacete!”
Mais risadas.
O fato é que nunca estiveram tão felizes na vida. Eram um pai e um filho que se adoravam. Um era o maior motivo de orgulho para o outro.
O pai participara de duas Copas. Na segunda, foi capitão da Seleção. E campeão do mundo.
O filho fora promovido para os profissionais no ano que havia recém terminado.
Estava tudo muito bem, a família vivia um momento muito positivo, muito especial.
Mas havia algumas nuvens sobre a alegria do pai, pequenas sombras perturbadoras ainda começando a se formar.
Isso porque:
O pai não sabia o que aconteceria quando – e se – a torcida, num mau dia, começasse a vaiar o filho.
Ele não sabia o que faria quando – e se – um adversário desse uma entrada maldosa no filho.
E ele não sabia como reagiria a outras tantas situações que poderiam ocorrer – e facilmente ocorriam – no futebol.
O filho, por sua vez, não pensava nessas coisas. O filho estava feliz porque ia jogar; porque era titular; porque atuaria ao lado do pai amado; e porque tinha certeza de que nem ele nem o pai estavam ali, juntos, no mesmo clube, no mesmo time, por nada mais além do futebol de primeira linha que jogavam, do amor que nutriam pela camisa que vestiam e do imenso prazer que sentiam em jogar futebol e estar juntos. E seria dentro das quatro linhas de um campo de futebol que o amor que sentiam um pelo outro se tornaria tão completo quanto poderia ser.

Expulsão - Claudio Lovato Filho

Eram 38 minutos do segundo tempo quando ele entendeu com absoluta clareza que, pela primeira vez em seus seis anos como profissional, seria expulso de campo. Claro que seria. Acontece que estavam jogando a segunda partida da semifinal do campeonato nacional e aquele zero a zero garantia a passagem à final. Não podia correr o risco de, aos 38 minutos do segundo tempo, deixar aquele centroavante magrinho e ligeiro invadir a área e ficar cara a cara com o goleiro. Não mesmo. E ele, quarto-zagueiro bom de bola que raramente levava sequer cartão amarelo, teria de baixar o sarrafo, por trás, para parar aquele camisa 9 que o aporrinhou nos dois jogos da semifinal. Sim, porque não podia dar sopa para o azar, seria provavelmente um vacilo fatal tentar segurá-lo pela camisa ou pelo calção, podia ser que o centroavante conseguisse se safar, caso o puxão não fosse bem dado, ou mesmo escapar com o calção rasgado na bunda, sabe-se lá. Não, não. Iria derrubá-lo.
Tudo isso ele pensou – se é que dá para classificar aquilo de “pensamento” – em menos do que um instante, e então entrou no centroavante magricela com uma voadora na altura das canelas dele e o derrubou de imediato. O jogo era na casa do time do autor da falta, que agora se levantava e via o árbitro se aproximando, a trote, já com o cartão vermelho na mão, e então ele, de pé, encarou o árbitro, balançou a cabeça para cima e para baixo, e foi saindo de campo.
Não deu dois passos e começou a ouvir a torcida gritar seu nome, primeiro o pessoal das torcidas organizadas, atrás de um dos gols, depois o estádio inteiro, todos sabedores do quanto custou a ele ter feito aquilo, e sabedores do que o levara a fazer aquilo, e todos estavam cientes de que fora o amor pelo clube, e a lealdade, além de um puta senso de dever, que o levou a quase partir ao meio aquele centroavante magrinho de apelido Jejé.
Foi aplaudido de pé até descer pelo túnel que dá acesso ao vestiário e quando chegou lá continuou ouvindo a massa gritar seu nome e, por fim, aplaudir longamente e então parar e seguir torcendo pelo time, porque o jogo e a vida continuavam.
No silêncio do vestiário, ele pensou – agora sim, um verdadeiro “pensamento” – que pelo clube que defendia e pela camisa que vestia, faria aquilo quantas vezes fosse necessário. E que, da próxima vez, ao deixar o gramado em direção ao vestiário, iria bater no peito, bem em cima do distintivo, e gozar o momento como se fosse o último de sua vida.
Porque aquilo – e que o politicamente correto e a hipocrisia que fossem para a puta que os pariu – era muito melhor do que ficar tentando bater recorde de tempo sem cartão vermelho.
Mas só faria aquilo de novo se fosse preciso, claro. Só se fosse mesmo muito necessário. Sem dúvida. Sem nenhuma dúvida. Claro.

No Bar - Claudio Lovato Filho

Assim que entrou no bar, ele ouviu pela primeira vez aquela voz que jamais lhe sairia da cabeça:
“Porra, o nosso time fodido e você no bar, é?”
Era uma voz de homem, talvez de meia-idade, com certeza bêbado.
Essa primeira frase ele fez que não ouviu. Dirigiu-se a uma das duas únicas mesas ainda vazias, ambas perto do balcão, conduzindo a namorada pela mão. Um casal de amigos vinha logo atrás.
A voz bêbada, gritada, arranhada, vinha de um canto do bar, onde um grupo de homens – a maioria calvos ou grisalhos – ocupava uma mesa.
“Vai pra casa, cara!”
Os quatro se sentaram, com a tensão impressa nas fisionomias.
Agora era uma outra voz, era um segundo homem gritando:
“Você tá de sacanagem com a gente, né, porra?”
Cristiane, a namorada, chegou perto dele e lhe disse:
“Rafa, vamos embora daqui, esses caras querem confusão”.
Ele não respondeu. Apenas sorriu para ela e chamou um garçom.
Victor, o amigo, lhe disse:
“Tem outros lugares pra gente ir, aqui perto mesmo. Vamos nessa”.
Ele olhou para o amigo e para a esposa dele, Rosane, e de novo apenas sorriu.
O garçom se aproximou. Rafa disse:
“Eu vou tomar uma cerveja, a mais gelada que você encontrar”. Então virou-se para os outros: “E vocês?”
Cristiane e os amigos olharam para ele, surpresos. Rafa raramente bebia – um brinde aqui, outro ali, no Natal, no réveillon e em outras poucas ocasiões.
Victor olhou para ele, balançou a cabeça quase imperceptivelmente e disse que o acompanharia na cerveja. Victor reconheceu ali, naquela atitude, o velho amigo de infância, mais que um irmão. As mulheres pediram suco.
“Tem jogo no domingo, esqueceu, safado?”
Era de novo a voz do primeiro homem, agora com uma dose a mais de agressividade.
Era noite de quinta-feira. A concentração começaria no dia seguinte, de manhã. Rafa sabia que estava totalmente “dentro da lei”. Queria apenas sair com a namorada e com os amigos, comer uma pizza, rir um pouco, desopilar antes da guerra que seria o jogo de domingo, mais uma de muitas batalhas para evitar o rebaixamento.
Rafa era primeiro volante, camisa 5, capitão do time e um dos mais experientes do elenco.
O garçom chegou com a cerveja e disse que os sucos estavam a caminho. Fez menção de servir a cerveja, mas Rafa fez sinal de que não era necessário. Ele mesmo pegou a garrafa pelo gargalo, encheu a tulipa do amigo Victor e em seguida a sua. Depois, ergueu-a, Victor fez o mesmo e os dois brindaram. Rafa deu dois longos goles na cerveja.
A voz do primeiro homem ressurgiu ainda mais alta, mais gutural, beirando a histeria:
“Pinguço filho da puta!”
E a voz do segundo sujeito:
“Pau d’água de merda! Além de não jogar nada é pudim!”
Várias pessoas começaram a deixar o bar.
O dono do lugar, ou talvez fosse o gerente, ou ambas as coisas, saiu de trás do balcão e dirigiu-se à mesa onde estavam os exaltados. Ficou ali por alguns minutos, de pé, com as mãos apoiadas na mesa, falando, em missão diplomática.
Rafa e Victor terminaram a cerveja, e as garotas, seus sucos. Rafa chamou o garçom e pediu a conta, que chegou rapidamente. Rafa pagou em dinheiro.
“Vamos?”, perguntou.
Os quatro se levantaram e saíram do bar. Havia murmúrio na grande mesa dos bêbados de meia-idade, mas não se ouvia mais gritos.
Rafa saiu do bar pensando que domingo, mais uma vez, jogaria o máximo que pudesse, faria o melhor possível, como sempre; jogaria pelo time, por seu técnico – de quem gostava muito -, pelo clube, pela torcida (a parte da torcida que valia a pena) e jogaria por ele próprio, em mome de sua história pessoal. Mas – e ele já sabia disso naquele momento, embora só fosse reconhecer algumas horas mais tarde, de madrugada, acordado na cama, ao lado da adormecida Cristiane – que jogaria também por aqueles sujeitos do bar, porque assim era a vida de um jogador de futebol; jogaria também pelos caras do bar porque era a melhor resposta que poderia dar a eles, porque era a melhor maneira de mostrar a eles que tinha o poder de levá-los da revolta à mansidão, da amargura à euforia, da frustração ao êxtase, quando quisesse e pudesse.
Mas principalmente quando quisesse.

O Pior Adversário - Claudio Lovato Filho

O jovem jogador chega para o técnico e diz:
“Professor, eu queria dar uma palavrinha com o senhor, pode ser?”
O treinador se chama Gilberto Schneider, um veterano homem do futebol.
“Vamos ali na minha sala”.
Na pequena sala sem janela havia pouca coisa além de três cadeiras, um frigobar e uma mesa sobre a qual ficavam um telefone, os jornais do dia e uma pasta cinza com elástico bastante surrada contendo anotações.
Entraram e Schneider fechou a porta. Ficou de pé. Queria deixar claro que o tempo era curto e que estava com pressa.
(O treino coletivo começaria dali a exatos vinte e sete minutos.)
“Diga, Paulinho.”
“Professor, é o seguinte: eu estou preocupado.”
“Com o quê?”
“Vou marcar o Dias no domingo. Ele vai vir com aquele drible dele pra cima de mim toda hora, professor.”
Schneider ficou em silêncio. Viu medo no rosto de seu jovem lateral-direito. Mas viu também uma grande vontade de acertar. Viu compromisso.
“Eu confio em você, rapaz. Se não confiasse, e muito, eu teria de mudar todo o nosso esquema de jogo, porque aí seria necessário colocar mais um homem nosso para te ajudar.”
“Eu sei que o senhor confia em mim, professor, e sou grato por isso, pode ter certeza. Mas… e se ele tentar barbarizar pra cima de mim, professor, como é que eu vou fazer? Eu não sou de baixar o sarrafo, o senhor sabe disso.
E, no mais, mesmo que eu fosse, o senhor sabe como é, eu ia acabar expulso ainda no primeiro tempo…”
Schneider ficou pensativo. Mas as palavras começaram a se apresentar rapidamente, como pára-quedistas experientes e disciplinados atendendo, um a um, ao sinal para saltar do avião.
“Deixa a sua intuição falar”.
O jovem jogador levou um tempo para entender.
“Como é que é, professor?”
“Você vai ter de antecipar o drible dele. E dar o bote na hora certa. Na bola. Você consegue.”
Paulinho baixou a cabeça.
“Você está bem preparado, rapaz. Está em ótima fase, física e tecnicamente. Todo mundo está te elogiando. Do nosso
preparador físico ao xarope aquele da Rádio Sport todos estão dizendo que você merece uma chance na seleção…”
Paulinho seguia de cabeça baixa, com as mãos para trás, e com o pé direito já calçado de chuteira tentava apagar um cigarro imaginário no chão.
“E se não funcionar, professor?”
Schneider, de braços cruzados sobre o peito, olhou para a parede à direita, na qual havia um pôster com o time campeão estadual do ano passado.
“Se não funcionar, pode ser que ele cruze para algum companheiro, pode ser que ele mesmo tente o chute, pode ser que o seu amigo Caio faça o que eu o mandei fazer e esteja na sua cobertura no momento preciso, sem vacilar. Mas se funcionar, e vai funcionar, eu sei que vai, vai funcionar logo na primeira vez que ele vier para cima de você, você vai desarmar o Dias e entregar a bola para um companheiro seu e vai chegar junto dele e vai dizer assim: ‘Hoje você não vai ganhar nenhuma em cima de mim, porque o sujeito que ensinou o teu pai a jogar e que te ensinou a jogar está lá no meu banco de reservas, e você sabe muito bem quem é ele, então desiste’”.
O jovem lateral-direito estava de boca aberta.
“O senhor, professor…?”
Schneider balançou a cabeça.
“Não. Eu não”.
O treinador abriu a porta, chamou seu lateral-direito, olhou fixo para um canto escuro do vestiário, fez um sinal com a cabeça e disse:
“Ele”.
Paulinho arregalou os olhos.
“O seu Orlando?”
Orlando era o chefe dos roupeiros.
“Domingo ele vai estar no banco, ao meu lado, olhando para você, falando com você, fazendo sinais para você, mas, principalmente, esperando que você use a única arma que pode resolver a parada: a sua intuição. Entendeu?”
“Entendi.”
“O Dias tem habilidade, você também tem. Ele tem velocidade, você também tem. Ele tem força, você também tem.
Entendeu?”
“Entendi, professor”.
Resignado, pouco convencido da eficácia do aconselhamento que acabara de receber, e ainda apreensivo, Paulinho agradeceu, deu meia volta e foi para o seu reservado no vestiário colocar o resto do uniforme de treino. Quando terminou, ficou olhando para o velho Orlando: corpo franzino, ombros estreitos, barba por fazer, um pano sujo de graxa jogado sobre o ombro. O roupeiro parecia distante, imerso em pensamentos. Olhava fixamente para algum ponto entre a porta do vestiário e a janela basculante sobre ela. De repente, sem qualquer transição entre uma situação e outra, o velho abandonou o ar de desligamento, olhou direto nos olhos de Paulinho e moveu os lábios de uma maneira que o jovem jogador conseguiu entender perfeitamente o que ele dissera, ou assim acreditou. Foram três palavras, pronunciadas sílaba a sílaba, bem devagar. Sorrindo (um sorriso sem compaixão, um sorriso assustador), o velho roupeiro disse, sem emitir qualquer som:
Você
E depois:
Está
E por fim:
Fodido.
Então parou de sorrir, bruscamente, voltou a limpar as travas da chuteira que tinha no colo e retomou aquele ar de quem estava a muitos milhares de quilômetros dali.
O jovem jogador continuou olhando para o roupeiro, o coração aos pulos querendo sair pelo peito como num arrombamento, sem saber se deveria ou não se levantar e perguntar a ele o que, afinal de contas, tinha significado aquilo, aquilo que ele tinha dito ou tentado dizer. Mas ficou parado, sentado em seu reservado, petrificado, sem saber o que fazer, completamente perdido e sozinho no meio de um oceano de medo e desamparo.

Caneta - Claudio Lovato Filho

O lance aconteceu aos 27 minutos do primeiro tempo. Ele devia ter sido mais prudente, mas foi precipitado e aí deu no que deu. Um jogador da sua experiência, um volante rodado, com passagem pela seleção, jamais poderia ter entrado daquele jeito no garoto bom de bola e abusado que todos garantiam ser um dos maiores talentos surgidos nos últimos tempos. Mas o volante macaco-velho foi muito afoito e tomou a caneta humilhante.
Caneta, janelinha, tanto faz o nome, depende da região do país, o fato é que o garoto marrento, cheio de ginga e debochado, com a camisa 10 às costas, meteu a bola no meio das pernas do volante veterano e o estádio veio abaixo. A torcida do time da casa, time do garoto atrevido, vibrou com se o moleque tivesse feito um gol.
O volante se chamava Carlos Felipe e nunca havia passado por uma situação daquelas, não daquele jeito, com aquele grau de humilhação. Já havia tomado muitos dribles, claro, isso faz parte do ofício, sobretudo se o sujeito joga na defesa ou, como era o caso dele, na proteção da zaga. Mas assim, desse jeito, uma caneta clássica e irretocável, perfeita, até meio cômica, pela facilidade com que foi aplicada, nunca.
Não foi uma caneta qualquer: o garoto dominou uma bola que vinha do alto, um tijolo de seis furos lançado do vigésimo andar, dominou a bola com absoluta calma e categoria com o peito do pé, amaciou-a e a colocou no gramado. Carlos Felipe achou, no calor do momento, que depois de dominar uma bola difícil daquelas, o garoto não teria tempo sequer de virar a cabeça para frente e tentar dar sequência à jogada, e então chegou no moleque como um ônibus lotado sem freio ladeira abaixo. O guri, o sacana do guri, usou a sola do pé esquerdo (apesar de ser destro) para passar a bola entre as pernas de Carlos Felipe, que, no desespero para evitar aquele drible, acabou escorregando e caindo, não sentado, o que tornaria a coisa toda ridícula demais, desonrosa demais, mas de lado, uma derrapada. O lance seguiu, o camisa 10 acionou seu lateral-esquerdo, a bola foi alçada na área do adversário, o centroavante tentou o cabeceio, mas, acossado, por dois zagueiros, acabou mandando a bola longe do gol.
Mas a caneta estava dada.
Carlos Felipe colocou em campo toda a sua maturidade como jogador e homem. Repetiu para si mesmo, a cada passo que dava no gramado, que não poderia perder a cabeça, que ir à forra com violência seria um erro. E foi em frente no jogo, com seu desempenho competente de sempre, até o árbitro apitar e apontar para o centro do campo, encerrando o primeiro tempo.
Ele conseguira se controlar, sim, claro, era um jogador veterano, um homem maduro, e tomar drible faz parte do futebol, porra. E a situação até mesmo poderia acomodar-se daquele jeito, sem consequências maiores, se na saída do campo, quando os dois jogadores passaram um pelo outro a caminho dos vestiários, o garoto não tivesse dado aquela risadinha. Foi aquela risadinha safada que causou todo o estrago. É o que Carlos Felipe diz até hoje.
Claro, Carlos Felipe não sente orgulho pelo que fez. Não pensa nisso como algo pelo que deva se congratular, de forma alguma. Mas também não se arrepende, essa é a verdade.
Foi logo as 8 minutos do segundo tempo. O garoto, cujo nome era Dicson André e tinha na ocasião 18 anos, dominou a bola no peito, pela última vez em sua vida, e, segundos depois, acelerou para cima do outro volante do time visitante, Clécio, que foi driblado facilmente e não entendeu nada. O próximo da fila era Carlos Felipe. Tudo muito rápido, tudo muito intuitivo. Dicson gingou uma vez na frente do oponente e, quando foi balançar de novo, com a bola começando a cumprir sua trajetória rumo (outra vez!) ao vão das pernas do adversário, recebeu uma entrada de frente, sola da chuteira na parte baixa das canela direita, e só o que sentiu então foi uma dor filha da puta, e, para piorar as coisas, o pé esquerdo preso num buraco do campo, e então o joelho transformado na lataria de um carro de passeio depois da colisão frontal com um caminhão-frigorífico a 140 quilômetros por hora.
Havia muita gente com as mãos na cabeça, no gramado, na pista atlética e nas arquibancadas. Companheiros do garoto, do menino chamado Dicson André, único filho de um vigia de banco e de uma balconista de farmácia, de nome Rosa Maria, foram para cima de Carlos Felipe, mas não para agredi-lo, não, foram em direção a ele aos gritos, desesperados, alguns já chorando, perguntando por que, o porquê de ele ter feito aquilo, por quê?, e tudo o que ele, Carlos Felipe, conseguiu fazer naquele momento foi passar a mão na testa para tirar o suor que escorria e ficar de boca semiaberta, sem poder articular uma palavra sequer, imerso em completa estupefação, gente falando com ele, gritando com ele, e ele ficando surdo, surdo, cada vez mis surdo, o coração batendo como um bumbo nas mãos de um bêbado eufórico, o arrependimento começando a se instalar no amplo território do qual se tornaria dono para sempre.
O garoto foi retirado na maca, colocado na ambulância que entrou no gramado e levado para o hospital, de onde saiu duas semanas depois numa cadeira de rodas, a qual trocou por um par de muletas que o acompanharam por muito tempo, até o momento em que não era mais um garoto e em que o futebol não era mais para ele possível como profissão nem como lazer.
Ali no gramado, ainda boca meio aberta, Carlos Felipe foi expulso pela última vez em sua vida. Não que tivesse sido condenado a uma pena pesada pelo tribunal, não foi por isso. Ele decidiu, ali mesmo, enquanto passava a mão na testa suada, que não queria mais prosseguir. Aquele foi seu jogo de despedida – sem homenagem, sem festa, sem honra.
“Aquela risada”, diz até hoje Carlos Felipe aos seus conhecidos na escolinha de futebol em que trabalha, “foi tudo culpa daquela risadinha filha da puta”.

O grito morto da arquibancada - Claudio Lovato Filho

Tem torcidas que só aparecem quando o time chega nas semifinais. Ou nas quartas-de-final, na melhor das hipóteses. É um negócio que me deixa indignado. Na verdade, me deixa puto da vida. Enquanto o time não está lá, pelo menos entre os oito ou quatro melhores, só o que se vê são uns gatos-pingados nas arquibancadas, uns poucos caras de valor, sujeitos decentes, gente de fé. O resto fica em casa, assistindo o jogo pela TV, os mais abonados vendo as partidas nas TVs de plasma e LCD no pay-per-view, sacaneando os jogadores do seu próprio time, chamando o pessoal de ferida, mulambada, marretando o técnico.
No momento, estou jogando num clube que tem uma torcida assim. São uns merdas, uns cagalhões. Não é à toa que, em muitos casos, os filhos deles acabam virando torcedores de outros times. Uma torcida de gente velha. Que porra de exemplo a molecada tem em casa, afinal de contas?
O nosso time até que está bem arrumado, estamos nos esforçando, mas aí o que acontece? Sempre que a gente joga em casa, aparecem no máximo uns 3 ou 4 mil torcedores – e isso se o jogo for no domingo e tiver sol. Mas quando a gente vai jogar na casa do adversário, é sempre a mesma coisa: estádio cheio, apoiando os caras e botando a maior pressão em cima da gente. Menos mal, sinceramente! Menos mal que, em algum lugar, tem gente que vai ao estádio para nos ver jogar. Mesmo que não seja exatamente para nos ver jogar… Não importa se estão torcendo contra. Pior do que torcida contra na casa do adversário é torcida nenhuma na casa da gente.
Tem torcida que é covarde, e é isso aí. E assim como agem no futebol, agem na vida. Não, não venha sacanear, dizer que eu sou o Freud da Pequena Área ou Filósofo do Escanteio, como já me chamaram aqui neste clube de bosta. É só você observar com cuidado: esses caras que não apoiam o time e estão criticando seus próprios jogadores são fracos para tudo, são fracos para a vida: no trabalho, estão sempre recebendo cagada na cabeça; em casa, são mandados pela mulher, desrespeitados pelos filhos… Não sabem se impor, não têm hombridade, acho que não têm nem virilidade.
Você me desculpe, mas é que eu estou puto da vida mesmo.
O problema é que eu fui criado e joguei mais de 15 anos num clube que tem uma torcida do caralho. Lotava o estádio até quando o time estava para ser rebaixado – e depois, quando foi rebaixado mesmo, continuava indo aos jogos, e gritando, e apoiando, e cantando o hino do clube, e aplaudindo os jogadores quando tentavam uma jogada mais arriscada e erravam, quando eram substituídos… Puta que pariu! Que diferença.
Saí de lá porque o clima ficou insuportável… por causa da torcida. Mas isso é outra história. Quer dizer… Não, não é outra história, não. Eu sei. Acontece que eu andava numa fase ruim. Mal na parte física, na parte técnica, em todas as partes, principalmente na parte emocional. Eu estava me separando, exagerei na bebida. O rendimento caiu, claro. E aí teve um clássico local que nós precisávamos ganhar de qualquer jeito para continuar sonhando com o octogonal final e eu andei me complicando.. Um passe errado… Na nossa intermediária… Uma puta entregada. Foi uma merda. Depois perdi a cabeça, me envolvi numa confusão com um jogador do time adversário malandro velho, figura conhecida, e eu, mais malandro velho ainda, fui expulso, deixei time na mão aos 40 minutos do primeiro tempo e aí, adeus.
Mas isso não tira a minha admiração por aquela torcida. Acho que eles ainda gostam de mim e até queriam que eu voltasse. Mas isso, se acontecer, vai ser só daqui a alguns anos. E com a idade que eu tenho isso deve significar nunca mais.
Bom, mas chega de ficar enchendo a cabeça por causa desses merdas que estão lá sentados no sofá da sala, tomando cerveja. A preleção do nosso técnico está terminando. Boa gente, o Seu Binatto, Pedro Binatto, grande técnico, sabe tudo, já viu tudo, tem muita experiência. Está conseguindo fazer milagre com este nosso time. Vamos ver o que a gente consegue hoje. O nosso centroavante, o Helinho, está voando baixo. Já fez oito gols no campeonato. Garoto esperto, bom de bola. E é humilde. O Gilson e o Macário estão segurando muito bem lá atrás. Dois zagueirões que não brincam em serviço. E tem o Mauro Felipe, nosso armador, que está jogando demais. É isso. Vamos lá. Vamos jogar uns pelos outros, vamos pelo Seu Binatto, pelo Carlão, nosso roupeiro, pelo Dr. Vilmar, o médico mais amigo dos jogadores que eu já conheci, é isso aí. Conseguimos formar uma família aqui, essa é que é verdade. Uma família boa. Fico imaginando se não fosse assim. Com essa torcida que nós temos, seria uma tristeza, seria um horror. Seria o inferno.

Solitário - Claudio Lovato Filho

O técnico de futebol é um solitário, meu padrinho Ivan Miguel sempre dizia. Ele nunca foi técnico, nunca foi jogador. Meu padrinho Ivan Miguel era contador. Um torcedor de arquibancada.
Estou pensando nisso agora, nas palavras do meu padrinho, porque fiquei sabendo pelo Altair, meu auxiliar, que por sua vez ficou sabendo pelo Cidão, preparador de goleiros, que os jogadores estão querendo me derrubar. O Richard e o Neozinho estão liderando a coisa.
O Richard é o meu jogador mais experiente, já disputou duas Copas, botei ele na reserva. O Neozinho, bom, este é o que se pode chamar de traíra. Eu o trouxe lá do fim do mundo, de um clube que, na melhor das hipóteses, vai ficar lutando eternamente para se manter na terceira divisão nacional. Trouxe o cara para cá, há mais de dois anos, o garoto foi recebido como um reizinho por minha causa, deram a ele todas as condições de mostrar o futebol que tem, e agora está aí, querendo me passar a rasteira. Quantas vezes o moleque veio me abraçar na beira do campo depois de fazer um gol… O pessoal aqui do clube, de sacanagem, dizia que ela era meu filho.
Mas o técnico de futebol é um solitário, como dizia o meu padrinho Ivan Miguel. E olhe que ele nunca entrou num vestiário, nunca ouviu uma preleção, nem esteve em concentração. Não tem jeito, eu sei: quando os jogadores querem derrubar o técnico, eles derrubam mesmo. É só questão de tempo. Estou sabendo que tem jogador que até gosta de mim, que não vê problema na minha permanência, mas estes, como sempre acontece quando o movimento está encorpado, quando o processo é comandado pelos caras certos, os que têm a tal da “ascendência sobre o grupo”, calam o bico, fingem que não é com eles, consentem com tudo.
O presidente é um covarde que quer me demitir faz tempo. Só estou aqui até agora porque o diretor de futebol, responsável pela minha vinda para o clube, conseguiu segurar as pontas. Esse diretor, que é um sujeito decente (sou suspeito para falar, claro), também acontece de ser um tremendo conhecedor do futebol, coisa que esse canalha desse presidente não é nem nunca vai ser. O diretor sabe que o time é limitado, sabe que o fato de estarmos hoje na décima quarta colocação na tabela é um pequeno milagre, porque já era para estarmos matematicamente rebaixados nessa altura do campeonato, com o time que nós temos. Mas não adianta, não tem jeito. Esse presidente quer me usar como bode expiatório, quer jogar para a torcida. Um filho da puta.
É a primeira vez que passo por isso. Depois de 15 anos como técnico, oito clubes, cinco estados, enfim chegou a hora. E por quê?, eu meu pergunto. Errei onde? Não sei. Nunca fui de dar tapinha nas costas de jogador, nem de assar churrasco para eles. Mas também sempre deixei claro que não gosto de bajulação, nunca menti para jogador, nunca critiquei ninguém em público. Quando um deles perde a posição, eu mesmo chamo o cara para uma conversa olho no olho e informo a minha decisão. O jogador é o primeiro a ficar sabendo, e fica sabendo por mim, o treinador. Assumo os meus erros, não jogo a culpa pelos maus resultados em ninguém, sempre fui assim, quem me conhece sabe que tudo isso é verdade.
Então é isso. Um jogador vaidoso, que viu na perda da posição um insulto pessoal, uma tentativa de humilhação, partiu para o revide. Em momento nenhum fez autocrítica. O Richard não estava jogando nada havia pelo menos um ano. Porra nenhuma. Está acima do peso, é uma caricatura do centroavante de tempos atrás, hoje não consegue nem segurar a bola lá frente quando o time precisa ganhar tempo e fôlego num jogo difícil.
E tem o covarde que os conselheiros desse clube tradicional e de bela história elegeram para a Presidência. Esse tipo de tumor só é extirpado quando o clube é rebaixado, quando a torcida vive um momento de completa vergonha e a instituição é achincalhada por todos. Aí o cara esse vira persona non grata, fica proscrito, a foto dele nem vai para a galeria de ex-presidentes.
Mas o que mais me magoa mesmo, no fim das contas, é o envolvimento do Neozinho nessa sacanagem contra mim. O que será que o Richard botou na cabeça dele? Puta que pariu.
Você veja. A pessoa tenta levar a vida da melhor forma, da maneira mais correta possível, trabalha direito, se aprimora, não se afasta da ética em momento nenhum, é justo com quem está embaixo, respeitoso com quem está em cima, e então aparece um mau-caráter para complicar a sua vida.
Olha aí o telefone tocando. Para mim? Quem é? O diretor de futebol? Atendo, claro. Sujeito muito decente, me trouxe para cá, segurou as pontas até onde deu. Boa gente, é do ramo. Passo aí já – é o que eu digo quando ele pergunta se eu podia dar uma chegada na sala dele. Lógico que eu já sei qual vai ser o assunto da conversa. E como ele é um sujeito direito, e como sempre me tratou com respeito e até com admiração, eu vou facilitar a coisa para ele, vou chegar dizendo logo que já sei do que se trata, que ele não precisa se preocupar, que eu já estava preparado, que foi um prazer ter trabalhado com ele etc e tal. E, depois disso, talvez me aposentar seja a única coisa sensata que me reste fazer.
Mas talvez não seja nada disso. Pode ser que eu chegue lá e ele me diga que convenceu o presidente a afastar o Richard e o Neozinho do grupo e me manter no cargo. Vou caminhando do vestiário à sala da Diretoria de Futebol pensando nisso. E uma nesga de esperança se abre no meu peito. É porque, além de solitário, todo técnico de futebol, no fundo, é um otimista, mas isso não foi o meu padrinho Ivan Miguel quem disse.

Leila e Zé Nelson - Claudio Lovato Filho

Leila reza todo dia, todo santo dia, para que Deus proteja seu menino, Zé Nelson. Reza todo dia, várias vezes por dia por ele, seu único filho, seu garoto.
Zé Nelson que sempre, talvez desde antes mesmo de nascer, só pensa em jogar bola, só pensa em futebol.
Mas agora Leila sabe que terá de rezar ainda mais, porque Zé Nelson virou jogador profissional e, pelo que ela ficou sabendo, pelo que ela sempre viu e ouviu no jornal, na TV e no rádio, futebol profissional não é brincadeira, tem violência no campo, tem violência de torcedor, tem safado por todo o lado, aparece falso amigo toda hora para tentar tirar casquinha, levar alguma vantagem, e isso sem falar em mulher esperta querendo engravidar.
“Meu Deus”, ela pensa todas as noites, antes de pegar no sono, “Meu Deus, proteja o meu garoto. Leve o meu Zé Nelson pela mão, Senhor”. Zé Nelson, que acabou de completar 18 anos e que ainda nem barba tem, Zé Nelson com aquelas pernas finas dele, aquelas perninhas arqueadas que nem as do pai dele. “Ai, meu Deus, proteja o meu menino”.
São muitos pais-nossos e muitas aves-marias, todos os dias. É isso o que lhe apazigua o espírito, o que lhe dá calma, porque ela tem de afastar muitos pensamentos da cabeça, muita ideia ruim, aquele amigo dele que também joga no clube, o Luiz Fernando, que tem uma família que todo mundo sabe que é metida com droga, a família toda, e aquele seu Morais, o sujeito que ajudou Zé Nelson a se tornar profissional, ajudou o Zé Nelson a assinar o primeiro contrato no clube e que prometeu que um dia o garoto vai jogar na Europa. “ Não consigo confiar no seu Morais, mas ele ajuda o Zé Nelson, ele nos ajuda. Ai, meu Deus, proteja o meu garoto! E depois tem aquilo que o seu Mauro, o nosso vizinho, me disse:” “- Olha Leila, o garoto tem que se cuidar, porque pequeno, magrinho e driblador desse jeito ele está arriscado a tomar muita porrada nos jogos. Tomara que nunca quebrem ele, mas o futebol está muito violento hoje em dia.”
Pais-nossos e aves-marias, muitos por dia, porque Leila quer o bem do seu garoto, que ver o seu menino protegido, o seu menino que já disse que a principal razão de ter virado jogador foi a vontade e a necessidade e o objetivo (ele falou assim mesmo: objetivo) de dar uma vida melhor para ela, Leila, sua mãe, sua mãezinha querida, que faz faxina para botar comida na mesa, sozinha, desde que ele se lembra. Zé Nelson, o filho único de Leila, menino que só teve pai até os dois anos de idade, quando o cara, de nome Andreíno, foi embora um dia por causa de outra mulher.
E assim são os dias de Leila e Zé Nelson: ela rezando e ele jogando bola, sonhando com dias melhores, dias em que eles vão rir o tempo todo e ela não vai mais ter de trabalhar, vai só ficar na vida mansa, na beira da piscina, e ele vai jogar onde for – no Brasil, na Europa, no Oriente, em qualquer lugar, não importa -, desde que eles (ela, principalmente) possam deitar à noite sem preocupações e acordar de manhã sem sustos.
Leila reza, Zé Nelson joga. Foi assim que eles arranjaram um jeito de entrar em entendimento com o mundo, assim mesmo, com pais-nossos, aves-marias e perninhas cambotas em disparada pelos gramados da vida, habilidosas e protegidas por Deus Nosso Senhor, a pedido de sua mãe.

Sozinho, Sob A Chuva, No Frio, Chutando  - Claudio Lovato Filho

Eu me pergunto: Por que é que aquele cara está lá até agora, sozinho, debaixo de chuva, no frio, treinando faltas, chutando e chutando e chutando no gol vazio, já que nem o goleiro dos juniores aguentou ficar mais tempo?
É, eu me pergunto: Por que é que justamente o sujeito mais velho do time, que já tem até cabelo grisalho, o astro, a celebridade, está fazendo isso, chutando no gol vazio, fazendo a bola passar por cima ou pelos lados da barreira móvel, quando já é começo da noite, venta forte e não se enxerga mais quase nada e não há mais ninguém no estádio?
Lá está ele, de agasalho azul e branco todo sujo, todo molhado, o capuz na cabeça, a chuteira parecendo mais uma bota de lama, ensopado, chutando e chutando e chutando, sendo que já tem absoluta maestria na cobrança de falta, é um exímio batedor, domina a arte e o ofício, não tem como ficar melhor nisso (embora ele deva achar que tem).
Por que é que esse cara não está em casa, com a mulher e os dois filhos pequenos, comendo uma boa massa e tomando um vinho tinto de primeira, que ele tanto gosta porque aprendeu a curtir coisas boas em suas andanças pelo mundo e também porque tem uma ascendência italiana que lhe botou certos gostos na cabeça e certas preferências no paladar?
Esse cara é o capitão do time, esteve na última Copa do Mundo e foi muito bem, é um dos maiores herois que essa torcida já teve, está rico porque soube investir o dinheiro que ganhou, e ainda está vindo de lesão, uma lesão séria, muscular, panturrilha.
Então eu me pergunto: Por que é que ele está lá até agora, na chuva, nesse frio de lascar, com uma baita ventania, sozinho, chutando e chutando e chutando há exatos quarenta e oito minutos, depois de um treino coletivo daqueles que deixam até garoto de 18 anos acabado?
Hoje eu vou embora pensando nesse cara, no nosso capitão. Eu já vi muita coisa acontecer num campo de futebol. Inclusive cenas desse tipo, de batedores de falta (alguns, como no presente caso, brilhantes) tentando se aperfeiçoar, gente batalhadora que quer conquistar algo mais. Mas às vezes é diferente. Como agora. É o cenário, o contexto, sei lá. O jeito de o cara caminhar até o gol para buscar as bolas e recomeçar a chutar, sozinho. A cabeça baixa, os olhos fixos no gramado, a vontade de ferro, a crença nele mesmo, a certeza de estar fazendo o que tem de fazer, de estar no caminho certo, de estar vivendo a própria vida, de estar sendo quem ele é, e de depender da única pessoa de quem ele poderia mesmo depender nesta vida: ele próprio.
Então eu me respondo: Ele está fazendo isso porque se sente bem.
Eu me respondo: Ele está fazendo isso porque gosta demais da vida que tem. E não queria outra, não mesmo.
Ele é feliz assim.

Um Grande Peso - Claudio Lovato Filho

“É só jogar”, o técnico tinha lhe dito várias vezes ao longo dos últimos dias. “É só jogar o seu futebol”.
Ele tentou acreditar nisso. Tentou se imbuir do sentimento de que seria apenas o caso de entrar em campo e jogar seu futebol.
Gente boa, esse seu novo treinador.
Mas falar sempre foi mais fácil do que fazer.
A alguns minutos de começar a andar pelo estreito corredor e subir a escadaria que levava ao campo do estádio de seu ex-clube, pelo qual jogou durante exatos 11 anos e sete meses, ele estava nervoso. O coração estava disparado e havia um suor frio descendo pelas costas, um suor que nada tinha a ver com o suor normal do aquecimento no vestiário. Mas também havia um desconforto terrível cada vez que percebia um dos novos companheiros olhando com o que ele avaliava ser um olhar de desconfiança, e um exasperante tremor nas mãos e nas pernas enquanto fazia sua oração individual num canto do vestiário dos visitantes, vestiário que ele usava pela primeira vez.
“É só jogar”, disse e repetiu o treinador, a semana inteira. “É só jogar o seu futebol”.
Pois sim.
Ele é que sabia o que estava enfrentando. Ele é que sabia.
Perguntava-se se seria aplaudido, vaiado ou tratado com indiferença pela torcida da qual fora ídolo durante mais de uma década.
E se fosse vaiado? Como reagiria? Era um sujeito tímido. Não conseguiria colar um sorriso na cara, dar tantas entrevistas quantas fossem solicitadas pelos repórteres de campo e sair trotando. Não conseguiria.
E se fosse aplaudido? Tentaria levantar os braços e acenar para a torcida, acenos para todos os quadrantes do estádio. Isso ele acha que conseguiria fazer. E, se isso acontecesse, seria o homem mais feliz do mundo.
Mas e se fosse concedida a ele apenas a mais pura e simples indiferença? Bom, isso era tudo o que ele não queria. Talvez até mesmo preferisse as vaias.
O técnico agora chegara ao seu lado. Já estavam todos de pé, começando a caminhar em fila em direção à escadaria. O técnico lhe disse:
- E aí? Tudo bem?
E ele respondeu:
- Beleza.
Então os jogadores de seu novo time, o segundo time que ele defendia na vida, começaram a caminhar pelo corredor estreito e escuro que levava ao campo, e ele, naquele exato instante, quis muito, quis de todo o coração estar bem longe dali, quis estar ao lado da mulher e dos três filhos, caminhando com eles na beira do açude que ficava no terreno comprado havia um ano em sua cidade natal, no interior, no qual ele construíra uma casa pequena, porém muito simpática e confortável, seu refúgio, seu pequeno e indevassável paraíso. Mas não podia estar lá agora. Não estava lá. Estava ali, no estádio que fora sua casa, ou talvez até mais do que isso, por 16 anos, contando o tempo das categorias de base.
Ele estava no meio da fila – nem entre os primeiros jogadores que iriam pisar o gramado nem na rabeira. Logo atrás dele, um companheiro de time, um velho conhecido com o qual jogara junto e chegara a fazer boa amizade no início da carreira, colocou a mão em seu ombro e deu dois tapinhas, rápidos e firmes. Um gesto simples, solidário e sincero. Ele virou-se e sorriu. Camaradagem singela, atitude de valor que jamais seria esquecida.
A luz do sol bateu em cheio em seu rosto quando o companheiro que estava imediatamente à sua frente venceu o último degrau da escadaria e entrou em campo. Quando isso aconteceu, não levou nem mais um segundo para que ele começasse a ver, na saída da boca do túnel, uma enorme quantidade de repórteres com suas câmeras e seus microfones, todos olhando para ele e vindo em sua direção. Mas ele queria olhar mais atrás e mais acima deles, ele queria ver a torcida. E foi abrindo caminho entre repórteres e cinegrafistas e fotógrafos, o passo apressado em direção ao campo, e quando conseguiu chegar lá, bem no centro do gramado, no grande círculo, que era sua região preferida de trabalho, ele levantou os olhos para as arquibancadas, e o que ele viu e ouviu (o que ele viu e ouviu!) naquele momento o fez se sentir feliz de um jeito até então desconhecido para ele; fez com que sentisse completamente realizado. Naquele momento ele se convenceu, profunda e definitivamente, de que tinha feito tudo da melhor maneira possível; tinha feito tudo de maneira honesta e honrada.
E então seu coração ficou leve. E ele jogou.

Herói - Claudio Lovato Filho

O jovem ponta-esquerda (naquele tempo existiam ponta-esquerdas) estava sentado sozinho nas sociais do estádio, lendo uma carta. Entre os dedos da mão esquerda segurava um cigarro (naquele tempo os jogadores podiam ser vistos fumando, até mesmo no estádio). O jogador estava totalmente concentrado na leitura da carta, e o menino imaginou que podia ser uma carta dos pais ou da namorada. O menino tinha 13 anos e só pensava em futebol. O ponta-esquerda tinha 19 e era o grande ídolo do menino.
O menino estava com dois companheiros da escolinha, da sua mesma idade. Depois de cochicharem nervosamente e pesarem os prós, os contras e os riscos (tudo isso tendo durado não mais do que um minuto e meio), eles começaram a descer os degraus das sociais em direção ao jogador, que continuava absorto na leitura. Então se aproximaram, disseram o nome dele, ele interrompeu a leitura da carta, bateu a cinza do cigarro e recolheu as carteirinhas de presença, uma a uma, e a caneta que um dos meninos lhe dera, e pôs seu autógrafo nas capas internas e as devolveu com um sorriso quase imperceptível e um balançar de cabeça mais imperceptível ainda. E eles disseram um “obrigado”, seguido do nome do jogador, em um volume de voz mais alto do que era a intenção deles, e começaram a subir as escadas, cada um com o seu troféu bem guardado no bolso ou na mochila, e foi assim que o ponta-esquerda, que já era um ídolo deles, passou a uma condição ainda mais importante, à categoria de herói com quem eles tiveram um momento de proximidade e interação real, um herói que escreveu seu nome num pedaço de papel que era deles, só deles, um ato que não significou absolutamente nada para mais ninguém neste mundo, mas que para eles foi demais, foi uma experiência a ser guardada para sempre na memória e no coração.

O lugar da memória - Claudio Lovato Filho

“Vamos lá, pai. Vamos pro jogo”.
“Não, filho, não vou”.
“De novo, pai? Por que isso?”
“Nada, filho, nada de mais”.
“Já é a quarta vez que eu te convido e você sempre recusa… Por que isso, pai?”
“Aquilo lá não é pra mim, filho”.
“Como assim, pai? Por que você está dizendo isso?”
“Piso de mármore, filho?”
“Pai…”
“Colunas de granito? Aço escovado no banheiro?”
“Qual é o problema, pai? Nós não merecemos? Nosso clube não merece? Você queria que a gente sentasse no cimento?”
“É luxo demais, filho. Futebol não é isso… Aquilo é um exagero. É ostentação demais.”
“Nosso clube é grande, pai. Tinha que ter um estádio assim! Não podemos ficar pra trás!”
“Aquele dia…”
“O quê?”
“Aquele dia em que nós fomos visitar as obras, um pouco antes da inauguração…”
“Sim, eu me lembro. O que é que tem?”
“Eu achei aquilo triste, filho. Aquele negócio todo lá, tudo muito bonito, muito moderno, mas me deu uma tristeza que eu vou te contar…”
“Pai! As coisas mudam! Não podíamos mais ficar no nosso estádio. Ele ficou antigo, ultrapassado, dava mais despesa que receita!”
“Eu sei”.
“A tristeza que você sentiu…”
“Sim?”
“Pai, você passou a infância, a adolescência e mais um tempão no nosso antigo estádio”.
“Sim foi.”
“Ele faz parte da sua história, da história da sua vida”.
“Faz, sim”.
“Faz parte da minha também, mas faz muito mais da sua”.
“Claro, natural”.
“Pai, a tristeza que você sentiu quando foi ver as obras tem uma explicação simples”.
“Ah, é? E qual seria?”
“Você não viu seu passado lá”.
“Não, não vi”.
“Mas claro, pai! Ninguém viu! Isso seria impossível! Porque a nossa arena está nascendo agora. Não tem história. Ainda. Não existe uma memória ligada a ela. Ainda não. Ela é o nosso presente, mas é, principalmente, o nosso futuro, pai!”
“Sei lá…”
“Pai, dá uma chance para a nossa nova casa!”
“…”
“Dá uma chance para o nosso clube se renovar, pai! Uma chance para ele se preparar para o futuro!”
“…”
“Dá uma chance pra você mesmo, pai!”
Então eles ficaram em silêncio. O filho com a camisa do clube, carteira de sócio na mão, sentado na ponta do o sofá, olhando para a rua pela janela da sala de estar. O pai, recostado em sua poltrona, com a TV ligada no canal que ia transmitir o jogo. Ele, o pai, decidiu que, sim, daria uma chance. O filho estava certo, certo até demais. Tudo o que o filho dissera estava correto. Ele, pai, já entendera isso há muito tempo, antes mesmo da desativação e da demolição da antiga casa. Sim, ele daria uma chance. Faria isso pelo filho e por ele mesmo. Ainda que não tenha nenhuma convicção sobre o acerto de sua decisão e a chance de êxito da empreitada.

Jogo de Estréia - Aguinaldo Araújo Ramos

(...) - Mariana. (...) - Sete, faço oito mês que vem. (...) - Fluminense, né, páie?...
- O páie, seu amigo vai ao jogo? (...) - Eu vou! (...) - Maracanã!
(...) - Gosto! Acho bonito. É da cultura da gente.
(...) - Eu jogo! Na escola. (...) - Atacante. (...) - Gosto de fazer gol, ué?... (...) - Ah, um de bicicleta. A goleira me empurrou, eu caí de costas... Puxei a bola por cima de mim...
(...) - Não. Os dois têm jeito, meninos e meninas. Depende da pessoa. (...) - Eu sempre digo: ficam três marcando! Mas vai todo mundo junto atrás da bola... Tem que organizar.
(...) - De goleira, também. Que sou alta... (...) - Ah, não. Se me jogasse na bola, quebrava um braço por jogo.
- Vem com a gente!... (...) - Tá, tchau!
---
- Esse ônibus tá muito cheio, páie! (...) - Que bagunça, essa torcida...
- Páie, eles tão gritando palavrão! (...) - Não gosto, não...
- Falta muito pra chegar? (...) - Vou tampar o ouvido.
- Páie, ainda tou ouvindo... (...) - Chegamos?... Até que enfim! (...) - Páie, se é pra xingar, eu não torço não...
---
(...) - Cachorro-quente! (...) - Suco de quê? (...) - Goiaba é o que eu gosto mais.
- Páie, cabe todo mundo lá?... (...) - É, é um portão grande... (...) - Caramba, que rampa! Não sei se ‘güento chegar lá em cima não...
- Por aqui, chega no campo?... (...) - Ah, arquibancada... Quê que é...?... Puxa, é alto, aqui. O campo é lá longe... É verdinho, né?...
- O jogo, demora a começar?... (...)
- Páie, eu queria um sorvete... (...) - De chocolate!
---
- Páie, quê que foi? (...) - Ah, é mesmo! Olha lá o Fluminense! (...) - Tô gostando! O que eu mais gosto é cor. (...) - Bandeira, uniforme... (...) - Uniforme é bonito. Preto e branco é que não combina... (...) - Não. Uniforme de Vasco e Botafogo é bonito. (...) - Vermelho e preto, combina! É Flamengo, mas combina... (...) - Combina: vermelho e verde! (...) - Grená? Quê que é grená?... (...) - Ah!, grená e verde! (...) - O da seleção brasileira. Também é bonito.
---
- Páie, pra quê que eles tão gritando?... Nem começou o jogo... (...) - Pois eu só vou torcer na hora do jogo!
- Páie! Eles tão xingando! (...) - E esse barulho todo não atrapalha os jogadores? (...) - E por que todo o mundo tem um radinho? Não tão vendo o jogo?... (...) - É chato, esse barulho, páie. Bate tambor o tempo todo aquele ali, ó...
- Páie, pede a ele lá... (...) - Você podia... (...) - Ah, tá...
---
- Páie, vam’bora?... (...) - É que não dá pra ver direito!
- Páie, manda o moço parar de tocar o tambor! (...) - Mas, eu quero!... (...) - Que barulhão!
- Moço, pára de tocar esse tambor! Ei, moço!... Ele não pára, páie...
- Páie, eles tão xingando de novo! Diz pra parar...
- Páie, você também tá gritando palavrão... (...) - Não! Quero ir embora! (...) - Eu quero ir! (...) – Choro, sim! Eu quero ir embora...
...
(...) - Mas, páie, quinze minutos é pouco?... Você queria ver mais?... Eu vi muito... Teve uma hora lá que quase fizeram um gol... (...) - Não, páie, eu gostei. É legal. Tem empolgação... (...) - Eu até queria ficar...
---
- Esse ônibus tá vazio, né, páie?... Quieto...
- Páie, sabe duma coisa?... Gostei do Maracanã. (...) - Sério, páie!
---
- Páie, quando tiver outro jogo... Você me leva?...

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