Conheci Judith Butler em 1994, quando participava do programa de professores visitantes a convite da Universidade da Califórnia em Berkeley. Inscrevi-me em seus seminários daquele segundo período do ano, interessado, principalmente, na leitura que a jovem filósofa fazia dos textos de Foucault e Derrida, bem como de Freud e de Lacan, utilizando-se de fortes entonações linguísticas. Da notória influência de Austin, sua interpretação daqueles autores acumulava os ecos, naquele momento bem audíveis, do debate entre Searle e Derrida, que tinha como base exatamente os “atos de fala” de John Austin. Butler havia recém-lançado o seu “Corpos que importam” (“Bodies that Matter”, 1993) livro que causara um certo rebuliço nos meios acadêmicos, cujos habitantes não puderam aquilatar a extensão do que lá estava, em embrião e, portanto, do que viria a ser germinado.
Desde os primeiros momentos, quando a vi no centro de uma sala abarrotada de alunos e outros pesquisadores como eu, ao redor de uma grande mesa de tampo verde, sua presença me causou forte impressão. De pequena estatura, cabelos curtos e engomados, vestindo um terninho negro, bem talhado e possuída por um ar de ausência, Judith parecia incomodada. Percebi que não era a constante demanda dos que a ouviam que a aborrecia. Era o texto que ela esmiuçava, diante da atenta audiência, que a deixava atônita, a ponto de extrair-lhe reiteradas interjeições, pequenos gritos e sussurros que diziam muito mais de sua relação afetiva com suas próprias questões do que com o que se passava naquele ambiente acadêmico. Tal impressão se manteve ao longo de todo aquele semestre, tornando-se mais evidente nas entrevistas particulares que tive com ela com o intuito de discutir um trabalho que eu escrevia a respeito de Michel Foucault. Os trejeitos, acompanhados de sons guturais, emolduravam os argumentos que se sucediam elencados com brilhante lógica e traduziam um pensamento de quem pensa diferente de si mesma – para não perder o aforismo foucaultiano.
Ao longo destes quase 25 anos, as ideias de Butler transitaram pelos mais diversos temas. Não lhe escaparam questões ligadas à linguagem, à política, ao poder, à guerra, ao judaísmo e ao tópico central que, é bem verdade, ela persegue desde o início, e que a tornou uma espécie de ícone teórico do empoderamento feminino. Refiro-me à “teoria queer” e à chamada de “terceira onda” do feminismo, para as quais a filósofa apresenta uma interpretação bastante peculiar.
O primeiro feminismo ficara para trás, quando as mulheres reivindicavam a sua legítima inserção na vida institucional, dado o fato de que os contratos, considerados na sua amplitude, só tinham validade se celebrados entre homens. A “segunda onda” também já se achava longe, quando a demanda das mulheres recaía sobre a liberdade de uso dos próprios corpos, tributários até então da dominação patriarcal e ultrajes machistas. Para a pensadora americana da terceira onda, as feministas não mais devem reivindicar, nem demandar o reconhecimento dos direitos sociais das mulheres. Tampouco a identidade de “mulher” lhes diz respeito. Ao contrário, todas e quaisquer identidades traem o feminismo ao enaltecer, implicitamente, os ideais patriarcais, cujo protótipo é a competição, hipervalorizada no mundo das acirradas disputas capitalistas.
Judith Butler – e ela não está só ao defender tais posições – aposta no primado da diferença e na deflação da identidade. De fato, Freud nos ensinou que a identidade é a propriedade capital do ego, que se estabelece por comparação entre este e os ideais da sociedade, os quais, “introjetados”, compõem uma segunda instância psíquica, denominada de “ideal do ego”. Se, por exemplo, a posse (desmedida) de bens é um valor central da atualidade, o ego se ampliará ao cumprir os desígnios impostos por este ideal. Contudo, implicitamente, ao fortalecer o ego, o que se mantém e solidifica, ainda mais, é o mandamento social que visa a posse e o consumo de bens que, em última análise, é a condição do radical desnível socioeconômico em que vivemos e de seus violentos desdobramentos. No jargão psicanalítico, dizemos que estamos diante do narcisismo exacerbado dos dias de hoje, condição do doloroso isolamento de que padecemos.
De forma idêntica, ao defender o respeito aos direitos sociais da mulher, o que acaba por se valorizar é o ideal de “Homem”, com o qual a mulher disputa e do qual, com o reconhecimento obtido, ela se diferencia. Contudo, os direitos eventualmente acolhidos relacionam-se à lei, cuja necessidade é exigida pelo dinamismo patriarcal. As diferenças ocasionalmente admitidas são parciais, onde a lei é, desde sempre, forjada pela semântica masculina que, antes de tudo, estabelece a própria comparação como operador de identidade. Neste território configurado a priori, não há possibilidade de mudança estrutural para a mulher. Por mais que ganhe, ela é diferente, só na parcialidade. Isto quer dizer que, fundamentalmente a mulher pertence ao universo masculino, do qual constitui um caso particular. O que se estabiliza, portanto, é o universo do Homem ou da humanidade que engloba a mulher como exceção.
Eis algumas das ideias centrais exibidas por esta filósofa que hoje, aos sessenta e um anos, em vias de retornar ao Brasil para uma palestra no SESC Pompéia, se choca com um abaixo-assinado com mais de 150.000 signatários que se manifestam contra a sua participação. Mas, afinal, qual o perigo que atravessa o pensamento de Judith Butler? O que, na sua participação, ameaça a ponto de precisar ser radicalmente suprimido, sem direito de colocar-se na mesa para o diálogo, devendo ser extinto antes mesmo de dizer ao que veio?
É que Judith Butler pensa com o corpo. A diferença a qual nos faz sentir não é parcial, senão total. Esta diferença não fala. A diferença total silenciosa é que nos faz falar, enquanto que ela própria se apresenta sempre em ato, fato, prática de si ou acontecimento – que acontece ao corpo. Para esta diferença, reserva-se o termo “singularidade”. A singularidade não é, portanto, identidade, senão diferença. Diferença total incomparável que designa o estilo de cada um, a maneira única como praticamos os atos de nossas vidas. Com a participação da singularidade, qualquer ato adere ao ego, tornando-se autoral. Esta é a via da criação estética ou artística que contesta o narcisismo, no qual o ego se compara e fortalece ao cumprir o mandamento do ideal. No âmbito da estética ou da arte, ao contrário, o ego se cria na medida da singularidade, sendo esta capaz de conviver com todas as outras, posto que não disputa a posse de nenhum ideal social comum. Ao contrapelo do isolamento narcísico, a criação nos aproxima ao propulsionar os encontros afetivos, sendo que, por este motivo, a arte é o instrumento da verdadeira revolução dos costumes.
No espaço da sexualidade, as linhas de força possuem a mesma estrutura. Os gêneros, no seu binarismo, instituem o masculino como identidade primordial, reservando ao feminino o lugar de particular que, como toda a exceção, confirma a regra. O mundo é masculino e o feminino busca, à força de reação, fixar a sua identidade. Ao fazê-lo, no entanto, dilata a identidade masculina, da qual tenta se discriminar, recrudescendo-se o confronto. A alternativa é a da singularidade. Nela, teremos de conviver com a ausência de gêneros pré-estabelecidos, sem identidades pret a porter nas quais tentamos, ainda que com altos custos, nos reconhecer. A sexualidade será singular ou não será. Eis a máxima da teoria queer. Não há qualquer origem biológica da sexualidade ou objeto preferido do desejo sexual que determine o gênero, senão as imperativas estratégias do comando dos poderes vigentes. Sem subterfúgios, nem estratagemas, será preciso criar-se enquanto sexualidade.
É assim que pensa Judith. E sua proposta é, de fato, perigosa para aqueles que desejam a manutenção do status quo, para os conservadores que reagem, isto é, repetem o mesmo, ao invés de resistir, sendo resistência, como quer Foucault, equivalente à criação do inédito. Estes reacionários não leram o que a filósofa escreveu. Se leram, nada entenderam. Mas, não se iludam, eles sabem o que fazem. O perigo do pensamento de Butler está na presença de seu corpo. Judith é perigosa por que seu pensamento corporal é feito de gritos e sussurros, apelos sedutores que convidam para o encontro. Pensamento de quem pensa diferente de si mesma, sendo esta a diferença total que convoca ao exibir, sem pudor, os confins de si onde está sendo gestado.
Eduardo Rozenthal: Psicanalista. Membro Titular da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica. Doutor em Saúde Coletiva pela UERJ. Professor do Curso de Especialização em Psicanálise da USU. Professor Visitante na Universidade da Califórnia em Berkeley. Co-organizador do livro Psicanálise: uma prática teorizada, 2007. Autor do livro O ser no gerúndio: corpo e sensibilidade na psicanálise, 2014, ambos pela Companhia de Freud.
Conclusão
Aqui abaixo você vai contar com textos da própria Judith Butler para formar sua opinião sobre o pensamento da filósofa. São trechos de "Problemas de gênero - Feminismo e subversão da identidade" (Editora Civilização Brasileira, tradução de Renato Aguiar), publicado pela primeira vez em 1990, sua obra mais conhecida.
Identidade, sexo e a metafísica da substância
(a partir da pág. 42 da edição brasileira)
O que pode então significar “identidade”, e o que alicerça a pressuposição de que as identidades são idênticas a si mesmas, persistentes ao longo do tempo, unificadas e internamente coerentes? Mais importante, como essas suposições impregnam o discurso sobre as “identidades de gênero”? Seria errado supor que a discussão sobre a “identidade” deva ser anterior à discussão sobre a identidade de gênero, pela simples razão de que as “pessoas” só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade do gênero. Convencionalmente, a discussão sociológica tem buscado compreender a noção de pessoa como uma agência que reivindica prioridade ontológica aos vários papéis e funções pelos quais assume viabilidade e significado sociais. No próprio discurso filosófico, a noção de “pessoa” tem sido analiticamente elaborada com base na suposição de que, qualquer que seja o contexto social em que “está”, a pessoa permanece de algum modo externamente relacionada à estrutura definidora da condição de pessoa, seja esta a consciência, a capacidade de linguagem ou a deliberação moral. Embora não esteja aqui em exame essa literatura, uma das premissas dessas indagações é o foco de exploração e inversão críticas. Enquanto a indagação filosófica quase sempre centra a questão do que constitui a “identidade pessoal” nas características internas da pessoa, naquilo que estabeleceria sua continuidade ou autoidentidade no decorrer do tempo, a questão aqui seria: em que medida as práticas reguladoras de formação e divisão do gênero constituem a identidade, a coerência interna do sujeito, e, a rigor, o status autoidêntico da pessoa? Em que medida é a “identidade” um ideal normativo, ao invés de uma característica descritiva da experiência? E como as práticas reguladoras que governam o gênero também governam as noções culturalmente inteligíveis de identidade? Em outras palavras, a “coerência” e a “continuidade” da “pessoa” não são características lógicas ou analíticas da condição de pessoa, mas, ao contrário, normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas. Em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas.
Gêneros “inteligíveis” são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Em outras palavras, os espectros de descontinuidade e incoerência, eles próprios só concebíveis em relação a normas existentes de continuidade e coerência, são constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual.
A noção de que pode haver uma “verdade” do sexo, como Foucault a denomina ironicamente, é produzida precisamente pelas práticas reguladoras que geram identidades coerentes por via de uma matriz de normas de gênero coerentes. A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de “macho” e de “fêmea”. A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir” — isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero”.
Nesse contexto, “decorrer” seria uma relação política de direito instituído pelas leis culturais que estabelecem e regulam a forma e o significado da sexualidade. Ora, do ponto de vista desse campo, certos tipos de “identidade de gênero” parecem ser meras falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas, precisamente por não se conformarem às normas da inteligibilidade cultural. Entretanto, sua persistência e proliferação criam oportunidades críticas de expor os limites e os objetivos reguladores desse campo de inteligibilidade e, consequentemente, de disseminar, nos próprios termos dessa matriz de inteligibilidade, matrizes rivais e subversivas de desordem do gênero.
Contudo, antes de considerar essas práticas perturbadoras, parece crucial compreender a “matriz de inteligibilidade”. É ela singular? De que se compõe? Que aliança peculiar existe, presumivelmente, entre um sistema de heterossexualidade compulsória e as categorias discursivas que estabelecem os conceitos de identidade do sexo? Se a “identidade” é um efeito de práticas discursivas, em que medida a identidade de gênero — entendida como uma relação entre sexo, gênero, prática sexual e desejo — seria o efeito de uma prática reguladora que se pode identificar como heterossexualidade compulsória? Tal explicação não nos faria retornar a mais uma estrutura totalizante em que a heterossexualidade compulsória tomaria meramente o lugar do falocentrismo como causa monolítica da opressão de gênero?
No espectro da teoria feminista e pós-estruturalista francesa, compreende-se que regimes muitos diferentes de poder produzem os conceitos de identidade sexual. Consideremos a divergência que existe entre posições como a de Irigaray, que afirma só haver um sexo, o masculino, que elabora a si mesmo na e através da produção do “Outro”, e posições como a de Foucault, por exemplo, que presumem que a categoria do sexo, tanto masculino como feminino, é produto de uma economia reguladora difusa da sexualidade. Consideremos igualmente o argumento de Wittig de que a categoria do sexo é, sob as condições de heterossexualidade compulsória, sempre feminina (mantendo-se o masculino não marcado e, consequentemente, sinônimo do universal). Ainda que paradoxalmente, Wittig concorda com Foucault ao afirmar que a própria categoria do sexo desapareceria e a rigor se dissiparia no caso de uma ruptura e deslocamento da hegemonia heterossexual. Os vários modelos explicativos oferecidos aqui sugerem os caminhos muito diferentes pelos quais a categoria do sexo é compreendida, dependendo de como se articula o campo do poder. É possível preservar a complexidade desses campos de poder e pensar suas capacidades produtivas ao mesmo tempo? Por um lado, a teoria da diferença sexual de Irigaray sugere que as mulheres jamais poderão ser compreendidas segundo o modelo do “sujeito” nos sistemas representacionais convencionais da cultura ocidental, exatamente porque constituem o fetiche da representação e, por conseguinte, o irrepresentável como tal. Segundo essa ontologia das substâncias, as mulheres nunca podem “ser”, precisamente porque constituem a relação da diferença, excluído pelo qual esse domínio se distingue. As mulheres também são uma “diferença” que não pode ser compreendida como simples negação ou como o “Outro” do sujeito desde sempre masculino. Como discutido anteriormente, elas não são nem o sujeito nem o seu Outro, mas uma diferença da economia da oposição binária, um ardil, ela mesma, para a elaboração monológica do masculino.
A noção de que o sexo aparece na linguagem hegemônica como substância, ou, falando metafisicamente, como ser idêntico a si mesmo, é central para cada uma dessas concepções. Essa aparência se realiza mediante um truque performativo da linguagem e/ou do discurso, que oculta o fato de que “ser” um sexo ou um gênero é fundamentalmente impossível. Para Irigaray, a gramática jamais poderá ser um índice seguro das relações de gênero, precisamente porque sustenta o modelo substancial do gênero como sendo uma relação binária entre dois termos positivos e representáveis. Na opinião de Irigaray, a gramática substantiva do gênero, que supõe homens e mulheres assim como seus atributos de masculino e feminino, é um exemplo de sistema binário a mascarar de fato o discurso unívoco e hegemônico do masculino, o falocentrismo, silenciando o feminino como lugar de uma multiplicidade subversiva. Para Foucault, a gramática substantiva do sexo impõe uma relação binária artificial entre os sexos, bem como uma coerência interna artificial em cada termo desse sistema binário. A regulação binária da sexualidade suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe as hegemonias heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica.
Para Wittig, a restrição binária que pesa sobre o sexo atende aos objetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade compulsória; ela afirma, ocasionalmente, que a derrubada da heterossexualidade compulsória irá inaugurar um verdadeiro humanismo da “pessoa”, livre dos grilhões do sexo. Em outros contextos, ela sugere que a profusão e difusão de uma economia erótica não falocêntrica irá banir as ilusões do sexo, do gênero e da identidade. [...]
Conclusão
Da paródia à política
(a partir da página 245 da edição brasileira)
Comecei pela questão especulativa de saber se a política feminista poderia funcionar sem um “sujeito” na categoria de mulheres. A questão em jogo não é se ainda tem sentido, estratégica ou transicionalmente, fazer referência às mulheres para fazer reivindicações representativas em nome delas. O “nós” feminista é sempre e somente uma construção fantasística, que tem seus propósitos, mas que nega a complexidade e a indeterminação internas do termo, e só se constitui por meio da exclusão de parte da clientela, que simultaneamente busca representar. Todavia, a situação tênue ou fantasística “nós” não é motivo de desesperança, ou pelo menos não é só motivo de desesperança. A instabilidade radical da categoria põe em questão as restrições fundantes que pesam sobre a teorização política feminista, abrindo outras configurações, não só de gêneros e corpos, mas da própria política.
O raciocínio fundacionista da política da identidade tende a supor que primeiro é preciso haver uma identidade, para que os interesses políticos possam ser elaborados, e, subsequentemente, empreender a ação política. Meu argumento é que não há necessidade de existir um “agente por trás do ato”, mas que o “agente” é diversamente construído no e através do ato. Não se trata de um retorno a uma teoria existencialista do eu constituído por seus atos, pois a teoria existencialista afirma uma estrutura pré-discursiva do eu e de seus atos. É exatamente a construção discursiva variável de cada um deles, no e através do outro, que me interessa aqui.
A questão de situar o “agente” é geralmente associada à viabilidade do “sujeito”, entendendo-se que o “sujeito” tem uma existência estável, anterior ao campo cultural que ele articula. Ou então, se o sujeito é culturalmente construído, mesmo assim ele é dotado de ação, usualmente representada como a capacidade de mediação reflexiva, a qual se preserva intacta, independentemente de sua inserção cultural. Neste modelo, “cultura” e “discurso” enredam o sujeito, mas não o constituem. Assim, esse movimento de restringir e desenredar o sujeito preexistente pareceu necessário para deixar claro um ponto de ação que não é completamente determinado pela cultura e pelo discurso. Todavia, esse tipo de raciocínio presume falsamente (a) que só se pode estabelecer a ação mediante o recurso a um “eu” pré-discursivo, mesmo que esse “eu” se encontre no centro de uma convergência discursiva, e (b) que ser constituído pelo discurso significa ser determinado por ele, com a determinação excluindo a possibilidade de ação.
Mesmo nas teorias que postulam um sujeito altamente restrito ou situado, o sujeito continua a encontrar seu ambiente discursivamente constituído numa estrutura epistemológica de oposição. O sujeito culturalmente enredado negocia suas construções, mesmo quando estas constituem os próprios atributos de sua própria identidade. Em Beauvoir, por exemplo, há um “eu” que constrói seu gênero, que se torna seu gênero, mas esse “eu”, invariavelmente associado a seu gênero, é todavia um ponto de ação nunca plenamente identificável com seu gênero. Este cogito nunca é completamente do mundo cultural que ele negocia, seja qual for a estreiteza da distância ontológica que o separa de seus atributos culturais. As teorias da identidade feminista que elaboram os atributos de cor, sexualidade, etnia, classe e saúde corporal concluem invariavelmente sua lista com um envergonhado “etc.”. Por meio dessa trajetória horizontal de adjetivos, essas posições se esforçam por abranger um sujeito situado, mas invariavelmente não logram ser completas. Contudo, esse fracasso é instrutivo: que impulso político devemos derivar desse exasperado “etc.”, que tão frequentemente ocorre ao final dessas enumerações? Trata-se de um sinal de esgotamento, bem como do próprio processo ilimitável de significação. É o supplément, o excesso que necessariamente acompanha qualquer esforço de postular a identidade de uma vez por todas. Entretanto, esse et cetera ilimitável se oferece como um novo ponto de partida para a teorização política feminista.
Se a identidade se afirma por intermédio de um processo de significação, se é desde sempre significada e se, mesmo assim, continua a significar à medida que circula em vários discursos interligados, a questão da ação não deve ser respondida mediante recurso a um “eu” que preexista à significação. Em outras palavras, as condições que possibilitam a afirmação do “eu” são providas pela estrutura de significação, pelas normas que regulam a invocação legítima ou ilegítima desse pronome, pelas práticas que estabelecem os termos de inteligibilidade pelos quais ele pode circular. A linguagem não é um meio ou instrumento externo em que despejo um eu e onde vislumbro um reflexo desse eu. O modelo hegeliano de autorreconhecimento, que foi apropriado por Marx, Lukacs e uma variedade de discursos libertários contemporâneos, pressupõe uma adequação potencial entre o “eu” que confronta seu mundo, inclusive sua linguagem, como objeto, e o “eu” que descobre a si próprio como objeto nesse mundo. Mas a dicotomia sujeito/objeto, que pertence aqui à tradição da epistemologia ocidental, condiciona a própria problemática da identidade que ela busca resolver.
Que tradição discursiva estabelece o “eu” e seu “Outro” num confronto epistemológico que decide subsequentemente onde e como as questões da cognoscibilidade e da ação devem ser determinadas? Que tipos de ação são impedidos pela postulação de um sujeito epistemológico, justamente porque as regras e práticas que regem a invocação desse sujeito e regulam antecipadamente sua ação são excluídas como lugar de análise e de intervenção crítica? O fato de esse ponto de partida epistemológico não ser em nenhum sentido inevitável é confirmado, de forma ingênua e difundida, pelas operações corriqueiras da linguagem comum — amplamente documentadas pela antropologia —, que veem a dicotomia sujeito/objeto como uma imposição filosófica estranha e contingente, se não violenta. A linguagem de apropriação, da instrumentalidade e do distanciamento que se ajusta à forma epistemológica, também pertence a uma estratégia de dominação que joga o “eu” contra um “Outro”, e, uma vez efetuada a separação, cria um conjunto artificial de questões sobre a possibilidade de conhecer e resgatar esse Outro.
Como parte da herança epistemológica dos discursos políticos contemporâneos da identidade, essa oposição binária é um movimento estratégico num dado conjunto de práticas significantes, que estabelece o “eu” na e através da oposição e que reifica essa oposição como uma necessidade, ocultando o aparato discursivo pelo qual o próprio binário é constituído. A passagem de uma explicação epistemológica da identidade para uma que situa a problemática nas práticas de significação permite uma análise que toma o próprio modo epistemológico como prática significante possível e contingente. Além disso, a questão da ação é reformulada como indagação acerca de como funcionam a significação e a ressignificação. Em outras palavras, o que é significado como identidade não o é num ponto dado do tempo, depois do qual ela simplesmente existe como uma peça inerte da linguagem criadora de entidades. Claramente, as identidades podem parecer substantivos inertes; aliás, os modelos epistemológicos tendem a tomar essa aparência como seu ponto de partida teórico. Contudo, o substantivo “eu” só aparece como tal por meio de uma prática significante que busca ocultar seu próprio funcionamento e naturalizar seus efeitos. Além disso, qualificar-se como uma identidade substantiva é tarefa das mais árduas, pois tais aparências são identidades geradas por regras, que se fiam na invocação sistemática e repetida de regras que condicionam e restringem as práticas culturalmente inteligíveis da identidade. Aliás, compreender a identidade como uma prática, e uma prática significante, é compreender sujeitos culturalmente inteligíveis como efeitos resultantes de um discurso amarrado por regras, e que se insere nos atos disseminados e corriqueiros da vida linguística. Abstratamente considerada, a linguagem se refere a um sistema aberto de sinais, por meio dos quais a inteligibilidade é insistentemente criada e contestada. Como organizações historicamente específicas da linguagem, os discursos se apresentam no plural, coexistindo em contextos temporais e instituindo convergências imprevisíveis e inadvertidas, a partir das quais são geradas modalidades específicas de possibilidades discursivas.
Como processo, a significação abriga em si o que o discurso epistemológico chama de “ação”. As regras que governam a identidade inteligível, i.e., que facultam e restringem a afirmação inteligível de um “eu”, regras que são parcialmente estruturadas em conformidade com matrizes da hierarquia do gênero e da heterossexualidade compulsória, operam por repetição. De fato, quando se diz que o sujeito é constituído, isso quer dizer simplesmente que o sujeito é uma consequência de certos discursos regidos por regras, os quais governam a invocação inteligível da identidade. O sujeito não é determinado pelas regras pelas quais é gerado, porque a significação não é um ato fundador, mas antes um processo regulado de repetição que tanto se oculta quanto impõe suas regras, precisamente por meio da produção de efeitos substancializantes. Em certo sentido, toda significação ocorre na órbita da compulsão à repetição; a “ação”, portanto, deve ser situada na possibilidade de uma variação dessa repetição. Se as regras que governam a significação não só restringem, mas permitem a afirmação de campos alternativos de inteligibilidade cultural, i.e., novas possibilidades de gênero que contestem os códigos rígidos dos binarismos hierárquicos, então é somente no interior das práticas de significação repetitiva que se torna possível a subversão da identidade. A ordem de ser de um dado gênero produz fracassos necessários, uma variedade de configurações incoerentes que, em sua multiplicidade, excedem e desafiam a ordem pela qual foram geradas. Além disso, a própria ordem de ser de um dado gênero ocorre por caminhos discursivos: ser uma boa mãe, ser um objeto heterossexualmente desejável, ser uma trabalhadora competente, em resumo, significar uma multiplicidade de garantias em resposta a uma variedade de demandas diferentes, tudo ao mesmo tempo. A coexistência ou convergência dessas injunções discursivas produz a possibilidade de uma reconfiguração e um reposicionamento complexos; não é um sujeito transcendental que permite a ação em meio a essa convergência. Não há eu que seja anterior à convergência ou que mantenha uma “integridade” anterior à sua entrada nesse campo cultural conflituoso. Há apenas um pegar as ferramentas onde elas estão, sendo esse próprio “pegar” facultado pela ferramenta que ali está.
O que constitui uma repetição subversiva no interior das práticas significantes do gênero? Eu afirmei (o “eu” manifesta a gramática que rege o estilo da conclusão filosófica, mas note-se que é a própria gramática que posiciona e faculta esse “eu”, mesmo quando o “eu” que insiste aqui repete, reposiciona e — como determinarão os críticos — contesta a gramática filosófica através da qual é facultado e restringido) que na distinção sexo/gênero, o sexo figura como “o real” e o “factual”, a base material ou corporal em que o gênero pratica um ato de inscrição cultural. Todavia, o gênero não é escrito no corpo como se inscreve ininteligivelmente na carne dos acusados o torturante instrumento de escrita de Na colônia penal, de Kafka. Não se trata de saber que sentido essa inscrição traz em si, mas sim que aparato cultural organiza esse encontro entre o instrumento e o corpo, que intervenções são possíveis nessa repetição ritualística. O “real” e o “sexualmente factual” são construções fantasísticas — ilusões de substância — de que os corpos são obrigados a se aproximar, mas nunca podem realmente fazê-lo. O que, então, permite a denúncia da brecha entre o fantasístico e o real pela qual o real se admite como fantasístico? Será que isso oferece a possibilidade de uma repetição que não seja inteiramente cerceada pela injunção de reconsolidar as identidades naturalizadas? Assim como as superfícies corporais são impostas como o natural, elas podem tornar-se o lugar de uma performance dissonante e desnaturalizada, que revela o status performativo do próprio natural.
As práticas parodísticas podem servir para reconvocar e reconsolidar a própria distinção entre uma configuração de gênero privilegiada e outra que parece derivada, fantasística e mimética — uma cópia malfeita, por assim dizer. E é certo que a paródia tem sido usada para promover uma política de desesperança que afirma a exclusão aparentemente inevitável dos gêneros marginais do território do natural e do real. Todavia, essa impossibilidade de tornar-se “real” e de encarnar “o natural” é, diria eu, uma falha constitutiva de todas as imposições do gênero, pela razão mesma de que esses lugares ontológicos são fundamentalmente inabitáveis. Consequentemente, há um riso subversivo no efeito de pastiche das práticas parodísticas em que o original, o autêntico e o real são eles próprios constituídos como efeitos. A perda das normas do gênero teria o efeito de fazer proliferar as configurações de gênero, desestabilizar as identidades substantivas e despojar as narrativas naturalizantes da heterossexualidade compulsória de seus protagonistas centrais: os “homens” e “mulheres”. A repetição parodística do gênero denuncia também a ilusão da identidade de gênero como uma profundeza intratável e uma substância interna. Como efeito de uma performatividade sutil e politicamente imposta, o gênero é um “ato”, por assim dizer, que está aberto a cisões, sujeito a paródias de si mesmo, a autocríticas e àquelas exibições hiperbólicas do “natural” que, em seu exagero, revelam seu status fundamentalmente fantasístico.
Tentei sugerir que as categorias de identidade frequentemente presumidas como fundantes na política feminista — isto é, consideradas necessárias para mobilizar o feminismo como política da identidade — trabalham simultaneamente no sentido de limitar e restringir de antemão as próprias possibilidades culturais que o feminismo deveria abrir. As restrições tácitas que produzem o “sexo” culturalmente inteligível têm de ser compreendidas como estruturas políticas generativas, e não como fundações naturalizadas. Paradoxalmente, a reconceituação da identidade como efeito, isto é, como produzida ou gerada, abre possibilidades de “ação” que são insidiosamente excluídas pelas posturas que tomam as categorias da identidade como fundantes e fixas. Pois o fato de uma identidade ser um efeito significa que ela não é nem inevitavelmente determinada nem totalmente artificial e arbitrária. O fato de o status constituído da identidade ser mal interpretado nos termos dessas duas linhas conflitantes sugere as maneiras como o discurso feminista sobre a construção cultural continua preso na armadilha do binarismo desnecessário do livre-arbítrio e do determinismo. Construção não se opõe a ação; a construção é o cenário necessário da ação, os próprios termos em que a ação se articula e se torna culturalmente inteligível. A tarefa crucial do feminismo não é estabelecer um ponto de vista fora das identidades construídas; essa pretensão é obra de um modelo epistemológico que pretende renegar sua própria inserção da cultura, promovendo-se, consequentemente, como um tema global, posição esta que instaura precisamente as estratégias imperialistas que o feminismo tem a obrigação de criticar. Sua tarefa crucial é, antes, a de situar as estratégias de repetição subversiva facultadas por essas construções, afirmar as possibilidades locais de intervenção pela participação precisamente nas práticas de repetição que constituem a identidade e, portanto, apresentar a possibilidade imanente de contestá-las.
Esta investigação teórica procurou situar o político nas próprias práticas significantes que criam, regulam e desregulam a identidade. Este esforço, todavia, só pode realizar-se mediante a introdução de um conjunto de perguntas que ampliam a própria noção do político. Como romper os fundamentos que encobrem as configurações culturais de gênero alternativas? Como desestabilizar e apresentar em sua dimensão fantasística as “premissas” da política da identidade?
Essa tarefa exigiu uma genealogia crítica da naturalização do sexo e dos corpos em geral. Demandou também uma reconsideração da imagem do corpo como matéria muda, anterior à cultura, à espera de significação, imagem esta que se reitera mutuamente com aquela do feminino, à espera da inscrição-como-corte do significante masculino para poder entrar na linguagem e na cultura. A partir de uma análise política da heterossexualidade compulsória, tornou-se necessário questionar a construção do sexo como binário, como um binário hierárquico. Do ponto de vista do gênero como imposto, surgiram questões sobre a fixidez da identidade de gênero como uma profundeza interior pretensamente externalizada sob várias formas de “expressão”. Mostrou-se que a construção implícita da edificação heterossexual primária do desejo persiste, mesmo quando aparece sob a forma da bissexualidade primária. Mostrou-se também que as estratégias de exclusão e hierarquia persistem na formulação da distinção sexo/gênero e em seu recurso ao “sexo” como pré-discursivo, bem como na prioridade da sexualidade sobre a cultura e, em particular, na construção cultural da sexualidade como pré-discursiva. Finalmente, o modelo epistemológico que presume a prioridade do agente em relação ao ato cria um sujeito global e globalizante que renega sua própria localização e as condições de intervenções locais.
Se tomados como base da teoria ou da política feministas, esses “efeitos” da hierarquia do gênero e da heterossexualidade compulsória não só são mal descritos como fundações, mas as práticas significantes que permitem essa descrição metaléptica equivocada ficam fora do alcance da crítica feminista das relações de gênero. Entrar nas práticas repetitivas desse terreno de significação não é uma escolha, pois o “eu” que poderia entrar está dentro delas desde sempre: não há possibilidade de ação ou realidade fora das práticas discursivas que dão a esses termos a inteligibilidade que eles têm. A tarefa não consiste em repetir ou não, mas em como repetir ou, a rigor, repetir e, por meio de uma proliferação radical do gênero, afastar as normas do gênero que facultam a própria repetição. Não há ontologia do gênero sobre a qual possamos construir uma política, pois as ontologias do gênero sempre operam no interior de contextos políticos estabelecidos como injunções normativas, determinando o que se qualifica como sexo inteligível, invocando e consolidando as restrições reprodutoras que pesam sobre a sexualidade, definindo as exigências prescritivas por meio das quais os corpos sexuados e com marcas de gênero adquirem inteligibilidade cultural. A ontologia é, assim, não uma fundação, mas uma injunção normativa que funciona insidiosamente, instalando-se no discurso político como sua base necessária.
A desconstrução da identidade não é a desconstrução da política; ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada. Esse tipo de crítica põe em questão a estrutura fundante em que o feminismo, como política da identidade, vem se articulando. O paradoxo interno desse fundacionismo é que ele presume, fixa e restringe os próprios “sujeitos” que espera representar e libertar. A tarefa aqui não é celebrar toda e qualquer nova possibilidade como possibilidade, mas redescrever as possibilidades que já existem, mas que existem dentro de domínios culturais apontados como culturalmente ininteligíveis e impossíveis. Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas dos supostos interesses de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova configuração política surgiria certamente das ruínas da antiga. As configurações culturais do sexo e do gênero poderiam então proliferar ou, melhor dizendo, sua proliferação atual poderia então tornar-se articulável nos discursos que criam a vida cultural inteligível, confundindo o próprio binarismo do sexo e denunciando sua não inaturalidade fundamental. Que outras estratégias locais para combater o “inatural” podem levar à desnaturalização do gênero como tal?
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