Adams Carvalho/Folhapress
O que primeiro me
impressiona, mexendo nas fotos, é quão pouco o sítio mudou ao longo de um
século. A fachada da casa em Correas, Petrópolis, é idêntica desde 1914.
Chegamos à mesma porta de madeira pelos mesmos seis degraus de tijolos
aparentes, cimentados ali no início da Primeira Guerra.
A estátua, apesar de
ter perdido uns dedos para a chuva ácida e outras intempéries, segue no meio do
gramado, circundado pelo caminho de saibro branco. Os bancos do jardim, com os
caramanchões de madeira por onde se embrenham os jasmins, estão intactos. Logo
em seguida, o que me impressiona é nenhuma das pessoas que povoam os retratos
existir mais.
Vejo meu avô com três
ou quatro anos, sorrindo de dentro de um carrinho de latão, e não consigo
evitar um assombro algo infantil, um susto de índio diante da pólvora. É uma
situação tão prosaica, tão corriqueira e real que fecho os olhos e posso ouvir
o ruído das rodas sobre o saibro branco –é o carro do Miguel, meu tio, chegando
de São Paulo para ajudar na arrumação.
A cena, capturada em
1932, surge entre outras do fundo de uma gaveta, enquanto esvaziamos o
escritório –deixaremos o quarto por último. Meu avô sorri, exultante. O céu é
tão limpo quanto o de hoje, céu de inverno no campo. Como hoje, ao fundo, as
pedras da Alcobaça e da Alcobacinha refletem o sol. Os cheiros do jardim deviam
ser iguais, também: a grama molhada, o jasmim do caramanchão, a fumaça do fogão
à lenha saindo pela chaminé.
O cenário permaneceu
idêntico, mas meu avô, evidentemente, não –e me parece injusto que eu conheça
todo o futuro que o garoto, preso para sempre naquele carrinho, ignora: vai se
casar, se formar engenheiro, projetar locomotivas, ter sete filhos e dez netos
que, dali a oitenta e cinco anos, esvaziarão suas gavetas e o bisbilhotarão
brincando no jardim.
Numa outra foto,
anterior à do meu avô, é Carnaval. Década de 20. Minha avó, que ainda nem era
nascida, tenta identificar os presentes. A jovem odalisca é a tia Elvira. O
pirata com a espada na boca: será o tio Mauro? A morena de olhos claros,
vestido rodado, ninguém sabe quem é.
Quase escrevo que ela
tem "o olhar triste das moças de antigamente", mas sou resgatado do
anacronismo pela foto seguinte: quatro mulheres riem enquanto dois homens de
terno branco, taças em punho, beijam as bochechas da estátua. Minha avó
reconhece os homens. O da esquerda era um tal Humboldt, dono do sítio vizinho,
fez fortuna com café, depois sumiu no meio de uma viagem de navio à Europa.
Parece que saltou no mar. O outro homem era primo da tia Iaiá, fazia todos
rirem imitando os parentes, contraiu tuberculose, curou-se, ninguém lembra que
fim levou.
Aos poucos,
esvaziando as gavetas, vai se formando entre mim e aquelas pessoas uma
insuspeita cumplicidade. Não conheço ninguém ali, exceto meu avô. Estamos
separados por quase um século, mas dividimos o mesmo espaço: piso no chão em
que eles pisavam, sinto os cheiros que sentiam, vejo o sol refletido na
Alcobaça e na Alcobacinha, sob o mesmo céu.
Volto pra morena de
olhos claros, esquecida em seu Carnaval de 1920, e sinto uma espécie de déjà vu
ao contrário: súbito, sou eu preso naqueles retratos, nas mãos de um homem que
ainda está para nascer. "Esse de óculos, olhando umas fotografias, alguém
sabe quem é?"
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