domingo, 6 de agosto de 2017

Freud por Sartre - Luis Fernando Verissimo


Quem nos garante que um dia o jovem Hitler e o dr. Freud não esbarraram um no outro numa rua de Viena, um prototípico intelectual da raça que, segundo Hitler, inventou a consciência, e o homem que tentaria eliminá-las, a raça e a consciência, da História? Épocas inteiras poderiam ser resumidas em encontros imaginários como este, entre contemporâneos que só não se cruzaram por acaso. Goethe e Napoleão num dramático promontório contra um pano de fundo pintado por Goya, com trilha sonora de Beethoven, por exemplo, teriam todo o século 19 a seus pés e o definiriam em poucas palavras.
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Um desses encontros definitivos se deu quando Jean-Paul Sartre foi contratado para escrever um script sobre Freud para John Huston dirigir. O script chegou a ser publicado, mas o filme de Huston sobre Freud não aproveitou o roteiro de Sartre, que, dizem, daria um filme de sete horas. E quando Huston pediu a Sartre para encurtá-lo, o resultado foi um script ainda mais longo.
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Em outubro de 1959, Sartre passou várias semanas na casa de Huston na Irlanda, para os dois se acertarem. Melhor do que um filme de John Huston sobre Freud escrito por Sartre seria um filme sobre essas semanas outonais, presumivelmente num velho e úmido castelo cercado de brumas, entre ancestrais perplexos e produtores ansiosos. Do seu quarto num andar superior do castelo, Sartre ouviria o ruído de correntes sendo arrastadas no meio da noite e, mais tarde, descobriria que era apenas o velho Huston exercitando os músculos que lhe restavam.
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No livro Lettres au Castor, uma coleção de cartas de Sartre a Simone de Beauvoir (que ele chamava de “Castor”), há uma descrição desses dias. Sartre escreve que a Irlanda dá a impressão de ser um país agonizante, cujos habitantes emigraram todos para a América, deixando para trás uma paisagem “pré-lunar”. E que é justamente assim a paisagem interior de “mon boss, le grand Huston”, como o descreve Sartre. Ruínas, casas abandonadas, desolação, mil vestígios de presença humana, mas da qual o homem emigrou. “Não sei para onde”, diz Sartre. “Huston não é exatamente triste, é vazio, salvo nos momentos de vaidade infantil, quando veste seu smoking vermelho.”
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Sartre conta que é impossível reter a atenção de Huston por cinco minutos. Um dia, falando sobre Freud, Huston diz a Sartre que no seu inconsciente não existe nada. Nem mesmo velhos desejos inalcançados. “Une grosse lacune.” Já Huston diria, nas suas reminiscências, que nunca tinha conhecido alguém mais teimoso e categórico do que Sartre. “É impossível conversar com ele. É impossível interrompê-lo. Uma vez, exausto, eu saí da sala por instantes. O som da voz dele me acompanhou, e quando voltei ele não tinha se dado conta da minha ausência.”
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No encontro de Sartre com Huston há o choque da energia um pouco gasta, com algo de empulhação, do novo mundo e a prolixidade autossuficiente do velho. São duas testemunhas do seu século que não se entenderam, o que por si só já prova o desconcerto do mundo.


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