quinta-feira, 1 de junho de 2017

Reflexões sobre a morte

Fernando Gonsales







A morte com aviso prévio – Ruy Castro

Em 1826, aos 83 anos, o ex-presidente dos EUA Thomas Jefferson estava morrendo de diarreia. Mas queria chegar ao dia 4 de julho, 50º aniversário da Declaração da Independência, assinada por ele. Um dia, acordou e perguntou: "Hoje é 4 de julho?". Ao ouvir que sim, suspirou e morreu. Já o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen estava em coma em sua casa, em 1896, cercado pelos amigos. A enfermeira examinou-o e disse que ele parecia melhor. Ibsen protestou "Ao contrário!". E morreu no ato. E Mark Twain, autor de "Huckleberry Finn", nascido sob a passagem do cometa Halley em 1835, escreveu que só morreria quando o cometa passasse de novo. O Halley voltou no dia 10 de janeiro de 1910. Onze dias depois, Twain morreu.

Em 1959, aos 72 anos, Gilberto Amado, escritor e diplomata, chegou da rua vendendo saúde e pediu à funcionária: "Faça-me o melhor chá da sua vida, porque será o meu último". Ela o serviu, ele adorou e foi cochilar. Horas depois, viu-se que fora mesmo o seu último chá.

Gilberto pode ter morrido de prazer. Mas, nesta categoria, há possibilidades ainda melhores. O lendário jornalista Alcindo Guanabara, em 1918, e o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, em 1964, ambos casados, morreram na cama com suas namoradas. Imagine o que devia ser, na época, ter um homem famoso, casado e morto na sua cama.

Em 1959, Dolores Duran chegou de manhãzinha em casa, vinda do Little Club, no Beco das Garrafas, onde cantava, e disse à empregada: "Que sono! Vou dormir até morrer!". Dito e feito. Tinha 29 anos. Já o cronista e compositor Antonio Maria foi mais prudente. Ao se recolher, deixou um bilhete para o colega de apartamento: "Se me encontrar dormindo, deixe. Morto acorde-me".

Mas Maria só morreu muito depois, em 1964, aos 43, na rua, de um infarto. Melhor assim, porque teve tempo para compor "Madrugada 3 e 5", "Canção da Volta" e "Manhã de Carnaval".

A Visão da Morte - Gustavo Doré (1832-1883)



Jean-Michel Basquiat, Cavalgando com a Morte, 1988


Paris 1831. Alfred Rethhel.


Paul Delvaux, Esqueletos no escritório,  1944


Uma  Fábula Chatinha  - Caio Fernando Abreu


Sentado à beira do caminho, o homem cansado ficou quieto, espiando a vida que passava.
Era uma vez um homem cansado que ia indo por um caminho. Tinha passado do meio-dia, a tarde estava ficando muito quente. No ar azul e claro não soprava nenhum vento, O homem procurou a sombra de uma árvore, sentou e ficou ali, quieto.
Até que passou um surfista. Ia de moto, sem camisa, a bermuda colorida, a prancha amarrada na garupa da moto. Abanou para o homem sentado, mas ele não se mexeu.
“Coitado” — pensou o homem. — “Vai indo assim todo animado. Parece que não sabe que vai morrer um dia.”
Remexeu a areia com um pedacinho de pau, mas sem prestar atenção. Então passou uma velhinha que parecia saída de um livro de histórias infantis. Usava um vestido escuro, comprido, e carregava no ombro uma dessas latas de metal, cheia de leite. Caminhava muito depressa.
“Coitada” — pensou o homem. — “Velha desse jeito, pra que tanta pressa? A morte vai chegar logo — e aí?”
Acendeu um cigarro, ficou soltando anéis de fumaça contra o céu cada vez mais azul. Aí passaram duas moças de braço dado. Parecia que recém tinham tomado banho, tão fresquinhas estavam. Os cabelos ainda molhados brilhavam ao sol. Cochichavam e riam muito, olhando o homem sentado, que nem olhava para elas.
“Coitadas” — o homem pensou. — “Tão assanhadinhas. Ah, se elas soubessem que a morte existe e pode chegar a qualquer momento...”
Ficou um rastro de perfume no ar, mas ele nem respirou mais fundo nem nada. De repente um passarinho começou a cantar, no galho bem acima dele. Ouviu um pouco, depois cuspiu de lado.
“Coitado” — o homem pensou. — “Esse idiotinha fica cantando à toa, de repente vem um moleque, joga uma pedra e pronto, acabou.”
Estendeu as pernas, mas logo as recolheu assustado. De longe, vinha um barulho forte como o de um exército em marcha. O homem fixou bem os olhos na curva da estrada. Até que apontou um elefante lá longe. Depois vieram tigres, macacos, camelos, mágicos, equilibristas: era um circo passando. Os palhaços fizeram micagens especiais para ele, mas o homem não deu atenção. A bailarina, equilibrada num pé só sobre o pônei branco, jogou uma rosa vermelha de tule a seus pés, mas ele não apanhou.
“Coitados” — pensou o homem. — “Quanta ilusão. Um dia o circo pega fogo, a morte chega e de que serviu essa alegria toda?”
Com a ponta do pé, empurrou para longe a rosa vermelha. Nesse momento, ia passando um casal de namorados. O rapaz pegou a rosa, sacudiu para afastar a poeira, depois colocou-a nos cabelos da moça. Ela sorriu, e agradeceu com um beijo. Ele respondeu com outro, ela com outro — e assim foram indo, aos beijos, até sumirem.
“Coitados” — pensou o homem. — “Amor, amor: não tem besteira maior. Casam, têm filhos, ficam velhos, doentes. Um dia morrem e pronto.”
A tarde quase já tinha virado noite, quando um vulto encapuzado veio se aproximando. Ele precisou apertar os olhos para ver melhor. Mesmo assim, não via direito a cara do vulto que se aproximava cada vez mais, até parar bem na frente dele.
— Quem é você? — o homem perguntou. A figura afastou o capuz, mostrou os dentes arreganhados e disse:
— Sou a Morte. Posso sentar ao seu lado?
O homem deu um pulo.
— Não — ele disse. — Já está ficando tarde e eu ainda tenho muito o que fazer.
Virou as costas e saiu correndo, sem olhar para trás.






Fazendo a barba - Luiz Vilela


O barbeiro acabou de ajeitar-lhe a toalha ao redor do pescoço. Encostou a mão:
— Ele está quente ainda...
— Que hora que foi? — perguntou o rapazinho.
 O barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o barbeiro olhou para ele.
 — Que hora que ele morreu? — o rapazinho tornou a perguntar.
 — De madrugada — disse o barbeiro; — ele morreu de madrugada. Estendeu a mão:
 — O pincel e o creme.
 O rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a mezinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até fazer espuma.
 O rapazinho era sempre rápido no serviço mas àquela hora sua rapidez parecia acompanhada de algum nervosismo: o pincel acabou escapulindo de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado junto à cama. Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais descontrolado ainda.
 — Não foi nada — disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça; — isso acontece...
 O rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco, e então entregou a vasilhinha ao barbeiro, que ainda deu uma mexida.
 Antes de começar o serviço, o barbeiro olhou para o rapaz:
 — Você acharia melhor esperar lá fora? — perguntou, de um modo muito educado.
 — Não, senhor.
 — A morte não é um espetáculo agradável para os jovens — disse. Aliás, para ninguém...
 Começou a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava cerrada.
 Através da porta fechada vinha um murmúrio abafado de vozes rezando um terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava pela janela aberta do quarto.
 O barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a navalha e o afiador na mão: entregou-os ao barbeiro e pôs na mesa a vasilhinha com o pincel.
 O barbeiro afiava a navalha. No salão, era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres de música clássica, que ele ia assobiando. Ali, no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento: alguém poderia quase deduzir que ele, em sua cabeça, assobiava uma marcha fúnebre.
 — É tão esquisito — disse o rapazinho.
 — Esquisito? — o barbeiro parou de afiar.
 — A gente fazer a barba dele...
 O barbeiro olhou para o morto:
 — O que não é esquisito? — disse. — Ele, nós, a morte, a vida, o que não é esquisito?
 Começou a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda, e com a direita ia raspando.
 — Deus me ajude a morrer com a barba feita — disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. — Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. E tão esquisito...
 O barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o rosto do morto — mas não tinha nada a ver com a observação do rapaz; estava apenas olhando como ia o seu trabalho.
 — Será que ele está vendo a gente de algum lugar? — perguntou o rapazinho.
 Olhou para o alto — o teto ainda de luz acesa —, como se a alma do morto estivesse por ali, observando-os; não viu nada, mas sentia como se a alma estivesse por ali.
 A navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a barba, ele agora parecia mais um morto.
 — Por que a gente morre? — perguntou. — Por que a gente tem de morrer?
 O barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha e fechou-a, deixando-a na beirada da cama.
 — Me dá a outra toalha — pediu; — e molhe o paninho.
 O rapaz molhou o paninho na jarra; apertou-o para escorrer, e então entregou ao barbeiro, junto com a toalha.
 O barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto. Com a ponta do pano, tirou um pouco de espuma que tinha entrado no ouvido.
 — Por que será que a gente não acostuma com a morte? — perguntou o rapazinho. — A gente não tem de morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma?
 O barbeiro fixou-o um segundo:
 — É — disse, e se voltou para o morto. Começou a fazer o bigode.
 — Não é esquisito? — perguntou o rapazinho. — Eu não entendo.
 — Há muita coisa que a gente não entende — disse o barbeiro.
 Estendeu a mão:
 — A tesourinha.
 Na casa, o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na rua, caminhando no ar fresco da manhã.
 — O pente — disse o barbeiro. — Pode ir guardando as coisas.
 Quando acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o rosto do morto.
 — A tesourinha de novo — pediu.
 O rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha.
 O barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode. Os dois ficaram olhando.
 — A morte é uma coisa muito estranha — disse o barbeiro.
 Lá fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola, carros passando.
 Os dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um boteco, o barbeiro parou:
 — Vamos tomar uma pinguinha?
 O rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, e não sabia o que responder.
 — Uma pinguinha é bom para retemperar os nervos — disse o barbeiro, olhando-o com um sorriso bondoso.
 — Bem... — disse o rapaz.
 O barbeiro pôs a mão em seu ombro, e os dois entraram no boteco.





Pater

Gus Morais - Bytes de Memória

Esquisitice - Luis Fernando Verissimo


Adroaldo acorda num sobressalto. Onde está? Por que está todo mundo ali? Que foi que aconteceu? Sua mulher, Helena, não lhe dá atenção. Está lendo o que parece ser um script. Adroaldo, ainda zonzo, examina o local em que estão. Parece um estúdio. E sua família está toda lá. Os filhos, os netos, a filha adolescente Lilica e o namorado Beto. Edineide, a empregada, e a família da Edineide
Algumas pessoas ele não reconhece. Outras frequentam sua casa. Meu Deus, a Marialva também está ali! Sua amante, Marialva, e o filho adolescente dos dois, o Maurinho, de cuja existência a Helena nem desconfia! Mas a Helena e a Marialva estão lado a lado. Desde quando se conhecem? O que está acontecendo? Com o choque de ver a mulher e a amante juntas, Adroaldo termina de acordar.
*
Helena e Marialva e os outros param de falar quando entra no local um homem que Adroaldo nunca viu antes. Um homem de cara amarrada. Não dá nem bom dia. Tem um papel na mão, que abana sobre a cabeça para todos verem.
– Os últimos números – diz o homem. – Caímos mais dois pontos.
Há um murmúrio de insatisfação na sala. O homem mostra outros papéis.
– Fizemos uma pesquisa para saber o que o público está pensando. Do que gosta e do que não gosta. O resultado está aqui.
Adroaldo cochicha no ouvido de Helena:
– O que é isso? Quem é esse cara?
Helena diz:
– Para, Veloso.
“Veloso”? Adroaldo não entende. Por que sua mulher o chamou de “Veloso”?
*
– Vão haver mudanças, gente – anuncia o homem. – Radicais. Para começar, o público não está gostando muito das cenas de sexo da Lilica com o Beto.
Adroaldo quase dá um pulo. Sexo? A Lilica com o Beto? Quando? Onde?
O homem continua:
– Vamos dar uma reforçada no núcleo pobre. O público simpatizou com a Edineide. Zé, arranja uma complicação da Edineide com a Helena. Uma acusação falsa, qualquer coisa assim, pra Edineide ser demitida e depois se vingar.
– Certo – diz o Zé, um dos presentes que Adroaldo nunca viu antes. – Ela pode se juntar com a Marialva para tramar contra a Helena. As duas podem descobrir que a Helena tem uma ligação homossexual com a Gildinha.
*
Adroaldo não se contém. A Lilica fazendo sexo com o Beto debaixo do seu nariz. A empregada de tantos anos sendo despedida sem que ele seja consultado. E aquela sugestão que sua mulher é lésbica! Adroaldo explode:
– Espera aí um pouquinho!
Mas o homem o detém com um gesto.
– Peralá, Veloso. Eu ainda não terminei. Depois vocês podem se manifestar. Zé, não acho uma boa a Helena com a Gildinha. Já temos o Maurinho gay, o público pode reagir a muito homossexualismo.
Adroaldo atônito. Por que “Veloso”? Que história é essa? E o Maurinho, gay?!
O homem agora está apontando para Adroaldo.
– Veloso, o seu personagem Adroaldo não está funcionando. O público não está gostando. Acho que vamos ter que eliminá-lo.
– O quê?
– E tem mais. Você anda atrapalhando as gravações. Com esses seus lapsos de memória, essa sua esquisitice... Zé, bola uma boa morte para o Adroaldo.
– Ataque cardíaco, nos braços da Marialva – diz Zé, em meio a gargalhadas,
Adroaldo não ri. Adroaldo está de olhos arregalados. O que está acontecendo? Que história é essa? Que história é essa?!


Os bolsos do morto – Luis Fernando Verissimo


O morto não é exatamente um amigo. Mais um conhecido, mas daqueles que você não pode deixar de ir ao velório. E lá está ele, estendido dentro do caixão forrado de cetim, de terno azul-marinho e gravata grená, esperando para ser enterrado.
Se fosse um amigo você ficaria em silêncio, compungido, lembrando o morto em vida e lamentando sua perda. Como é apenas um conhecido, você comenta com o homem ao seu lado – que também não parece ser íntimo do morto:
– Poderiam ter escolhido outra gravata...
– É. Essa está brava.
– Já pensou ele chegando lá com essa gravata?
– “Lá” onde?
– Não sei. Onde a gente vai depois de morto. Onde vai a nossa alma.
– Eu acho que a alma não vai de gravata.
– Será que não? E de fatiota?
– Também não. – Bom. Pelo menos esse vexame ele não vai passar.
– Você é da família? – Não. Apenas um conhecido.
Você examina o morto. Engraçado: ele vai partir para a viagem mais importante, e mais distante, da sua vida, mas não precisa carregar nada. Identidade, passaporte, nada. Nem dinheiro, o que dirá cheques de viagem ou cartões de crédito. Nem carteira!

Você diz para o outro:
– A coisa mais triste de um defunto são os bolsos.
O outro estranha. – Como assim?
– Os bolsos existem para ele carregar coisas. Coisas importantes, que definem a sua vida. CPF, licença para dirigir, bloco de notas, caneta, talão de cheques, remédio pra pressão...
– Pepsamar.
– Pepsamar, cartão perfurado da sena, recortes de artigos sobre a situação econômica, fio dental... Isso sem falar em coisas com importância apenas sentimental. Por exemplo: um desenho rabiscado por uma possível neta que parece, vagamente, um gato, e que ele achou genial e guardou. Entende?
– Sei...
– E aí está ele. Com os bolsos vazios. Despido da vida e de tudo que levava nos seus bolsos, e que o definia. O homem é o homem e o que ele leva nos bolsos. Poderiam ter deixado, sei lá, pelo menos um chaveiro.
– Você acha?
– Claro. As chaves da casa. As chaves do carro. Qualquer coisa pessoal, que pelo menos fizesse barulho num bolso da fatiota, pô!
Você se dá conta de que está gritando. As pessoas se viram para reprová-lo. “Mais respeito”, dizem as caras viradas. Você faz um gesto, pedindo perdão. Sou apenas um conhecido, desculpem. Mas continua, falando mais baixo:
– A morte é um assaltante. Nos mata e nos esvazia os bolsos.
– Sem piedade. – Nenhuma.





Don Juan e a Morte  - Luis Fernando Verissimo

 Quando a mulher revelou que era a Morte e que viera buscá-lo, Don Juan não pulou da cama nem tentou fugir. Apenas sorriu e disse:

— Eu deveria ter desconfiado.
— Por quê? — perguntou a Morte.
— Porque nenhuma mulher tão linda se entregaria a mim tão facilmente, se não fosse uma armadilha.
— Mas você não é um sedutor famoso? Um homem irresistível?
— Sim, mas na minha experiência, quanto mais linda a mulher, mais difícil a sedução. E com você não precisei usar nenhum dos meus truques. Nem meu olhar de desatar espartilhos, nem os versos que orvalham o portal do amor antes mesmo do meu primeiro toque... Você é a mulher mais bonita que já conheci, mas bastou dizer “vem” e você veio. Eu deveria ter desconfiado.
— Eu talvez tenha me precipitado, ao ceder tão facilmente. Gostaria de ouvir seus versos, que também são famosos. Se eu tivesse resistido um pouco mais...
— Pois é. Agora é tarde.
— O que você diria da minha beleza, se fosse obrigado a recorrer à poesia para me trazer pra cama?
— Bem. Assim, de improviso... Ainda mais depois de saber da minha morte iminente...
— Tente.
— Eu começaria elogiando o seu porte heráldico. Compararia a brancura da sua pele às primeiras neves, quando os cristais ainda reluzem, e o rego dos seus seios ao estreito de Gibraltar, onde dois continentes portentosos se roçam. Comentaria as estrias roxas do seu cabelo e... e...
— Que foi? Por que parou?
— Acabo de me dar conta. Está explicado por que nos amamos em todas as posições possíveis, inclusive algumas que eu mesmo inventei, sem que eu ouvisse um “ui” da sua boca.
Um mísero “ui”. Você manteve-se fria o tempo todo. Claro! Onde se viu a Morte gozar?
— Desculpe, eu...
— Não se desculpe. Você não vê? Isto redime a minha masculinidade. Pensei que tivesse perdido meu jeito de satisfazer as mulheres, que nunca tinha falhado antes. Mas não era eu. Era você. Você só estava aqui a serviço, não para se divertir.
— Não deixou de ser agradável.
— Obrigado, mas não precisa mentir. Vou morrer feliz, sabendo que não falhei. E o irônico é que passei a vida inteira seduzindo mulheres para adiar a velhice, enganar o tempo e protelar a morte, e ela, a Morte, você, me aparece assim. Na forma da mulher mais bonita que já conheci.
Olhos como lagos fosforescentes, pescoço como a coluna de mármore de Amastar, onde peregrinos encostavam a testa para rejuvenescer; tornozelos como...

— Não quero interromper, mas acho que deveríamos partir.
— Certo, certo. E se a gente desse mais uma, rapidinha, só para eu me lembrar depois? Ouvi dizer que, no céu, o canto coral substitui o sexo e no inferno é só com um cabrito.
— Não é uma boa ideia. Vamos?
— (Suspiro) Vamos.















In The Fall - Steve Cutts

Leito de morte - Gregorio Duvivier


Leito de morte. Seu Olair está moribundo, com sua família em volta.
MARA: Acho que ele tá fazendo passagem.
LAIS: Não, papai! Fica com a gente.
OLAIR: O pai de vocês tá partindo, Lais.
PEDRO: Ainda não, pai!
OLAIR: Chegou a minha hora. Só preciso revelar uma coisa. Eu guardei uma surpresa pra cada um de vocês. Pedro, você tá aí?
PEDRO: Tô aqui do seu lado, pai.
OLAIR: Eu te deixei um negócio.
PEDRO: O que, pai?
OLAIR: Diabetes. Essa sua vontade de urinar diversas vezes, sede frequente. Você herdou de mim. Isso é diabetes. Tá no começo. Vai piorar. Se cuida.
PEDRO: Tá.
OLAIR: Saulo.
SAULO: Oi, pai.
OLAIR: Eu te deixei uma dívida de 80 mil reais na Caixa Econômica. Quita pra mim?
SAULO: Quito, papai.
OLAIR: Obrigado. Você é o único que tem emprego.
SAULO: Eu sei.
OLAIR: Lais.
LAIS: Fala, pai.
OLAIR: Pra você eu quero deixar um presente.
LAIS: Jura?
OLAIR: Juro. Minha moto.
LAIS (surpresa): Obrigada, pai.
OLAIR: Só tem que quitar. Promete que vai quitar?
LAIS: Prometo.
OLAIR: Eu peguei ela com um agiota. Mas ele é do bem. O nome dele é Gerson. Vai nesse endereço. Ele vai te dizer que é 20 mil reais. Mas é 8. Ele vai te ameaçar. Vai te bater. Daí vocês podem fechar em 10. Tá?
LAIS: Acho que eu não vou querer ficar com a moto, não, pai.
OLAIR: Não precisa ficar. Só precisa quitar, mesmo. Mara.
MARA: Puta merda.
OLAIR: Você tem que abrir a última gaveta.
MARA: Tá.
OLAIR: Da cômoda da sala.
MARA: Tá.
OLAIR: Embaixo da papelada.
MARA: O que é que tem?
OLAIR: Um maço de Derby.
MARA: Pra mim?
OLAIR: Não, só quero que você traga ele aqui pra mim.
MARA: Vou trazer, pai.
OLAIR: Jairo?
JAIRO: Fala, pai.
OLAIR: Você sempre foi o meu preferido. Pra você eu deixei aquilo que eu tenho de mais precioso: minha coleção de VHS. Só tem que me prometer que vai limpar o mofo de cada fita semanalmente. Sabe como é? Tem pegar o cotonete e esfregar o cabeçalho...
Olair morre.
JAIRO: Graças a Deus.
A família respira aliviada.

Cynthia B





PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS  -   ESTELA MAY


Fabiane Langona



Galvão Bertazzi


Gabriel Dantas


Luiza Pannunzio/Folhapress

Sabedoria de velório – Ricardo Araújo Pereira


Um amigo morre e logo alguém nos conforta: "Ele vai estar lá em cima a olhar para ti." Como assim, a olhar para mim? Se for verdade, lamento a minha sorte e a do meu amigo. A minha, porque não voltarei a estar à vontade, sabendo que o Fernando segue todos os meus passos; a dele, porque a minha vida é muito desinteressante.

Que tipo de entretenimento têm eles no céu para que o Fernando prefira passar a eternidade a olhar para mim? Bach não toca? Chaplin não atua? Shakespeare não declama? Por que é que o Fernando deseja ver-me, digamos, a escovar os dentes? Ele não era assim em vida. Nunca manifestou interesse em minha higiene pessoal.
É um estranho modo de consolar alguém. Dizer a uma pessoa que tem um morto a observá-la não costuma ser entendido como uma estratégia pacificadora. Ao contrário, é o começo de vários filmes de terror. Mas, no âmbito de um velório, convencionou-se que essa ideia tranquiliza.
Pessoalmente, nunca me ocorreria dizer a uma pessoa enlutada que o defunto iria passar a espiar todos os seus movimentos. Sempre admirei, aliás, as pessoas que sabem o que se há-de dizer em ocasiões tristes. Muitas vezes, compareço a velórios e, com medo de repetir o que já foi dito por outros, estabeleço com a viúva um diálogo parecido com este:
— Boa noite. Já lhe disseram "Muita força nesta hora"?
— Já, sim.
— E que talvez tenha sido melhor assim, porque ele não sofreu etc.?
— Também.
— E que não somos nada? Já lhe disseram?
— Ainda não.
— Então era o que gostaria de lhe dizer: não somos nada"¦
— É bem verdade. Muito obrigada.
Essa erudição fúnebre é fruto do exame atento de velórios anteriores, e não de uma vocação íntima. Fui registrando o que as pessoas diziam e agora repito, não inventei nada.
Há clássicos que não uso, no entanto. Por exemplo, nunca disse a ninguém: "Lamento imenso". Parece que eu tive alguma responsabilidade no enfarte e estou a pedir desculpa. Também não digo: "Os meus sentimentos". É uma frase sem verbo. Receio que uma viúva apreciadora de linguística pergunte: "Sim, que têm os seus sentimentos? Esqueceu-se do resto da frase?" A minha avó, que sabia comportar-se em velórios, não quereria que eu fizesse feio. E ela está lá em cima a olhar para mim.







Benett








Luiza Pannunzio



Humildade fanfarrona é uma virtude traiçoeira e difícil de manter - Ricardo Araújo Pereira

Ninguém está preocupado com este flagelo, mas há cada vez mais gente que se gaba de ser humilde. Ora, gabar-se de ser humilde é o equivalente a anunciar aos gritos que se é mudo.

A humildade aconselharia alguma modéstia na hora de publicitar qualidades como a humildade. Uma pessoa verdadeiramente humilde talvez devesse, de vez em quando, comportar-se de forma ligeiramente arrogante, para humildemente camuflar o fato de ser humilde. Se alguém tem orgulho na sua humildade, em princípio ficou um pouco menos humilde. Trata-se de uma virtude traiçoeira e difícil de manter. É por isso que eu só cultivo defeitos. É mais seguro.

O lugar mais vezes escolhido para a divulgação de qualidades é o Instagram. E não há momento mais propício para a exibição das nossas virtudes do que a morte  de outra pessoa. Sempre que alguém morre, há usuários do Instagram que não resistem a publicar uma humilde homenagem ao defunto que é, no fim, uma fanfarrona homenagem a si mesmos.

Normalmente, a morte de determinada figura pública causa ao usuário um sofrimento tal que não sabemos se a desgraça maior tocou ao falecido ou ao que teve o azar de ficar vivo a testemunhar o desaparecimento do outro.

São mensagens que, na verdade, dizem o seguinte: "Esta figura muito querida de todos, realmente, morreu. Mas creio que é apenas justo que alguma da comiseração que lhe dedicamos agora me seja dirigida."

Às vezes, quem vai sofrer para o Instagram conhecia o finado, e já vi lamentos deste tipo: "Recordarei para sempre a última conversa que tivemos, em que ele me disse o quanto me admirava." Ou: "Jamais olvidarei o profundo respeito com que ele se dirigia a mim." Ou ainda: "Perdi um fã."

De vez em quando, no momento da morte de uma pessoa conhecida, alguém resolve fazer uma piada e gera-se uma vasta revolta. Mas não creio que haja nada mais obsceno do que estas homenagens em que os humildes usam um cadáver como adereço para embelezar a sua reputação.

Fala-se muito em piadas de mau gosto e nada em humildades de mau gosto. Acho as segundas mais nocivas.


André Dahmer






O homem sem medo – David Coimbra


Orlov foi um soldado russo condenado à morte pelo famoso czar Pedro, o Grande.
Tenho lido bastante sobre os russos, nos últimos tempos, e mais ainda lerei, porque eles voltaram ao centro dramático do mundo – vide o atentado de ontem, em São Petersburgo.
Aliás, São Petersburgo foi fundada por esse mesmo Pedro, o Grande. Lá está plantada uma imponente estátua equestre dele, mandada erigir por outra Grande, Catarina, que queria se identificar com Pedro, mas não era sua descendente. Catarina, por sinal, nem russa era: era alemã. E Catarina nem Catarina era: era Sophia. Catarina era, isto sim, lúbrica, lasciva e libidinosa. Suas histórias são febris, outro dia conto. Por ora, quero falar de Orlov, o soldado condenado à morte.
Orlov, em russo, significa “águia”, e esse Orlov merecia o nome que levava. Participou de uma revolta contra uma série de reformas que o czar fez no Exército, e por isso acabou sentenciado pelo tribunal militar. No dia da execução, às vistas do povo que fervilhava na Praça Vermelha, diversos colegas de Orlov foram degolados, enquanto ele, impassível, esperava a sua vez. Quando chamaram seu nome, subiu orgulhosamente no cadafalso, caminhou firme pelo piso coberto de sangue coagulado e, chutando a cabeça cortada de um de seus companheiros, disse sem vacilação:
– Vamos abrir espaço para mim aqui!
O czar, que assistia às execuções, ficou tão impressionado com o destemor de Orlov, que gritou:
– Parem tudo! O soldado foi não apenas salvo da morte como promovido. Tornou-se oficial e brilhou no Exército russo pelos anos seguintes.
Tempos depois, quando reinava Isabel, a filha de Pedro, outro militar se viu diante do tribunal. Chamava-se Apraksin e não se tratava de um soldado desconhecido como Orlov. Ao contrário, era um dos mais vistosos generais do império. Mas havia liderado uma retirada vergonhosa na guerra contra a Prússia e por essa razão havia sido levado a julgamento.
Esse Apraksin não tinha nada da altivez de águia de Orlov. Era corpulento, quase obeso, muito vermelho, um tanto preguiçoso, mas muito bem-humorado. Devia ser boa gente.
No fim de seu julgamento, o juiz mandou que se levantasse para ouvir a sentença. Nervosíssimo, de olhos arregalados, Apraksin ficou paralisado de horror, enquanto o magistrado dizia:
– ... diante disso, não temos outro recurso, a não ser...
Esperando que as palavras finais fossem as habituais “tortura e morte”, Apraksin sentiu-se mal e caiu duro ali mesmo, completa, total, absoluta e irremediavelmente morto, incapaz de ouvir o desfecho da frase, que seria... “mantê-lo em liberdade”.
Ou seja: o soldado que encarou a morte com desassombro seria de fato morto, mas ganhou a vida; e o general que encarou a morte com temor ganharia a vida, mas acabou morrendo sem nem saber disso.
A coragem salva e, se não salva, pelo menos é um consolo. Que os russos tenham coragem, nesta hora. E todos nós também.



https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexei_Orlov


O que ensina a quase morte – David Coimbra


Cheguei à fronteira do famoso Vale das Sombras da Morte, tempos atrás. Mas não entrei. É que, se você não sabe, tive um câncer, e agora está tudo bem. Mesmo assim, não quero ficar contando vantagem – melhor não provocar.
O que pretendo falar é sobre uma pergunta que, volta e meia, me fazem a respeito. Semana passada, inclusive, dei uma entrevista para o Julio Ribeiro e o Altair Nobre, da Revista Press, e eles questionaram exatamente isso:
– O que você aprendeu?
Dei uma resposta que julguei razoável, mas, terminada a entrevista, segui pensando.
O que aprendi? Será que aprendi?
Passar por uma dura dificuldade sem aprender nada é desperdício de sofrimento. E burrice, convenhamos.
Vez em quando, leio acerca de pessoas que quase morreram. Elas tiveram suas vidas transformadas radicalmente, umas dizem que passaram a valorizar mais a existência, outras que passaram a valorizar mais a amizade e as pessoas que amam, outras ainda decidiram viajar e conhecer o mundo. Essas coisas.
Bem. Desde sempre valorizei a existência, os meus amigos e as pessoas que amo e, quanto a viagens, confesso que prefiro as de trabalho às de turismo. Fazer turismo é meio cansativo.
Então, não aprendi nada nessas áreas. Mas admito que me sinto melhor agora do que antes de descobrir o câncer. Logo, alguma coisa mudou.
O quê?
Aí está o estranho. Não mudei para mais, mudei para menos. Não tive nenhuma epifania, não me tornei outra pessoa, minha compreensão do mundo não aumentou. Ao contrário: em vez de somar prazeres, os diminuí. Não porque precisasse ou planejasse, simplesmente por não sentir vontade.
Talvez antes ficasse esperando sextas-feiras excitantes ou imaginasse que algum evento grandioso ocorreria no ano que vem. Talvez nem pensasse nisso claramente, mas havia em mim a expectativa de que o futuro seria especial.
Agora, não.
Mas não foram ilusões perdidas, de jeito nenhum, nem a falência de sonhos ou coisa que o valha. Ainda acredito em boas surpresas e vou comemorar se acontecerem. Ainda sou otimista. Porém, basta um dia comum para que me sinta muito bem.
Acordar de manhã, tomar café, escrever, conversar com as pessoas, comer quando estou com fome, beber uma cerveja gelada, rir com o meu filho, ver um filme, ler um livro. Isso faz com que me descubra espetacularmente feliz.
As horas vão passando e há coisas bonitas para se ver lá fora. Um gato ronronando na janela do vizinho. O sol batendo na copa das árvores. Um menino que corre atrás da bola. A moça que atira os cabelos para trás, quando se detém na esquina.

A noite chega, e está tudo certo. Digo algo engraçado e minha mulher ri. Leio um pouco na cama e o sono começa a me dominar. Fecho o livro. Apago a luz do abajur. Não penso em nada, antes de adormecer. Sei que foi um dia bom.

Hagar -  Dik Browne

Em defesa da morte - David Coimbra

Falamos da morte. Estávamos no Timeline, da Gaúcha, entrevistando o médico J.J. Camargo, quando o Potter perguntou algo sobre a morte. Camargo brincou:

- A morte é ruim. Eu sou contra. Apesar de saber que era uma galhofa, aproveitei para defender a morte, essa injustiçada: - Sabe que não? A morte é uma coisa boa!

E é mesmo. Não pude desenvolver o tema a contento na hora (programas de rádio são dinâmicos), mas agora o faço. Porque a morte, mesmo que a gente tente não pensar muito nela, está no centro da vida. Mais: a vida se justifica pela morte.

Imagine uma vida sem morte. No Timeline, o Camargo e o Potter citaram um romance do Saramago, As Intermitências da Morte, no qual ele faz exatamente isso: concebe uma sociedade em que as pessoas não morrem. Mas, na ficção de Saramago, elas continuam envelhecendo e vão ficando decrépitas, até o ponto em que a morte é desejável para elas e para todos os que as cercam.

Mas você pode imaginar o ideal. Pode escrever o seu próprio romance: o de uma vida eterna no auge da saúde física e mental. Fosse assim, me diga: que razão você teria para levantar da cama todas as manhãs? Se você perdesse um dia, não perderia nada. Haveria uma quantidade infinita de dias para substituir aquele que se foi. Que urgência você teria em aprender, em amar, em melhorar como ser humano ou em construir seja o que for, se pudesse fazer isso mais adiante, sempre mais adiante, a perder de vista?

Sem a morte, a vida seria uma sequência aborrecida de tempos iguais. Graças ao ponto final da morte, cada um de nós conta uma história com começo, meio e fim, seja qual for a sua duração. E a beleza dessa história é que nós, os protagonistas, estamos sempre mudando.

Você já percebeu isso? Desde a introdução até o desfecho, nós estamos em transformação. Não existe um único período de estabilidade na sua vida, você está em permanente processo de mudança. Heráclito dizia que é impossível um homem banhar-se duas vezes no mesmo rio, porque, da segunda vez, rio e homem já não serão os mesmos. Pois é assim que é. Olhe para as fotos que você já tirou, da sua infância até hoje. Quem desses que você vê é realmente você? Quem é "mais você"? O último? O de agora? Ou o que estava no ápice da forma física? Todos? Ou nenhum?

Nós mudamos a cada minuto, e isso pode ser uma evolução ou uma decadência. Alguns se tornam mais afáveis, mais tolerantes, outros se tornam amargos e tristes. Mas isso só acontece porque você sabe que, logo ali, há um limite. Você sabe que a trajetória terá um fim. Só não sabe QUANDO será. O que é ótimo. Porque, assim, você pode se esforçar para que cada capítulo seja melhor do que o anterior. No final inesperado, você talvez tenha contado uma linda história. Depende de você.


Zygmunt Andrychiewicz, O artista moribundo; O Último Amigo, 1901


"O beijo da morte", escultura em mármore de 1930, localizada no cemitério Problenou em Barcelona, Espanha




'Papai, todo mundo morre?' - Antonio Prata

Não dá pra dizer que a pergunta me pegou de surpresa. Temia por este momento desde muito antes de ter filhos, desde que percebi, ainda na adolescência, que tinha tão pouca fé em qualquer faixa bônus para além da última diástole quanto coragem para transmitir a má notícia a uma criança.
O que eu ia falar quando chegasse a hora? "Veja, meu filho, a vida é uma improbabilidade absurda decorrente de fenômenos físicos e químicos aleatórios controlados por nada ou ninguém e a consciência, isso que chamamos de 'eu', nada mais é do que uma tempestade de descargas elétricas e liquidinhos entre neurônios; quando a gente morre desliga-se a chave geral, fecham-se as comportas, a consciência desaparece e o nosso corpo é comido por vermes e bactérias. Toma, lê aqui 'A Origem das Espécies' e 'Memórias Póstumas de Brás Cubas'." Não. Não ia rolar.
O medo daquele instante, contudo, não me levou a pensar numa estratégia, a elaborar um discurso, a gastar cinco minutos numa das 20 visitas ao pediatra para pedir um conselho. Já havia quatro anos que os deliciosos circuitos neuronais mais conhecidos como Olivia estavam entre nós, dois e meio que as sinapses do Daniel vinham nos dando o ar de suas graças e mesmo assim fui pego absolutamente desprevenido, ralando um queijo sobre a sopa de ervilhas, na hora do jantar: "Papai, todo mundo morre?"
A pergunta, como você há de ter percebido, chegou enviesada, prenhe da resposta que a Olivia gostaria de ouvir: "Não, filhota, imagina! Só morrem umas pessoas nada a ver, gentios ou infiéis que a gente nem conhece, além dos peixes, galinhas, porcos e bois das refeições. Eu, você, o Dani, a mamãe, a família, os amigos e todo o Grupo 2 e 3 da escola vamos viver pra sempre, relaxa e come aí a sua sopa".
Sem saber como sair da enrascada, resolvi apelar para a verdade: "Sim, Olivia, todo mundo morre". Infelizmente, como sói acontecer, a verdade não foi muito bem recebida. "Mas eu não quero morrer, papai! Eu não quero morrer!". Pensei melhor no assunto e resolvi mentir um pouquinho: "Minha filha, a gente só morre quando fica muito, mas muito, muito velho". "Então a bisa Augusta vai morrer! Ela é muito, muito, mas muito velha!".
Já que eu estava com a ficção pelas canelas, decidi mergulhar de vez: "Não, Olivia. A bisa Augusta é jovem, ela ainda tá com 97, só morre muuuuuuito mais velha do que isso".
Servi a sopa. Olivia ficou encarando as ervilhas com uma concentração shakespeariana. Cada bolinha verde, uma caveira de Yorick. Então ergueu os olhos, séria. "Papai, na minha classe, no Grupo 3, tem um menino que chama Baltazar". Tremi nas bases. Iria ela me dizer que a mãe do Baltazar, do Grupo 3, tinha morrido? O pai? A mãe E o pai? O próprio Baltazar? Como eu iria explicar que tinha mentido, que a vida era isso aí mesmo, uma barafunda inglória em que crianças morrem, bandidos viram presidentes e CEOs, poetas passam fome e o Gugu Liberato nada em milhões? "O Baltazar, do Grupo 3, papai... Ele levou de lanche, outro dia, uma mexerica sem caroço!".
"É mesmo, Olivia?! Uma mexerica sem caroço?! Que legal! Eu vou comprar pra você uma mexerica sem caroço! E melancia sem caroço! E uva sem caroço! Vamos encher essa casa de fruta sem caroço, eu prometo!". Abracei cada um deles bem forte, entreguei as colheres de sopa e me escondi atrás da geladeira, onde dei uma chorada rápida antes de voltar com os guardanapos.


QUADRÃO  -   RICARDO COIMBRA



Cabum! - Antonio Prata


Um dos inúmeros inconvenientes da morte é termos que decidir o que será feito conosco – ou com essas sobras da festa que, por falta de nome melhor, chamamos de “corpo”. Enterra? Crema? Doa pra faculdade de medicina estuprar, opa, quero dizer, estudar?
Por um lado, a cremação me parece, digamos, mais higiênica. Pula-se toda a parte da lama, dos vermes, dos ossos e vamos direto ao pó para o qual, no fim das contas, retornaríamos. Resta ainda, porém, uma questão que não pode ser varrida para baixo do tapete: o que fazer com as cinzas? Nestes meus 37 anos de perambulações sobre a Terra, não encontrei nenhum lugar onde me sentisse tão à vontade que dissesse: acho que eu poderia ficar aqui para sempre.
Moro numa casa pros lados de Cotia, com um belo jardim, onde minha filha aprendeu a andar e para o qual olho todas as tardes, enquanto trabalho. Talvez, caso viva aqui muitos anos, crie um vínculo forte o suficiente para querer me misturar às raízes da grama. Por enquanto, contudo, a ideia de passar a eternidade na altura do km 26,5 da Raposo não me parece das mais atraentes. Até porque é impossível prever se um ano depois de eu bater as botas esse condomínio não vai ser derrubado, o jardim concretado e transformado num estacionamento. Ou numa igreja evangélica. Ou no estacionamento de uma igreja evangélica. (Haverá fim pior do que ficar para todo o sempre entre a cruz e a estrada?)
O mar é uma escolha poética. “Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ mas nele é que espelhou o céu”, escreveu Fernando Pessoa. Não só nele espelhou o céu como nele fecundou a vida. Foi no caldo primordial dos oceanos que a matéria criou vontade própria e saiu por aí copulando, filosofando e coçando o ouvido com o mindinho. Mas por acaso sou navegante português? Sou surfista? Sou poeta? Nada, morei a vida toda na cidade: imagina eu lá longe, a cento e tantos quilômetros de todo mundo que eu conheço, misturado ao sargaço, aos baiacus inchados e às garrafas pet, na areia? Não, não me agrada.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: que tal ao céu? Por US$ 4.995, a empresa Celestis (www.celestis.com) pode me pôr em órbita. Por US$ 12.500, me polvilham na lua. Vixe, só de pensar na solidão cósmica já sinto saudades das garrafas pet. Melhor ficar por aqui, mesmo. Mas como? Numa urna, em cima da lareira de algum descendente? Uma breve pesquisa na internet traz opções menos entediantes: as cinzas podem virar a areia de uma ampulheta, podem ser prensadas num vinil, transformadas em vidro, em jogo de lápis, em diamante. (migre.me/occBI).
Diamante é interessante: essa coisa volumosa, desengonçada e fugaz que é um ser humano condensada numa pedrinha harmoniosa e perene. Mas e o risco de ser roubado? De ser penhorado por um tataraneto bebum? Imagina acabar no mindinho gordo do dono da loja de penhores, numa tarde abafada de verão, coçando um ouvido peludo? Não, não, nada de diamante.
A melhor saída (literalmente) que encontrei em minha lúgubre pesquisa foi a escolhida pelo jornalista americano Hunter Thompson. As cinzas são transformadas em fogos de artifício (www.heavenlystarsfireworks.com), acende-se um pavio e cabum! Chuva de cores no céu, o que sobra é levado pelo vento e um abraço pra quem fica.

Malvados - André Dahmer









A Eternidade Técnica – Carlos Gerbase

Nietzsche dizia que os gregos inventaram seu extraordinário panteão de deuses para dar algum sentido a um mundo misterioso e contingente demais. O sol cruzando o céu era a carruagem de Apolo. O relâmpago era a terrível arma de Zeus. As tempestades marítimas eram sinais da ira de Poseidon. Pouco a pouco, a ciência substituiu a religião como o grande sistema humano para explicar o mundo. A racionalidade engoliu o mito, e a técnica estabeleceu sua supremacia sobre a poesia.
Um fato importante de nossas vidas, contudo, resistiu por mais de 25 séculos ao império da ciência: a morte. A ciência consegue dizer como um corpo biológico para de funcionar, mas não oferece uma boa resposta para a pergunta fundamental: o que acontece depois? E aí reaparecem, triunfantes, as respostas místicas. Os gregos iam para o Hades; os cristãos, para o céu (ou para o inferno); os muçulmanos, para um paraíso repleto de beldades. Muitos cientistas diziam que essas hipóteses não tinham base lógica e deveriam ser ignoradas. Mas, a seguir, em vez de dar a sua resposta, ficavam calados.
Não mais. A ciência e a técnica atacam o último bastião do pensamento metafísico. Outro dia, enquanto esperava a cerimônia de despedida de um amigo que seria cremado, apanhei em cima de uma mesa um folheto que descreve um novo serviço oferecido aos parentes do falecido. Cito textualmente: “O processo é muito simples. Uma pequena amostra do tecido do ente querido é extraída no momento da preparação do corpo. Esta amostra é purificada, processada e então enviada para o banco de genoma, onde ficará armazenada pelo período inicial de três anos, renováveis anualmente, por até 75 anos”.

Eis aí a eternidade técnica, que substitui, a preços módicos, a eternidade religiosa. Como todos sabemos, o DNA é um código digital que, se bem preservado, pode, num futuro não muito distante (com certeza menos de 75 anos), gerar uma cópia perfeita (geneticamente falando) da pessoa que morreu. Assim, o homem terá, de certo modo, vencido a morte. E não apenas o milionário, que gastou parte de sua fortuna para ser congelado. A eternidade técnica vem em suaves prestações, a cada três anos, acessíveis à classe média. Esse capitalismo é mesmo racional, inventivo e empreendedor. Que Deus!

Carlos Ruas

Bob Thaves

Inesperados - Roberto DaMatta


A semana passada me surpreendeu com inesperados. O inesperado é o latente. Aquilo que se cobre com a capa das coisas claras e planejadas, mas resulta no seu oposto. A sovinice que arquiteta riqueza, a dificuldade legal manifesta para promover a propina latente da facilidade, o sublime socialismo que tem como alvo distribuir riqueza, mas que detesta opiniões divergentes.
A morte visitou-me atingindo pessoas que eu admirava. É curioso constatar que apesar da morte ser o mais óbvio axioma da vida – pois só morre quem vivo está – ela continuamente nos surpreenda.
Seu incômodo poder decorre de incontáveis latências. A maior delas sendo talvez o modo como a morte inapelavelmente demonstra a nossa finitude. Esse bonito nome para a brutal concretude com a qual os nossos esbirros de onipotência e as nossas fantasias de permanência são negados.
Haja, pois, espanto quando ela aparece. Vivê-la como algo inesperado é, suspeito, um modo de acolhê-la porque são raros os que aceitam o seu convívio e milagrosos os que não são por ela contaminados.
Representada como um esqueleto coberto por uma mortalha – uma entidade descarnada, absolutamente impessoal e dona de uma igualdade objetiva, pois os ossos canibalizam caras e bocas, a morte é prova da separação entre aquilo que possui a mais profunda significação (é o fim de tudo que almejamos), ao mesmo tempo em que desfruta do nosso mais integral desconhecimento. Sentimos a morte, mas não a experimentamos ou conhecemos. Não sabemos como e o que ela é. Dela temos a experiência exterior, pois para conhecê-la por dentro teríamos que morrer e nesse gesto sem retorno, renegaríamos a vida: esse engenho inesgotável do saber e do conhecimento.
Por isso, os mortos queridos nos espantam na sua imobilidade de pedra. Como não reagem aos nossos soluços? Como não ouvem o que ainda temos para pedir ou contar? A morte rompe relações.
Na minha vida que já vai longa, vi muitas mortes e vivi o absurdo de enterrar quem – pela frágil lógica humana – eu esperava que fosse me sepultar.
Mas haveria alguma morte fora de hora, quando sabemos que ela é o sinal de que “chegou a nossa hora?”. Pode-se matar por engano ou boçalmente, como na guerra e nos radicalismos, mas na morte não há erro. Sem ter retorno ou reparo – ela simplesmente é.
Mesmo esperada, a morte surge como um inesperado, como foi o caso do tio de amigos queridos, falecido no mesmo dia em que o laureado jornalista Jorge Bastos Moreno – para quem, envolvido pela sua conhecida simpatia, escrevi o prefácio de seu livro 'A História de Mora: A Saga de Ulysses Guimarães' – também partia. Neste pequeno texto eu enfatizo o modo como ele recontava fatos públicos do ponto de vista de uma mulher, dona Mora, que, como Penélope, esperava e via com mais clareza as peripécias do herói.
Como os dois sepultamentos ocorreram no mesmo dia, fui obrigado a uma cruel escolha. E certamente por causa disso, relembrei no velório do qual participei que tudo na vida social tem um lado manifesto e um outro latente. O morto é explícita e ritualmente pranteado, mas alguém tem que providenciar o cemitério, a sepultura, o caixão e a vestimenta. O triste adeus de uma despedida, entretanto, promove encontros benfazejos com velhos e novos amigos.
O escritor inglês G. K. Chesterton chamava isso de “trabalho do morto”; um outro inglês, o antropólogo A.R. Radcliffe-Brown dizia que o sepultamento era o início da recomposição da teia social ocupada pelo morto. Robert K. Merton, um brilhante sociólogo americano hoje esquecido, sugeriu, inspirado em Max Weber, que toda instituição social tem uma “função manifesta” geralmente expressa nos seus estatutos (a ética protestante) e uma “função lamente” (o espírito do capitalismo), a qual surge como um inesperado e muitas vezes como ironia ou paradoxo de dentro dos seus contornos sociais.
A morte fez apreciar o Moreno, como um jornalista-profeta. Não o que advinha, mas o que diz o que os poderosos não gostam de ouvir porque foi escrito num tom inesperadamente latente – no limite da ironia e do politicamente correto. A função manifesta do jornalismo é estampar fatos. A latente é comentá-los. O modo como isso é feito separa o fofoqueiro do profeta que, ao lado do palácio real, prega uma jeremiada nos barões-ladrões.
Tal como acontece na morte, os políticos se elegem manifestamente para governar, mas o seu objetivo latente é roubar ou arrumar-se. Eis uma tese, mas sua demonstração, como diria um outro inglês, é uma outra história...



Maurício de Sousa

Do bar ao cemitério - Roberto DaMatta

Eu a vi com o rosto de mármore, e os olhos para sempre fechados. Peguei no seu braço: estava como um pedaço de gelo. Sabia da morte e a conhecia, mas como ocorre na vida e no amor, fiquei surpreso com sua impositiva realidade.
Mario Batlha, meu querido amigo me pronunciou essas palavras neste Natal, no bar do Soares aqui em Niterói, no nosso encontro anual de velhos amigos – velhos pois todos temos mais de 89 anos.
Quando entramos no bar, os jovens atendentes sorriem, pois todo jovem gosta de ouvir histórias contadas por velhos. Elas revelam como somos tolos e antigos. E é preciso sentir-se esperto e moderno neste Brasil onde o sujeito que chama o outro de tosco não sabe o quão tosco ele é.
Vamos ao bar em busca da juventude que a amizade e o álcool – o espírito – fornecem. Bar tem a ver com alegria, piada, aventura e bebidas. É um espaço aberto e ambíguo, pois abriga e revela, permite sair e entrar sem pedir licença. É público no ambiente, mas suas mesas são como casas oferecendo a seus ocupantes uma certa privacidade.
Foi ali que meu querido amigo Mario Batalha me olhou com olhos marejados de lágrimas e eu o olhei de volta com meus olhos molhados e turvos de velho.
Perdi a esposa que o Dr. Alzheimer roubou de mim faz uma década, complementou ele numa explicação patética como ocorre em todo sofrimento.
Fomos ao enterro de Sueli, a infortunada esposa de Mario. Lé estava ele com suas roupas antigas, magro como um tuberculoso, triste como um profeta. Olhava para todos com a surpresa dos que descobrem que o mundo é feito de sofrimento e, naquele momento, ele o vivia integralmente. No centro daquele triste mundo, jazia sua mulher cercada de flores numa imobilidade de estátua. Era a presença da morte na antessala do cemitério, pois a casa dos mortos é um dormitório do qual os religiosos dizem que se desperta para o outro mundo.
Pessoas chegavam e saíam, repetia Mario com um sorriso sem graça no rosto. Eram amigos queridos e alguns parentes. Todos estavam tocados pela magia da morta, minha mulher que foi generosa e tranquila. Todos diziam que tivesse “força”, a palavra de conforto da época de Star Wars quando, de fato, ali nada tinha de naves espaciais. Muito pelo contrário, continuou Mario Batalha tragando seu uísque, ali ia-se para o fundo de uma cova, para dentro da terra de onde um o primeiro homem saiu. Um barro fosco e malcheiroso do qual nasceu Deus sabe como, um espírito voltado para cima. Um olhar para as estrelas e, eventualmente, para o sol que cega.
Calma Mario, disse com compaixão e afaguei suas mãos magras de velho. Tudo passa...
Todos os outros amigos e até o Boca Mole e seu marido concordaram. Estavam de bom humor e faziam intrigas alegres e bem-humoradas em honra ao amargor de Mario. Fulano dissse X de sicrano que, por sua vez, comentou Y de beltrano...
A conversa ia do bar ao cemitério. De um lado o álcool, que é um espírito que despertava; do outro, o espírito liberto da carne pronta a apodrecer e fazia chorar em impulsos sofridos, como um orgasmo maldito.
Eu olhava tudo como de fora, mas os laços de amizade me envolviam. Eu amo meu amigo Mario Batalha, um cara zangado, mas que jamais foi capaz de dizer um não. Um sujeito cuja generosidade é maior do que o Pão de Açúcar visto de Icaraí, e por isso sofria.
Dez anos de doença. Dez anos de sentimentos de culpa. Dez anos de lágrimas represadas. Subitamente, Mario Batalha tirou seu revólver 38 da cinta de oficial de infantaria da reserva devidamente aposentado e começou a atirar para cima, calmo, no Bar do Soares causando pânico, dando-lhe um ar jovem e ativo de puteiro animado. Fregueses ocasionais corriam, mas nós ficamos e bebemos ao surto do Mario. Era uma legítima manifestação de sua dor. Coisa singular e espalhafatosa, sem dúvida, mas não feriu ninguém, exceto algumas lâmpadas e garrafas que se quebram ou mudaram de prateleira. Tal como a esposa que fora linda e jazia inerme no seu caixão, prestes a ser enterrada no que me pareceu um enorme buraco.








Quando morre o coração - Roberto DaMatta

Morreremos do coração, mas o coração (esse termômetro do amor) pode morrer antes da gente.
*
Um dia, entrei no gabinete do meu avô Luar e encontrei o texto abaixo:
“Meu coração morreu faz 20 anos. Os espíritos não esquecem do dia e ano de suas mortes porque sabem que os mortos não vão mais tomar sorvete, beijar na boca e comer arroz com feijão. Na eternidade onde estou há enfado porque não há o instante - o que passa. Sabendo que morri, estou metido na eternidade onde nada acontece.
No dia da minha morte súbita como um espirro, vi sofrimento e corre-corre. O morto, conforme sabemos, é um inabalável centro de atenção. Um cadáver coberto de flores e de um elegante véu, imóvel e aparentemente contente, dentro de um caixão, escancara o portal da realidade. 
No além, vemos isso com nitidez. Imediatamente notei a perturbação dos amigos e inimigos, bem como observei o vazio sentimental dos meus parentes. 
Vivo, fui a muitos funerais, mas jamais havia notado como o morto reúne tanta gente e produz tanto falatório, medo e piadas. Ouvi muita coisa e notei os círculos em volta do caixão. Os mais próximos - esposa, filhos e netos - ao lado do meu rosto tisnado daquele amarelo cera dos defuntos. Amigos e colegas ficavam de longe. 
É curioso constatar como se faz com um evento jornalístico um velório. Mas um velório visto pelo espírito do morto que sabe de tudo, mas está fora do palco, fora do drama. Fiquei penalizado mais pela situação do que pelas demonstrações de sofrimento. Quando vivo, jamais achei fácil despachar (como fazemos com o lixo) o corpo de um ente querido. 
Vi Marcília, minha mulher, chorando muito agora que havia enviuvado e me arrependi de não lhe ter falado mais vezes do quanto eu a amava. Só depois que as pessoas morrem é que nos arrependemos de nossas sovinices emocionais ou das perguntas que não fizemos. 
Meus filhos choravam. Os primos riam e alguns colegas mal podiam esconder o alívio pela minha morte. Um deles murmurou um meio alto “já vai tarde...”; e um outro replicou “não vai fazer falta alguma”... Não fiquei indignado ou triste, não sentia nada porque os espíritos (como sei agora) vivem apenas parcialmente. Eles, como os santos, precisam dos vivos para celebrá-los. 
Terminado o funeral, muitos foram a minha casa. Anoitecia e uma lua brilhava só para mim porque logo que meus parentes, viúva, amigos e colegas chegaram, os criados abriram muitas garrafas de vinho e todos usaram minha morte para beber em minha memória e em louvor do meu espírito que, ali presente, ficava um tanto desconfiado, mas feliz porque não cabe a nenhum espírito ficar alegre.
Continuei pairando e pelo retinir das taças logo vi que minha pessoa, mal havia sido enterrada, começava a ser esquecida. Afinal, o vinho era bom e o Dr. Roberto, que só tomava uísque, sorvia sua terceira dose e se chegava com desenvoltura a Marcília, minha viúva.
Logo atentei que havia (conforme sempre desconfiei) algo entre eles. Eu sabia (mas não queria entender) que quando ela ia costurar com as amigas e eu via o carrão do Dr. Roberto, meu cardiologista, especialista em salvar corações, que o elo entre eles ia além das linhas bordadas. Para meu tormento insensível, pois as almas do outro mundo não sentem, ouvi o médico segredar algo como “agora, amor, estamos livres...” e no rosto de Marcília observei um disfarçado riso que eu bem conhecia na intimidade dos corpos, quando ela se desnudava no nosso casto e honrado quarto. 
Não errei. Um mês depois do meu enterro, casaram-se e a festa era outra. Só mencionaram o meu nome formalmente uma vez. Ao lado disso, meus descendentes só pensavam em mim quando falavam no que eu havia “deixado”. 
No ano seguinte, eu já havia desaparecido da vida desse povo que foi meu. Tal desmaterialização indicava que a cada minuto, hora, mês e ano, eu ia sumindo. Não nego que, de quando em vez, alguém sente saudade de mim. Mas hoje me conformo que sou lembrado para ser devida e sucessivamente olvidado. 
Irmãos, registro nessa psicografia como fiquei sentido com o egoísmo dos vivos diante dos mortos. Mas como evitar esse afastamento que vira saudade e é correto?”
*
Eu não sabia que vovô se comunicava com o outro mundo. Só espero, querido leitor, que ninguém também mate o meu coração. 
Anésia - Will Tirando


Triste morte – Fabrício Carpinejar

Você só vê as vítimas da morte. Até acha que ela é infalível. Só visualiza o trabalho feito, os obituários implacáveis, os caixões descendo no chão ou subindo nas paredes, a sua inclemência com todas as faixas etárias.
Mas não enxerga as suas falhas. Não percebe o quanto ela deixa a desejar em termos de aproveitamento.
A morte também é humana e incompetente. Às vezes, se engana de horário. Às vezes, erra a pontaria. Já dormiu em pleno expediente comercial, já fez greve por aumento de salário, já cometeu o vacilo mais bobo e se apaixonou pelas suas presas.
A morte nem sempre acerta. Amarga dúvidas vocacionais e crise de consciência. Fraqueja diante de velho casal que dorme de conchinha e mente para o destino que não encontrou ninguém lá.
A morte não é imbatível como julgamos. Permite aviões com equipamento vencido pousarem, autoriza ônibus com motorista cochilando não cair em curva, salva pedestres desatentos.
Ela sopra vento frio no rosto de suas próximas encomendas para dar chance de se protegerem e mudarem de percurso. Educada, alerta a intuição de cada um antes do fim.
Há mais quase acidentes do que acidentes em seu currículo. Quantas tragédias foram evitadas pelos seus assobios?
A morte é a mais triste das criaturas, nunca é comemorada. Não se dignifica com o trabalho. Não se converte ao bem poupando ninguém. É gerada em nosso nascimento, porém permanece a vida inteira intratável como vilã.
Seus fracassos generosos não são noticiados pelos jornais e terminam desconhecidos. Quem ganha com a omissão é o anjo da guarda, que recebe créditos quando alguém escapa por um fio de uma situação de perigo.
A morte tem seus segredos de amor, sua coragem parece ser a de negar a si mesma. Cansa dos choros, gritos e três batidinhas na madeira, não suporta os arranjos acobreados dos velórios, a comidinha fria e a decoração fúnebre de suas festas.
Certo que também experimenta os seus momentos inspirados e cruéis de guerras, terremotos e chacinas, porém odeia sangue, prefere levar as pessoas dentro do sono, onde pode se misturar à paz das lembranças e conhecer melhor os desejos do falecido. E abomina igualmente o amadorismo de balas perdidas e a crueldade desnecessária do narcotráfico.
A morte nem sempre mata – é a gente que não tem capacidade de provar as suas distrações invisíveis.





Allan Sieber


     

Laerte

ADÃO ITURRUSGARAI



   
Fernando Gonzales

 
 



A morte de quem a gente não gosta - Fabricio Carpinejar

Toda morte de um familiar e amigo dói. Toda morte envolve o pesar, como um novelo colorido que acaba antes de se concluir o pulôver.

Vestimos a tristeza e o luto com pena de nossos dias sem aquele riso e aquela voz que enchia os nossos ouvidos de promessas. Quando o outro falece, enfrentamos os nossos limites, as nossas verdades sem esperança alguma. A verdade é tão pequena e feia quando não há mais tempo para fazer diferente.

Mas a morte que mais dói é a que não dói, é a morte constrangida de alguém com quem brigamos. Alguém com quem a gente não se dava bem. Lamenta-se a vergonha da inimizade. Até ir ao enterro ou ao velório surge como uma hipocrisia. Seremos apontados pelos outros como impostores na festa do céu. Faltará coerência para brindarmos o último cálice das pálpebras.

É uma morte que não podemos chorar porque não existiu a intimidade do perdão. É uma morte desfalcada de uma conversa derradeira, capaz de limpar as ofensas e a boca. É uma morte com rascunho sujo da caneta e da raiva.

É uma morte órfã, de pai e mãe desconhecidos, longe da transcendência, avulsa, com os pecados mesquinhos e mundanos. É uma morte aborrecida, desinformada. Corre-se atrás do passado e não se tem como alterar as lembranças (o pedido de desculpas jamais aconteceu para costurar os rasgos da memória).

É uma morte que somente nos piora, pois não melhoramos, dentro do possível, a relação com quem foi embora. É uma morte em que não podemos elogiar o morto, recomendá-lo com as nossas lágrimas e olhares profundos. É uma morte que nos tolhe de falar e de sentir e de estar presente.

É uma morte que boicota a emoção, a sinceridade, o discernimento. É uma morte que suspende a vingança, a retaliação, a represália, e tampouco serve como trégua para refletir e repensar as ações.

É uma morte que nos prova o quanto odiar é tempo perdido e que nos priva da ressurreição da segunda chance. É uma morte silenciosa, mas com nenhuma paz, com nenhuma recompensa das tentativas da consciência.

É uma morte que não termina, que não interrompe os ressentimentos, não oferece um fim restaurador às incompreensões. É uma morte de obituário de jornal, que se lê assustado, de cabeça e coração baixos, com um espaço contado da respiração.

É uma morte melancólica, em que se tem que rezar mais para si, pela ausência de misericórdia durante a nossa vida, do que pelo ente perdido. É um nome que vai para a lápide bloqueado em nosso Facebook, suspenso em nossas correspondências e telefone, vazio de conexões recentes.

Quando um desafeto morre, somos nós que morremos dentro do orgulho.

Chance - Samba Do Morro


Laerte










Só temos esta – Martha Medeiros


Lido razoavelmente bem com a ideia da morte. Considero-a uma balizadora – diria até que uma aliada. Ter consciência tranquila da morte dá à vida um sabor menos azedo e nos faz valorizar cada pequeno milagre diário, em vez de esperar por uma guinada gigantesca que quase nunca acontece.
Confúcio, filósofo chinês, tem uma frase diabólica sobre esse assunto: “Nós temos duas vidas e a segunda começa no dia em que nos damos conta de que temos apenas uma”.
Cerca de 11 anos atrás, recebi uma notícia que poderia ter sido desestabilizadora: havia grande chance de eu estar com câncer. A certeza só viria depois de ter feito um exame minucioso cujo resultado sairia em três dias. Durante três dias, convivi com essa espada sobre a cabeça. Muitos talvez pensem que foi então que descobri que só possuía uma vida, mas não. Bem antes disso, eu já a desfrutava como sendo única. Por isso, quando surgiu aquela notícia que poderia ter sido desestabilizadora, não me desestabilizei.
Já vivia como se fosse uma sobrevivente muito antes de esse diagnóstico chegar às minhas mãos. Estava satisfeita com o meu histórico até ali, e se tudo acabasse mais cedo do que o desejado, não seria perda total. Então, durante esses três dias, afora a preocupação com as minhas filhas, nada mudou. Não senti que estava passando por um divisor de águas. Quando o resultado do exame acusou nada de grave, suspirei de alívio e continuei a fazer o que estava fazendo. Não virei outra pessoa. Não nasci de novo.
A frase de Confúcio sugere que o momento de dar-se conta de que a vida é única pode também margear alguma data redonda da maturidade. Aos 40? 50? 60? São idades emblemáticas, em que a perspectiva do fim realmente assusta e tomamos decisões radicais que antes não tínhamos coragem: separar, tirar um ano sabático, fazer uma viagem ritualística, colocar em prática um projeto, casar de novo, enfim, o famoso “correr atrás” com o fôlego que resta. Mas a iluminação pode acontecer aos 18. Aos 21. Aos 26. Agora, por exemplo.
Não, não me venha falar em vida eterna. Deus me livre da vida eterna. Sinto calafrios só de imaginar que é possível que nada acabe, nem eu. Caso eu lhe pareça uma herege, seja misericordioso, me ofereça seu perdão e toque em frente. Nem perca seu tempo me enviando mensagens desaforadas ou tentando fazer com que eu mude de ideia. Sou um caso perdido. Dedique-se a quem ainda tem salvação.
Mas se você, como eu, acredita que um dia tudo terminará, não espere por um diagnóstico, não espere uma data redonda, não espere que algo grandioso aconteça para começar a fazer o que tem vontade. Ter nascido já foi grandioso o suficiente.





Renan César



Fernando Gonsales




 André Dahmer




Morri – Martha Medeiros


É uma das gírias do momento: Morri (mas dizem que já começa a cair em desuso, fenecendo ela própria).
“Morremos” quando ficamos impactados por algo, quando um acontecimento nos tira o ar, quando não acreditamos no que estamos vendo, ou seja, quando parece que fomos para o céu. Sem fatalismo, é apenas uma gracinha.
Tenho simpatia pelo uso corriqueiro e desestressado de tudo que invoque a palavra morte. Na mesma proporção, sinto um certo desprezo pela reverência aterrorizante que prestam a ela. Qual o problema, morrer?
Não tenho medo da morte porque já morri muito.
Não apenas em momentos quando cabia o uso da gíria (durante minha música preferida num show, quando me deparei com uma praia paradisíaca, quando ouvi algo que eu esperava escutar havia tempo), mas, muitas vezes, no sentido fúnebre mesmo: morri todas as vezes em que me frustrei, morri quando deixei a infância, morri quando deixei a puberdade, morri quando passei por finais de amor, morri quando passei adiante apartamentos em que vivi, morri por todas as minhas desistências, morri diante de cada tarefa terminada, morri quando machuquei algumas pessoas sem querer, morri nas inúmeras vezes em que fui machucada, morri tanto por ferimentos leves quanto por balaços à queima-roupa.
E morri em solidariedade à morte dos outros, morri diante de tragédias que não foram comigo que aconteceram, morri pelas estatísticas, morri de vergonha alheia, morri pelo que passou raspando. Tudo o que acontece de triste a qualquer outro ser humano, passa rente a nós.
Morri por excesso de sensibilidade e às vezes por um rigor desmedido, mesmo que, em termos genéricos, procure ver alguma graça em tudo.
Agorinha mesmo, 10 minutos atrás, morri um pouquinho. Coisa de nada. Já voltei.
Sem morte, não há vida. Quem não morre, não renasce, não volta mais atento, não volta mais amoroso, não volta mais experiente, não volta. Vira cadáver já na primeira morte, que pode ter acontecido aos cinco anos, aos 12, aos 16: quando você morreu pela primeira vez?
Minha relação amistosa com a morte vem justamente do exagero de amor que tenho pela vida, pela profunda capacidade de regeneração que me trouxe até aqui, habilitada para extrair alegria das mínimas coisas e êxtase das maiores. É por já ter morrido muito que vibro quando o telefone toca, quando o dia amanhece com sol, quando vejo os amigos, quando pratico exercícios, quando aprendo uma atividade nova, quando acerto, quando sorrio, quando comemoro.
Não é só a iminência de uma morte definitiva que nos faz valorizar cada dia respirado, mas também as sucessivas mortes pontuais, aquelas que nos dão o passe para finalizar a próxima jogada com mais êxito.
Morreu? Nasce um novo começo.


Malvados - André Dahmer











Estes somos nós - Marcos Piangers

"Como é estar morrendo?", ela perguntou ao senhor com câncer. "Parece que estou cercado de pequenos pedacinhos de vida", ele disse. "Estes pedacinhos de vida estão voando ao meu redor e eu estou tentando agarrá-los. Quando minha neta dorme no meu colo, eu tento agarrar a sensação da respiração dela em cima de mim. Quando eu faço meu filho rir, tento agarrar o som dele rindo, o som do ar saindo do seu peito".
"Mas os pedacinhos se movem rápido demais agora. E eu não consigo agarrar todos. Sinto eles escapando pelos meus dedos. Em breve, onde costumava ter minha neta dormindo e meu filho dando risada, não vai sobrar nada", disse o senhor. "Sei que quando você é jovem parece que você tem todo o tempo do mundo. Mas você não tem. Eu digo: pare de ficar fingindo o tempo todo. Agarre os momentos da sua vida. Agarre enquanto você é jovem e ágil, porque antes de você perceber será velho e lento. E não haverá mais momentos pra agarrar".
É um diálogo de um seriado chamado This Is Us. Um seriado que me faz chorar em todos os capítulos. Demorei um tempo pra assistir, não tem na Netflix, imaginei que era só um drama familiar bobo. Talvez seja. Mas me conquistou. Fala sobre um filho que morre no parto, um pai que se foi, uma mãe que guarda segredos, uma avó que recebe uma segunda chance. Fala sobre irmãos gêmeos que se amam, um filho adotivo, um pai que abandonou e depois se arrependeu. Fala sobre as perdas que sentimos, e as que nem sentimos mas nos farão lamentar um dia. Fala sobre irmãos que estão sempre competindo, dificuldade de perder peso, melhores amigos que ficam com a sua mulher, um pai adotivo que se sente inseguro o tempo todo. E acho que tem um pouco de cada um em todos nós.
Acho engraçado quando perguntamos para alguém que está morrendo qual é a sensação. Quais os arrependimentos? O que faria diferente? Perguntamos para pessoas que estão desenganadas o que fariam, pois pensamos que nós mesmos poderíamos fazer algo diferente. Nosso erro é perguntar para as outras pessoas. Esquecemos que todos estamos morrendo.
"A vida é cheia de cores e cada um de nós chega e adiciona um tinta, uma pincelada. Mesmo que não seja muito grande, a pintura vai sendo pintada por todo mundo, pra sempre, em todas as direções", diz um personagem em outro episódio. "Essas cores que colocamos serão misturadas com as cores que outras pessoas pintarão. Até que não somos mais cores diferentes, somos uma coisa só. Uma pintura. Pessoas vão morrer nas nossas vidas, pessoas que amamos, no futuro, talvez amanhã, talvez em alguns anos. E se uma pessoa morre não quer dizer que não está mais na pintura".
Suas cores continuam lá. Aquilo que fazemos todos os dias contribuem para essa pintura coletiva que é a vida. Que seja um quadro bonito.


André Dahmer




A VIDA COMO ELA YEAH      ADÃO ITURRUSGARAI






Neil de Grasse Tyson fala sobre o que acontece após a morte

Somos muito mais ricos do que pensamos - Ruth Manus

Era uma manhã de sol do verão europeu. O céu azul de Lisboa chegava a ser ostensivo. Nem a nuvem mais persistente poderia ameaçar aquela imponência. Me vesti com roupas claras, passei filtro solar numa sarda desenfreada que vem crescendo na minha bochecha, entre as demais pintas que se espalham por essa cara branca. Sim, achei que podia ser câncer de pele, mas a dra. Sílvia disse que está tudo bem. E, se ela diz, eu acredito, é assim há 20 anos.
Caminhei feliz por entre aquelas cores gratuitas e vibrantes que tornavam o dia uma verdadeira pintura. Até aquele horroroso prédio da Polícia Judiciária – nada harmônico com os ares de Lisboa – parecia simpático naquele início de dia. Desci a Duque de Loulé com os olhos apertados contra o sol e virei à esquerda na Gonçalves Crespo, como de costume.
Ao chegar ao escritório, abri a cortina branca e olhei para os transeuntes da Rua Luciano Cordeiro. São quase sempre os mesmos. O chinês do restaurante, o nosso vizinho de sala, a Dona Múmia e o garçom da Camacha. Sentei-me à frente da minha mesa, fiz as contas do fuso horário, liguei para minha mãe para ouvir sua voz e, na sequência, mandei uma mensagem para minha Tia Regina, desejando boa semana.
Não sei bem por que, naquele momento, achei que deveria contar aquela esquisitice para a Tia Rê. Sim, ela é médica e já trabalhou como legista, mas não sei explicar o que me levou a desejar uma boa semana a ela dizendo que minha janela do escritório dá para uma rua que é caminho para o instituto médico legal de Lisboa, o que faz com que eu seja agraciada várias vezes por dia com carros funerários parados na minha frente. Não era uma mensagem muito usual para uma manhã de segunda-feira.
Como se aquilo não bastasse, disse ainda que aqui em Lisboa há algo bastante peculiar, que é o fato de os carros funerários frequentemente serem todos de vidro, o que nos permite ver o caixão inteiro e ficar imaginando quem estará lá dentro. Observo o tipo de madeira, as flores que acompanham o caixão, o semblante do motorista.
Tia Rê me conhece bem o suficiente para saber que eu não me incomodo com isso, já que, desde os meus 16 anos, cismei de gostar de passear em cemitérios, o que faço com frequência até hoje. Na minha despedida de solteira, sábado passado, depois de muitas garrafas de vodca, minhas amigas queriam me convencer a ir para uma balada no centro e eu só dizia que queria pular o muro do Cemitério do Araçá. Felizmente fomos ao Mc Donald’s. Mais tranquilo.
Mas, enfim, disse à minha tia que, de fato, era uma coisa esquisita aquela dinâmica de começar a semana num dia ensolarado com 3 carros funerários passando pela minha frente em menos de 15 minutos. Era um desabafo um pouco sem cabimento, mas eu sabia que podia dizer isso a ela.
Alguns minutos depois, o celular vibrou com a resposta da minha tia. Foi como se as palavras da minha madrinha – falante e geminiana como eu – entrassem na minha sala com ainda mais força do que aqueles raios de sol desenfreados do verão. Li e reli a frase sintética, impressionada com seu conteúdo.
Tia Rê não é de florear muito seu discurso. Fala o que dá na telha, o que deve e o que não deve. Não fica investindo muito na poesia, mas a poesia, por vezes, investe nela. Era exatamente o caso daquela resposta.
“Querida Rú, fique contente por ver os carros funerários. Se há caixão, é porque houve vida.”
Li de novo. Sorri. Era uma carga realmente gigantesca de intensidade em tão poucas palavras, escolhidas sem grande esforço.
Fiquei pensando naquilo o dia todo. Toda perda só existe porque houve um ganho. Toda saudade só existe porque já houve presença.
Toda morte só existe porque já houve vida. De fato, nós somos muito mais ricos do que pensamos. Só não costumamos estar muito atentos a isso.







A morte e o tempo verbal - Ruth Manus

Eu não sei se morrer é difícil. Deve ser – em alguns casos mais do que em outros. Mas de uma coisa eu sei: ficar é muito difícil. Ficar é sangrento. Aliás, eu tenho muito mais medo de ir ficando do que de ir morrendo. Disse isso outro dia a uma amiga. Deus me livre de viver até os cento e poucos anos. Pra quê? Pra ver todo mundo morrendo antes de mim? Não, não estou disposta a ganhar essa competição.
Já aprendi que perder as pessoas é duro por muitos ângulos. Não se trata apenas da ausência. São as dúvidas. Por onde é que ele anda agora? Ou melhor, será que ele anda em algum lugar agora? E ele sabe que eu estou sofrendo? Ele sofre por eu estar sofrendo? São as hipóteses. E se ele ainda estivesse aqui? E se tivesse dado tempo de ele ficar mais um pouco? E se eu tivesse tido tempo de fazer diferente?
É difícil por muitas razões. Mas existe uma dificuldade muito pontual – e que até costuma ser rapidamente superada, mas que se alojou na minha memória como uma das partes mais cortantes desse processo. Trata-se da inusitada e inesquivável relação entre morte e tempo verbal.
A primeira vez em que você precisa colocar uma pessoa no passado não é algo fácil de esquecer. A primeira vez que você se flagra dizendo que ele “era”, que ele “gostava”, que “dizia e “frequentava” e “comia” e “dançava” e “fazia” e “ria” e “detestava” e “escrevia”.
A gente até pode se preparar para certas mortes. Podemos organizar a cabeça, preparar os documentos, pensar no rumo dos imóveis, na liberação do seguro e no advogado que cuidará do inventário. As mortes anunciadas têm essa incômoda vantagem. Mas ninguém se prepara para um verbo no passado. 
E não importa quantas mortes a gente já tenha encarado: não existe experiência nem direito adquirido no ramo desses tempos verbais. Podemos nos habituar aos velórios, conhecer o melhor caminho para o cemitério, ter o contato do agente funerário na memória do celular, conhecer o juiz da Vara da Família e Sucessões pelo nome. Mas sempre que precisamos colocar alguém no pretérito imperfeito pela primeira vez é como se fôssemos absolutamente virgens naquela matéria.
A sensação é a de um abandono. Nosso para com eles, deles para conosco. Eles partiram e agora nós vamos colocá-los no passado. Eles já não são, eles eram. E não importa o quanto eles sigam sendo, no presente, dentro do nosso peito. Para o mundo, para o cartório, para a seguradora e para regência verbal, eles eram e já não são.
O Zé envernizava os móveis de madeira. A Má ria de absolutamente tudo. O Gabriel ia à igreja. O Cris cantava desde muito novo. O Paulinho velejava sob o céu azul. O Fernando dirigia televisão. O Chicão jogava handebol. O Marcito mergulhava no fundo do mar. O Urian pintava com maestria. 
Dizendo hoje até pode soar bonito, como um passado consolidado em memória. Mas na primeira vez em que se diz, de bonito não tem nada. Nem na segunda e provavelmente na terceira também não. Dá vontade de não terminar a frase, porque dizer isso parece significar que o fio se rompeu em voz alta. É como consumar com palavras o conteúdo do atestado de óbito. Ninguém quer fazer isso.
Desculpem-nos por termos nos rendido às exigências mimadas dessa tal de gramática. Por nós, vocês continuariam no presente, ainda que fora do nosso alcance. Desculpem essa nossa fraqueza de ter medo que pensem que estamos loucos se continuarmos tratando vocês como vivos e permanentes. Esses padrões ideais de comportamento são mesmo muito incômodos.
O que interessa é que seguimos sendo capazes de ouvir suas vozes. Por vezes, até sabemos o conteúdo do que seria dito. O cheiro de vocês segue persistente. Memórias do passado seguem sendo capazes de construir quem somos no presente. O verbo, embora continue sendo inoportuno, segue sendo apenas um verbo.
André Dahmer



Rua Professor Antônio Prudente - Ruth Manus

 Rua Professor Antônio Prudente, 211. Talvez algum dia eu esqueça meu próprio endereço, mas desse eu sei que não me esqueço mesmo que queira. Era lá. Descia na estação São Joaquim, andava 3 quadras na Vergueiro e entrava na Antônio Prudente com a mochila nas costas.
Esse não era um bom ponto de encontro para um grupo de amigas de 18 anos. Era bem melhor ser o Parque Ibirapuera ou o Chicohamburger. Mas era lá no A.C. Camargo, belíssimo eufemismo para o hospital do câncer, onde nós passávamos nossas noites de sábado, nossas tardes de domingo e o entardecer durante a semana. Era lá.
No início de 2006, nossos planos eram bem diferentes. Imaginamos viagens nos finais de semana e noites intermináveis com brigadeiro e DVD repetido. Não planejamos aquelas entregas de comida pálida no quarto, nem as jarras de contraste antes das tomografias. Mas foi o que a vida trouxe e era lá que a gente vivia nossos dias porque nenhum dos nossos planos fazia sentido se estivesse faltando uma. E se uma estava na Antônio Prudente, 211, todas estavam na Antônio Prudente, 211.
Aprendemos todas as rotas. Alguns se julgavam íntimos do hospital porque sabiam o roteiro crachá-elevador-quarto. Mas esse não era o nosso roteiro. Diariamente, extrapolávamos o limite de 3 visitantes. Sabíamos passar pelos fundos do Rei do Mate, pegar a escada dos médicos e subir sem crachá. O amor tem dessas marginalidades.
Conhecemos muito andares, incluindo o da pediatria. O da pediatria era mais colorido e mais dolorido que os outros. Os vizinhos doíam mais. Conhecemos o cardápio do Rei do Mate de trás para frente, até o cheiro do pão de queijo tornar-se insuportável. Conhecemos cada um dos sofás da recepção. Os restaurantes por quilo do bairro. As calçadas nas quais desmoronamos algumas vezes.
Nós chegamos quase a nos habituar. Nas primeiras semanas, achamos que era um endereço passageiro. Nas semanas seguintes voltamos contrariadas. Nas subsequentes já não questionávamos mais. Levávamos material para estudar, esmalte para pintar as unhas, panelas de brigadeiro e até um aparelho de DVD. Não desistimos dos planos, apenas mudamos o endereço.
Há quem diga que a gente cresce quando sai da casa dos pais. Eu digo que a gente cresce mais na Rua Antônio Prudente, 211. Entramos ali meninas, preocupadas com provas, sofrendo por amores não correspondidos, nos queixando da demora do metrô enquanto esperávamos na plataforma. Saímos de lá mulheres, preocupadas em permanecer de pé, sofrendo por não podermos fazer mais nada, nos questionando sobre o sentido da vida.
Houve um dia no qual eu corri para fora do hospital e me sentei na sarjeta, chorando com os olhos, a garganta e estômago. Uma desconhecida que saía do hospital veio até mim, colocou a mão no meu rosto e disse “o que quer que seja, uma hora vai parar de doer”. Eu nunca esqueci seu rosto. Eu tinha 18 anos.
A Má passou seu último final de semana conosco. Sábado à noite, estávamos todos lá, não faltava ninguém. Antes de sair, eu contei uma piada e ela riu muito. Nunca consegui lembrar qual foi a piada. Dei um beijo nela e disse “eu te amo, nega”. A Má morreu num domingo, há 10 anos. Um mês antes, ela tinha completado 19 anos. E houve festa. Hoje ela faria 29.
Na Rua Antônio Prudente, 211, nos despedimos. Escolhemos o vestido azul e o chapéu marrom para ela se despedir dos demais. Entrei no carro dos meus pais naquele domingo e eu já não tinha mais 18 anos. Não sei quantos anos eu tinha, nem sei quantos anos eu tenho. Talvez 211.
Mas eu sei que a moça tinha razão. Já não dói. Ainda é uma grande nuvem confusa que nunca deixará de ser, mas já não corta o peito, só aperta. São saudades e hipóteses, não são navalhas. Exceto o cheiro do pão de queijo. Esse ainda invade, revira e dói. Esse eu nunca superei.


Franz Sedlacek, Fantasmas em uma árvore, 1933

Crianças em velório - Claudia Lemes

Família de descendência camponesa italiana: falatório, reuniões, comilança, risos e choros, fofocas ânimos sempre alterados.
Em uma família camponesa italiana, nada é pequeno. Tudo é ampliado. Quando comem. Comem muito. Quando o motivo é de riso. Ri-se muito. Mas, se choram. Choram muito também.
Era motivo de choro, como em todo velório. E por ser um velório italiano: Muito choro. E por ser uma família italiana: Muita gente!
De vez em quando um comentário. Hora ou outra, alguém se aproximava da defunta e derramava-se em prantos mais ostensivos, sob o olhar curioso dos presentes.
Um terço sendo rezado por um grupo em um canto. Um chá sendo servido em outra parte da sala. Outro grupo ouvia atento, explicações sobre os motivos da morte. Velório caseiro é claro, como era costume antigamente.
Ah! Não podemos nos esquecer das crianças. Esses seres incansáveis que encontram a fantasia nos locais mais inóspitos do dia a dia. Ali também estava um grupo de crianças, meio desassistidas por seus responsáveis, devido à situação. Brincavam, representavam, conversavam e fantasiavam o momento presente. Eu, entre elas, com os meus quatro ou cinco anos, não lembro ao certo, às vezes deixava a brincadeira, para olhar com atenção para a morta. Era jovem, cabelos castanhos, muito branca, talvez devido ao seu estado cadavérico. Vestida de noiva: “Que linda! Quero ser como ela quando eu morrer.” – Pensava.
Apenas estranhava algodão na boca. Fui saber, muito mais tarde, que era para conter a hemorragia. Pois, a minha imaginação infantil, me levara a concluir que era para evitar que ela voltasse a respirar e se transformasse em zumbi. Que medo!
Esse medo se alastrou. E foi esta conclusão medonha que roubou da minha meninice e da vida conjugal de meus pais, por vários anos, as noites de sono, que foram substituídas por madrugadas em minha companhia chorosa e assustada.

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Claudia Regina Lemes é vice-diretora da Escola da Família da E.E. Prof. José Frederico Marques, em São José dos Campos.

A VIDA COMO ELA YEAH - ADÃO ITURRUSGARAI


















André Dahmer 








Minha primeira morte - Humberto Werneck

Manda o breviário do bom jornalismo que um profissional da imprensa jamais se 
comporte como um aparecido, um semostrador. Ao contrário, deve ele buscar,  o tempo todo, a inatingível impessoalidade, na batalha pela não menos inalcançável  objetividade. Tudo bem. Mas a categoria às vezes exagera – para um lado e para o  outro. Volta e meia a gente vê usar primeira pessoa quem não chega a ser a terceira.  Ou, na outra extremidade, quem parece empenhado em engolir a tal realidade com  a goela omnívora dessas câmeras de segurança que tudo registram, inclusive nada.
A indispensável busca de isenção pode levar a exageros cômicos como o daquele do repórter que, vendo o Brasil ganhar uma Copa do Mundo, não se permitiu, no apito final, um esgar de contentamento. Torcedores da seleção adversária não poderiam acusá-lo de parcialidade.
Por todas as razões, entre elas uma exemplar modéstia, provavelmente a maior na rua onde moro, em décadas de jornalismo evitei recorrer à primeira pessoa do singular. Houve um dia, porém, em que me aconteceu não só virar assunto como acumular a tripla condição de pauta, repórter, & fonte – e aí não tive como não recorrer ao mais autorreferente dos pronomes pessoais. Afinal, tratava-se de minha morte. Sim, essa ocorrência que muitos, na tentativa de aliviar-lhe o peso, chamam de falecimento. Como diria um médico, fui a óbito.
Era eu um dos responsáveis pela redação da sucursal paulista do Jornal do Brasil, e me ligou da sede, no Rio de Janeiro, o editor da revista Domingo, pedindo histórias para uma reportagem sobre pessoas que tiveram problemas por causa de homônimos. Prometi colaborar, e já ia desligando o telefone quando me dei conta de que tinha, bem à mão, o que o editor queria.
“Serve eu?”, me ofereci.
E lhe contei a história, acontecida em março de 1970, pouco antes de me mudar de Belo Horizonte para São Paulo. Mais tarde, contei também por escrito, mas você certamente estava lendo coisa mais interessante, o que me autoriza reincidir no assunto, debulhado agora em pormenores que lá não caberiam.
As emissoras de rádio, naquele tempo, punham no ar convites fúnebres, precedidos de rubrica – “Uma nota de falecimento” – e de soturna batida de gongo. Foi assim que, certa manhã, tendo dormido com o rádio ligado, acordei com a notícia de que Humberto Werneck havia morrido.
Creia: para quem se chama Humberto Werneck, não há pior maneira de começar o dia. O locutor da Rádio Inconfidência informou ainda que o féretro sairia às tantas da tarde da rua Hermilo Alves, 350 (era ainda o tempo dos velórios residenciais), para a necrópole do Bonfim. Féretro, necrópole: a morte tem dessas coisas.
Embora fosse outra a minha rua, nela desabaram, instantaneamente, dezenas de telefonemas, de amigos e parentes, todos consternados com o meu passamento. Ressabiadíssimo – era a primeira vez que morria –, não pude saborear tamanha fartura de manifestações póstumas de estima.
Pelo meio-dia, já sem rigor cadavérico, me veio a ideia de comparecer ao meu velório. Só não fui porque minha mãe alertou para a eventualidade de encontrar, à beira do caixão, alguém que ali estivesse para me velar. Durante anos, de fato, topei com conhecidos que me julgavam morto – um deles deixou cair uma garrafa de cerveja ao me ver entrar, sem lençol branco, na Lanchonete Nacional.
Quanto a mim, acabei tropeçando um dia no meu túmulo, enquanto procurava o de meus avós no cemitério do Bonfim.
Não recomendo a ninguém a experiência de ler, numa lápide, seu nome e as datas de nascimento e morte. O inquilino do carneiro n.º 143 da quadra 49 (fui à Administração e exumei a ficha) era um segundo sargento da Polícia Militar, levado desta para melhor, ou pior, numa encrenca hepática. De quebra, fiquei sabendo que carneiro, na acepção não ovina, remete a carne, essa que a terra há de comer, se não a cremarem.
Fosse apenas o sargento – mas não: anos mais tarde, me morre outro Humberto Werneck, este no Rio de Janeiro. O susto só não foi igual porque entre nome e sobrenome havia alguma coisa a mais. Carrego desde então a suspeita de que, tendo morrido dois, sou agora a bola da vez. Quando menos, pelo critério antiguidade. Só no Facebook há cinco cidadãos de nome Humberto Werneck, de Manaus a Caxias do Sul, passando por Timóteo (MG), Santo Antônio de Pádua (RJ) e Goiânia – e suas fotos, ali, não me deixam dúvida de que sou, de todos os xarás, o mais encaminhado.
Mas retomemos. Eufórico com o meu relato, o editor da revista Domingo declarou, sem intenção de trocadilho, que a história caíra do céu para a sua reportagem, intitulada “Dublê de nome” – e não sossegou enquanto não me convenceu a ir posar, vivo e em cores, ao lado de meu sepulcro. O que foi feito num final de manhã tão bonito que precisei me conter para não declamar, naquele mar de cruzes, o In Extremis de Bilac: “Nunca morrer num dia / assim! De um sol assim!”.
Mais objetivo, o fotógrafo do jornal torceu o nariz para o meu carneiro, no qual, aliás, o sargento pegava carona na família da mulher, um punhado de entes queridos com o mesmo sobrenome italiano. Tanta gente que me vem a tentação desrespeitosa de escrever “cortiço”; que tal “mortiço”?
“Isso aqui tá uma tristeza”, sentenciou meu companheiro, e, sem maior cerimônia, se apoderou de um vaso de flores nas vizinhanças. Em seguida, me pôs para desfilar por detrás da tumba, enquanto disparava fotos e instruções: “Mais pra cá! Isso. Cara menos séria! Apoia um cotovelo aí na sepultura. Assim! Agora senta meio de lado”.
A modéstia me impede de admitir que não fiquei mal na foto, usada para ilustrar um pequeno texto – em primeira pessoa, fazer o quê? –, ao qual o editor pespegou o título daquele filme com o Warren Beatty: O Céu Pode Esperar.

Nani








Amar você é coisa de minutos...   - Paulo Leminski


Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha

Sim, eu estarei aqui






A Morte Não É Nada Para Nós - Epicuro, in "A Conduta na Vida"

Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe atribuamos uma idéia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no facto de não viver. É pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la.
Tolice afligir-se com a espera da morte, pois trata-se de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais.
Não há morte, então, nem para os vivos nem para os mortos, porquanto para uns não existe, e os outros não existem mais. Mas o vulgo, ou a teme como o pior dos males, ou a deseja como termo para os males da vida. O sábio não teme a morte, a vida não lhe é nenhum fardo, nem ele crê que seja um mal não mais existir. Assim como não é a abundância dos manjares, mas a sua qualidade, que nos delicia, assim também não é a longa duração da vida, mas seu encanto, que nos apraz. Quanto aos que aconselham os jovens a viverem bem, e os velhos a bem morrerem, são uns ingénuos, não apenas porque a vida tem encanto mesmo para os velhos, como porque o cuidado de viver bem e o de bem morrer constituem um único e mesmo cuidado.









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