Quase um ano
sem encontrar meu amigo Peregrino, e eis que o vejo na tarde fria, o corpo
coberto por uma manta de lã. Ao lado dele, o mesmo cachorro altivo: “O Rei,
grande tradutor e leitor canino”, como me disse certa vez o Peregrino, sem
qualquer ironia no tom da voz.
Não é viciado
em drogas, muito menos traficante: é apenas um dos milhares de moradores de rua
desta cidade tão linda, tão humanizada.
No século
passado, o Peregrino largou uma exitosa carreira de arquiteto e foi viver na
rua, causando surpresa e perplexidade aos parentes e amigos, a quem não deu
qualquer explicação.
Na época da
faculdade, ele desenhava como um demiurgo, era craque em cálculo integral e
outras disciplinas da Politécnica, que tanto amedrontavam os estudantes de
arquitetura. Nesses anos de vida errante, que já são décadas, nunca desprezou
os estudos: é um leitor obstinado, não perdeu o talento artístico, faz
anotações meio amalucadas em cadernos e folhas soltas, e detesta ser chamado de
doutor pelos amigos andarilhos.
Quando a
gente se encontra numa praça ou rua de São Paulo, ofereço-lhe livros, leio
trechos do diário dele, observo os desenhos: um manacá florido, namorados abraçados,
a fachada de um cortiço, rostos de refugiados e expatriados haitianos e
africanos no Cambuci e na Praça da República, ou rostos de brasileiros
paupérrimos, caídos debaixo de um dos viadutos da Radial Leste, onde uma favela
cresce a cada dia com sua noite.
Rei, o
companheiro inseparável, me reconheceu na tarde fria e soltou latidos dóceis,
de boas-vindas; o Peregrino desviou o olhar de um jornal e perguntou: Trouxe
livros?
Peguei um
volume fino na sacola: um deles é este.
Ele e o Rei
admiraram a capa do livrinho de Timothy Snyder. Quando o Peregrino leu em voz
alta o título (Sobre a Tirania), Rei começou a latir com ânsia, até estacar num
espasmo. O Peregrino esperou uns segundos e traduziu a fala do cão:
“Ele disse
que a tirania é universal... A tradução mais fiel dos latidos seria: a tirania
é municipal, estadual, federal e universal”.
Sábio cão, eu
disse. E por falar em tradução, acho que você vai gostar deste outro presente.
Tirei da
sacola um exemplar do romance Noite Dentro da Noite, de Joca Reiners Terron.
“É sobre
tradução?”, perguntou o Peregrino.
O nome
principal do narrador do romance é o de um grande tradutor alemão, respondi.
Mas o livro é sobre várias traduções: da vida, do amor, do desamor, da história
familiar, não menos violenta que a história deste país alucinado... E sobretudo
da memória perdida, evocada ou traduzida pela imaginação de um outro... É
também uma ficção sobre a morte, que é intraduzível.
“Amanhã vou
começar a leitura dessa noite dupla”, afirmou o Peregrino, com uma voz abafada.
Por que o meu
amigo andarilho estava melancólico?
“Não é
melancolia... É que acabei de ler uma coisa, por isso estou emocionado.”
O cão
concordou e olhou com tristeza para o jornal aberto.
Era um artigo
breve e antigo, ilustrado com uma fotografia colorida: um homem idoso voando
numa asa-delta. No fundo da foto, uma montanha do Rio e o mar num dia
ensolarado. A reportagem podia ser apenas isso: um coroa carioca voando numa
asa-delta. Mas era muito mais. Falava do sentimento do homem durante o voo: um
pai que perdera o filho num acidente de asa-delta. Ele quis fazer o mesmo
trajeto do último voo do filho para sentir a liberdade e o prazer de voar, e
assim interiorizar o sentimento que o filho havia experimentado em tantas
viagens, até a última, fatal.
“Isso nada
mais é que amor, puro amor”, disse o Peregrino, pegando os dois livros e se
despedindo de mim, como se a vasta e caótica cidade o esperasse.
Cobriu com um
pedaço de pano o corpo do pequeno Rei, e acrescentou.
“O amor do
pai também é universal.”
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