O surpreendente não é descobrir que o Gabriel García Márquez
continua vivo – era de se imaginar que o maior expoente do realismo mágico,
percebendo a proximidade da morte, mandasse às favas o realismo e apelasse para
o mágico. O surpreendente é que ele continue com cinquenta e poucos anos e
trabalhe numa banca de jornal na Rua Maranhão.
Encontrei Gabo por acaso, na semana passada, pela manhã.
(Tomo a liberdade de chamá-lo de Gabo, aqui, porque desde que li Cem anos de
solidão, na adolescência, sinto que somos íntimos, mas ali na banca da
Maranhão, atrás do balcão de chicletes, o Nobel prefere ser chamado por seu
heterônimo civil, “Seu Ari”.) Como eu ia dizendo, encontrei Gabo na semana
passada, quando fui à banca comprar cigarros – eu ainda fumava, naquele passado
que agora me parece tão remoto quanto a Macondo do primeiro Aureliano. Foi
bater o olho no jornaleiro pra sentir o formigamento incômodo do déjà vu: meu
Deus, quem é essa pessoa que eu conheço tanto e não reconheço nada? Um segundo
de dúvida, dois e no terceiro, boom! É o Gabriel García Márquez!
Não sei quem disse que o final de uma boa história deve ser
ao mesmo tempo surpreendente e inevitável. Pois foi o que senti ao topar com o
escritor, vivo, em Higienópolis. Primeiro um susto e depois, enquanto ele
perguntava “maço ou box?” com um insuspeito sotaque paulistano, a iluminação. É
óbvio que ele está vivo, pensei, ele leu os pergaminhos do cigano Melquíades,
aqueles alfarrábios misteriosos onde aparecia detalhada não só toda a história
da família Buendía como a fórmula alquímica da imortalidade. A dúvida que ficou
foi mais prosaica – sem querer, claro, desmerecer a prosa: por que jornaleiro?
Por que incógnito? Por que com cinquenta e poucos anos?
Gabo estava tendo problemas com a maquininha – os
pergaminhos previam maravilhas e massacres, milagres e maldições, mas não creio
que houvesse ali, entre tantas palavras em sânscrito, alguma instrução sobre
cartões com chip –, de modo que tive tempo para examinar bem os cabelos
cacheados, o bigode espesso, aquelas inconfundíveis feições de sátiro bonachão.
Enquanto eu o ajudava com o pagamento, tomava coragem: falo? Não falo? Falo?
Não falo?
“Não sei se já te disseram, mas o senhor parece demais com
um escritor.” Ele ficou me olhando com cara de quem foi pego em flagrante. “Que
escritor?” “Gabriel García Márquez. Conhece?” “Não, não conheço”, disse, mas
pude ver o sorriso surgindo no canto da boca. “Ele foi Nobel. Nobel da
literatura.” Agora, o sorriso já não era mais contido, era de um orgulho
transbordante: “Quem me dera ter 1% do talento!”. “Ó, fico meio assim de pedir,
se o senhor não quiser, beleza, mas eu gosto muito do senh/ Gosto muito do
García Márquez. Será que a gente pode tirar uma foto junto?” “Hm, vai me
desculpar, mas eu sou meio ruim pra essas coisas...”
Preferi não insistir. Paguei, estava saindo, ele me chamou.
“Jovem?” (Um homem de cinquenta e poucos não me chamaria de jovem, um de 89,
sim.) Olhei pra trás. “Volta aqui outra hora, a gente conversa melhor.” Fiquei
parado, hesitante. “Sobre a foto?” Ele não disse nada, só me encarou com a
mesma expressão irônica de minutos atrás, quando pronunciei o seu nome: pra bom
entendedor, meio sorriso basta.
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