domingo, 21 de maio de 2017

Ciclo - Fabrício Corsaletti

Como sei que uma das coisas mais chatas do mundo é ouvir o relato dos sonhos alheios ("um carro passava em cima do meu corpo, mas meu corpo era o asfalto, então não tinha problema, eu levantava, corria atrás do carro, matava o motorista e chegava a tempo no trabalho"), vou pular os eventos extravagantes e dizer simplesmente que foi um sonho de lavar a alma, e a prova é que quando lavei o rosto de manhã acho que o fiz com certo remorso pois tive receio de que a água pudesse apagar o sonho.
Tomei café ainda mexido pelas imagens que iam e vinham noite adentro, se repetindo com pequenas variações —um ciclo de imagens infinitas (eu passaria a vida no interior de qualquer uma delas) que não parava de me surpreender. Pensei em botar tudo num conto, mas escrever é outra forma de falar, e ninguém se interessa pelo prazer dos outros.
(Nunca esqueço a decepção que foi ler o "Livro dos Sonhos", de Jack Kerouac. São textos que não levam a imaginação pra lugar nenhum, ou melhor, que a levam sempre pra um lugar diferente daquele pro qual as frases apontam. Seu único mérito é despertar saudades de "On the Road", a obra-prima de Kerouac, este sim um verdadeiro sonho feito de palavras, que arrasta o leitor pelas cidades americanas como um ímã e o faz querer viajar e viver e se possível viver como quem viaja.)
"Foda-se a literatura", pensei enquanto calçava os tênis, e fui caminhar na praça Buenos Aires. Perambulei entre os canteiros repassando as cenas. A grama clara sob a luz do sol. Bebês e babás e mães de 30 anos. Cachorros mais limpos que alguns dos meus amigos. Uma PM negra conversando com mulheres brancas. Eu ria por dentro e talvez um pouco por fora, e houve um momento em que uma senhora de viseira de tenista me fulminou com um olhar de censura.
Na volta passei na quitanda dos portugueses e comprei uma dúzia de laranjas. Em casa, joguei tudo em cima da pia, lavei uma por uma, deixei a mais bonita no escorredor e guardei o resto numa cesta. Com uma faca, parti em quatro a laranja reservada e chupei os gomos com vontade. Adoro laranjas, mas em geral nem lembro que elas existem.
Depois tive que ir até uma agência bancária e encarar uma fila comprida. A atmosfera de frigorífico me deprimiu um pouco, mas quando voltei pra rua consegui engatar de novo no clima anterior. Desci a Augusta na direção do centro. O vale do Anhangabaú. Mendigos enrolados em cobertores e a multidão ralando por uns trocados. Deitado num banco de concreto com um chapéu de feltro fazendo as vezes de almofada, um vagabundo mazzaropiano coçava com a mão a sola do pé. Imaginei sua história, mas não cheguei a lhe dar um nome.
Às cinco da tarde parei num boteco da Liberdade e bebi shochu, a cachaça japonesa. Fiz dezenas de anotações em guardanapos que na hora me pareceram razoáveis mas que no dia seguinte foram direto pro lixo. O sonho, no entanto, levou mais alguns dias pra desaparecer.

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