A mesa da cozinha é o local sagrado das conversas durante a
madrugada, quando os irmãos chegam da balada com fissura por um gole de
Coca-Cola e com histórias saindo pela boca: com quem ficaram ou não ficaram, o trajeto
que fizeram para driblar a blitz, o preço da cerveja, e aí as amenidades
evoluem para a filosofia, a necessidade de extrair da vida uma essência, a
tentativa de escapar da insignificância, até que o dia começa a clarear e o
cansaço avisa que é hora de ir para a cama.
Para alguns casais, a mesa da cozinha já serviu de cama,
aliás. A mesa da cozinha ouviu confissões de amigas que juraram guardar
segredo, mas não conseguiram. O amante, a traição, a culpa, o nunca mais. A
mesa escuta e não espalha, reconhece a inocência das fraquezas alheias e se
sente honrada por ser confidente de tantas vidas.
A mesa da cozinha escutou o que os convidados não comentaram
na sala, viu estranhos abrirem a geladeira atrás de algo mais substancial que
canapés, suportou o peso de quem resolveu sentar sobre ela para fumar um
cigarro antes de voltar para o burburinho da festa.
A mesa da cozinha já foi cenário de toda espécie de solidão.
Mas também de encontros. Viu o casal de namorados preparar,
sem receita, seu primeiro salmão ao molho de manga, viu o menino nervoso abrir
sua primeira garrafa de vinho para uma menina não menos nervosa, viu um beijo
secreto entre primos, cuja família comemorava o Natal em torno da árvore, viu o
marido se declarar para a esposa viciada em grifes ao surpreendê-la com um
simples avental amarrado em torno da cintura.
A mesa da cozinha viu a mãe esquentar a primeira mamadeira
às três da manhã, com cara de sono e felicidade. E o pai da criança, a caminho
da área de serviço, segurando uma fralda suja com expressão de nojo, mas também
de orgulho.
A mesa da cozinha viu a funcionária sentar no banquinho e,
durante uma trégua entre um suflê e um pavê exigido pela patroa, acariciar sua
primeira carteira de trabalho.
A mesa da cozinha viu o cachorro xeretar a lata de lixo e o
gato lamber os restos que sobraram na louça do jantar. A mesa da cozinha viu a
dona da casa tentar escrever um diário, coisas que ela sente e que não tem com
quem dividir, a não ser com a luz amarelada do abajur.
A mesa da cozinha testemunhou lágrimas que foram secadas com
o pano de prato. A mesa da cozinha possui manchas que contam histórias. A mesa
da cozinha tem um pé frouxo que ninguém se lembra de aparafusar.
A mesa da cozinha já amparou carteados, velas acesas em dia
de temporal, cinzeiros abarrotados, a roupa passada e dobrada antes de ir para
as gavetas. A mesa da cozinha viu tudo.
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